Sobre ditaduras veladas e de Piketty ao piquete
Thomas Piketty em O capital no século XXI comprova de forma brilhante que não vivemos sobre um sistema meritocrático, e que chegamos a um ponto de concentração de renda em que uma parcela muito pequena da população mundial terá capital suficiente para controlar o resto das economias mundiaisArthur Oliveira
Sexta Feira, 9 de janeiro de 2015, manifestantes ocupam a Avenida da Consolação em São Paulo para protestar contra o aumento da tarifa do transporte público. Desarmados, os cidadãos foram recebidos a balas e bombas por policiais protegidos com capacetes e escudos. Em meio à confusão, um grupo tentava resistir ecoando gritos de “não à repressão” abafados pela fumaça do gás lacrimogênio. Este é o atual retrato da democracia brasileira, insatisfeitos com a qualidade do serviço prestado e com o preço da tarifa, a população ocupou a rua com a finalidade de estabelecer uma política justa, e foram recebidos de tal maneira. O que me leva a questionar se de fato vivemos em um sistema democrático ou numa ditadura velada imposta pela maioria. Disserto agora sobre três pontos que espero forneçam uma visão clara sobre o panorama atual:
A tarifa
O transporte público no Brasil é encarado como um meio de locomoção marginalizado, reservado às camadas mais baixas da sociedade que se espremem em veículos e vagões lotados em razão da ineficiência do sistema de transporte de uma grande parte das administrações públicas do país. A preferência pelo transporte privado fica ainda mais perceptível quando analisamos as medidas do governo em meio a períodos de recessão. A primeira taxa a ser desconsiderada é o IPI sobre carros 0km, visando, assim, estimular o consumo e fazer a economia girar. Uma medida muito lógica pela visão econômica, mas igualmente falha do ponto de vista da mobilidade, principalmente em grandes centros urbanos como São Paulo, onde se perde, em média, 3 horas por dia no trânsito. Estimula-se então o consumo de novos carros, aumenta-se a frota, consequentemente o trânsito e depois se discute as mais variadas maneiras de aplicar um rodizio de carros, o que passa a ser uma grande perda de tempo se considerarmos que a prefeitura de São Paulo poderia destinar seus esforços estimulando o uso do transporte público.
A proposta do Movimento Passe Livre (MPL) de ter tarifa zero sobre os transportes públicos da cidade não é nem um pouco utópica. Algumas cidades grandes da Europa como Tallin, capital da Estônia, já adotam tarifa zero em toda a rede de transportes. Em Sidney na Austrália algumas linhas também já operam em gratuidade. As justificativas de ambos os governos que adotaram tal medida é que o estímulo à economia gera um retorno maior do que o preço das tarifas, uma vez que as pessoas passam a usar mais os transportes da cidade e seus gastos com eles inexistem, gerando um maior acesso aos locais da cidade e dando poder de consumo, uma vez que o dinheiro que seria gasto com as tarifas rendem o equivalente a um salário mínimo. São Paulo, por exemplo, deixa de gerar cerca de R$ 26,8 bilhões por causa do trânsito da cidade, já que as pessoas desistem de fazer certas atividades por causa da demora para se chegar aos locais. Os custos da manutenção obviamente existem, mas são realocados de maneiras mais eficientes, com a cobrança de impostos progressivos (aumentam de acordo a renda), que elevam a arrecadação do governo e permitem que este consiga cobrir os custos. Porém, adotar medidas como essas por aqui exige uma série de visões e ideias, que no momento, me parecem estar bem distantes da nossa realidade. Procuro, no próximo tópico, dissertar sobre as causas disso.
A sociedade
Compreender a sociedade brasileira é uma tarefa não para iniciantes e sim para iniciados. Nossa miscigenação, o histórico político e alguns velhos costumes nos tornaram uma sociedade muito rica culturalmente, mas em alguns momentos muito sádica no entendimento e convívio social. Expomos ao mundo o orgulho das nossas diversidades e guardamos entre nós um profundo preconceito e egoísmo. Usarei agora o que o sociólogo W. Mills nomeou em sua teoria de “imaginação sociológica”, um método para se entender sociedades que parte de uma visão micro e evolui para o macro, abrindo toda uma fronteira de percepções. O regime democrático brasileiro é uma conquista recente se compararmos com outros países do mundo. Iniciamos nossa fase democrática em 1985 com o término da ditadura militar imposta em 1964. Mais do que isso, temos um histórico muito extenso de exclusão das camadas populares das decisões políticas. Depois do período imperial, tivemos a República Velha e a política ficou reservada aos interesses dos grandes latifundiários. Em seguida, veio a ditadura Vargas, alguns poucos anos de democracia e o golpe de 1964. Tal configuração fez que uma grande parte da população adquirisse uma visão distante da política e carregasse um olhar descrente da participação cidadã. Além disso, os inúmeros casos de corrupção contribuíram ainda mais para essa postura alienada. Soma-se a todos esses fatos o atual rumo que o capitalismo segue. Thomas Piketty em O capital no século XXI comprova de forma brilhante que não vivemos sobre um sistema meritocrático, e que chegamos a um ponto de concentração de renda em que uma parcela muito pequena da população mundial terá capital suficiente para controlar o resto das economias mundiais e partiremos para uma estratificação completa, com pouquíssimas chances de ascensão entre as classes cada vez mais distanciadas, voltando à época da nobreza, mas na qual denomina-se nobre não por causa de títulos mas sim por causa de capital acumulado. Complementa a visão de Piketty a teoria de David Harvey em A condição pós-moderna, que afirma que caminhamos para um regime de acumulação flexível, onde as empresas assumem o papel principal do mundo e ficamos dependentes de todos os seus serviços e o Estado assume apenas uma postura que favorece os interesses dessas empresas, desregulamentando suas estruturas e privatizando todos os seus serviços.
É sempre uma tarefa muito complexa formar previsões econômicas e sociais, mas se atentarmos para as recentes atitudes dos governos do Brasil e de São Paulo perceberemos que Piketty e Harvey não estão tão distantes da realidade. O aumento da tarifa na capital paulistana foi, segundo nota da Prefeitura, provocado por aumentos dos custos de manutenção do sistema e para garantir os 15% de lucro para as empresas que oferecem os serviços. No caso do governo federal, procura-se atualmente explicações do por quê um governo eleito com orientações um pouco mais à esquerda toma atitudes completamente neoliberais, como elevação das taxas de juros, formação de um ministério conservador, além de cortes de investimentos em programas sociais. Já estamos dependentes dos investimentos externos e as medidas da presidenta Dilma Rousseff visam agradar essa parcela, com o objetivo de “salvar a economia” do país. Já Fernando Haddad, prefeito de São Paulo, adotou o acréscimo de R$ 0,50 para igualmente agradar ao setor privado. A grande problemática é que o repasse dos custos de todas essas ações recaem justamente sobre o lado da população mais sensível a essas variações, um velho hábito de nossos governantes que, para não desagradar investidores e empresários, contribui ainda mais para a manutenção da desigualdade estabelecida a séculos por aqui. No entanto, uma pequena parcela da população parece ter percebido todo esse panorama e resolveu fazer aquilo que todo sistema democrático deveria defender: a liberdade de expressão e o direito de manifestar por seus interesses, e não foi isso que a polícia de São Paulo levou em conta no dia 9 de janeiro.
A repressão
Julho de 2013 parecer ter sido um período marcante para a história democrática do país. As diversas manifestações e as ações da polícia frente a ela acenderam as discussões sobre política e sociedade no país inteiro, o que culminou com a acirrada disputa eleitoral no ano de 2014 entre a candidata Dilma e o candidato Aécio Neves. Aumentos na tarifa do transporte público de diversas cidades do país fizeram com que os protestos tivessem início, mas foi um episódio em específico que tornou Julho de 2013 um período marcante. Uma repórter da Folha de S.Paulo foi baleada no olho, com tiro de borracha, pela PM que reprimia mais um ato. Esse episódio fez que a visão se invertesse. Aqueles que anteriormente eram denominados como vândalos pela mídia passaram a ser chamados de manifestantes e a causa ganhou apoio por todo o território nacional. Porém, a causa adquiriu propostas e rumos diversos e no final do período ouvia-se mais propostas da direita como impeachment da presidente Dilma, diminuição da maioridade penal e fim da corrupção, do que as propostas mais coerentes e menos abstratas do início. Discutia-se na época a militarização da polícia e suas práticas inadequadas diante das manifestações populares. Mas poucas medidas foram tomadas, tais como melhor orientação das tropas e formação de tropas habilitadas em artes marciais que pudessem neutralizar, sem o uso de armamentos, aqueles que estivessem vandalizando o movimento. Mas, perceba que todas as medidas foram em prol de uma repressão mais adequada ao movimento. No entanto, isso é ainda uma repressão; e em 2015 as propostas discutidas dois anos antes parecem ter sido esquecidas e a polícia de São Paulo retomou suas táticas violentas contra os manifestantes. Além disso, o enfoque da mídia como um todo foi em cima do ato de vandalismo de algumas pessoas que participavam do protesto. E em momento algum houve críticas sobre a ação da polícia, indicando assim um certo retrocesso em vista do que foi pensado e discutido em 2013.
Nosso passado ditatorial deixou marcas enraizadas que infelizmente ainda se manifestam fortemente nos dias de hoje. A opinião pública, incitada por alguns veículos de comunicação, é uma demonstração disso. Manifestar é visto como algo negativo e de comunistas “lunáticos” que querem levar o país para os mesmos rumos que Cuba e Venezuela. A compreensão de que o embate se dá visando políticas que formem uma sociedade mais justa e não revolucionária fica impossibilitado. Lutar por uma política mais adequada a todos, por aqui, possui mais desafios do que em outras nações. Por aqui se tem repressão da polícia, da população e da mídia, o que torna o exercício da democracia mais dificultado. A verdade é que atualmente vivemos sobre as imposições de uma visão que levará a rumos excludentes, uma visão que em sua própria consequência é burra.
A realidade atual é que estamos rumo a um processo onde uma parcela muito pequena obterá benefícios disso, e à maioria restará assistir e aceitar o domínio dos interesses da pequena parcela. E quando digo a maioria incluo também a classe média alta, grande defensora desses interesses ilógicos. Espero que os movimentos, mesmo com inúmeras barreiras, ainda possam resistir; pois tem-se nas ruas o desejo de formarmos uma política que seja justa a todo mundo, e se justiça é vista como uma atitude revolucionária por algumas classes, que levantemos os piquetes e façamos a revolução, pois a inteligência não deve se calar sobre a ignorância e interesses privados não devem ser maiores do que as necessidades da maioria.
Arthur Oliveira é Graduando do curso de administração da Faculdade de Economia e Administração Da USP e presidente do Cursinho FEA USP.