Sobre um pano azul com doze estrelas amarelas
Ninguém poderia prever que, no início dessa odisseia fracassada, a Europa central e a oriental se tornassem, desde sua libertação, uma pequena América do Leste, onde sex-shops e McDonald’s substituiriam as livrarias e tabernas, onde o Pentágono se apressaria a instalar seus consultores e a CIA, suas prisões clandestinas
Régis Debray
No começo, essa grande esperança tinha tudo para dar certo. São Tomás e Victor Hugo, uma feliz mistura de inspiração cristã e profecias humanitárias, generosidades e verossimilhanças. Era a marcha inexorável rumo à unificação dos povos num governo global, como outrora as regiões nos Estados-nações ou, ainda, certezas fortes e simplistas como “A união faz a força”. A isso se acrescia, para o abaixo-assinado, a sombra formidável do europeu Paul Valéry. Sem dúvida, a “Europa possível” que ele invocara não coincidia com a União Europeia. Não se tratava de uma ressurgência devida ao Sacro Império Romano-Germânico, mas da Europa de Albert Camus e da pensée de midi [pensamento do sul]: mediterrânea e ensolarada, de pátina católica, tornada humanista ao anoitecer, embora mais próxima de Roma que de Frankfurt. Começava em Argel, passava por Alexandria, ia a Beirute, fazia uma parada em Atenas, projetava-se até Istambul e voltava para o norte, pela bota italiana e a Península Ibérica. Ou seja, atribuía à língua, à geometria e às criações do imaginário o mesmo papel estratégico que reconhecemos no índice Dow Jones e nos impostos das empresas.
A história universal sempre teve mais de uma carta na manga. Assim, estendeu o princípio “América” àquilo que, supostamente, era sua contrapartida e, para alguns, lhe fazia concorrência: os Estados Unidos da Europa. Tal é o milagre da hegemonia: poder confiar o preenchimento da agenda a outrem. Diga-se o mesmo do milagre do amor. A jovem América soube se fazer amar logo depois da guerra, coisa que não conseguiu (o contrário seria de espantar) sua rival de então, a União Soviética. Ora, quem ama imita. Não é, pois, estranho que a Europa federal do futuro haja tentado se construir reproduzindo, no Velho Continente, os dogmas e as maneiras do Novo. Esforçar-se tanto para apagar sua personalidade, diluir com tamanho entusiasmo tudo que constituía seu DNA… isso talvez interesse a um dramaturgo. A União Europeia é uma máquina antipolítica; muita gente deseja que ela se torne um ator político e chega a esperar que se constitua, um dia, em potência, quando sua própria razão de ser é fugir dessa ideia. Resumamos a intriga. Sociais-democratas e democratas cristãos, os dois primeiros atores da peça, alimentavam após o fim da guerra, para impedir retrocessos, o excelente projeto de impor o interesse comum sobre o particular. Contra o pecado nacional, a redenção federal. Que seja. Por que não? Depois disso, vimos os socialistas desmantelar sem escrúpulos as proteções sociais, desconstruir o Estado (o único e derradeiro bem de quem não tem nada), desmontar os serviços públicos e entronizar, como lei suprema, a do lucro. Enquanto isso, os responsáveis espiritualistas inventavam uma entidade sem alma nem coração, a mais grosseiramente materialista das associações humanas, onde o lobby é rei, o refugiado, um inimigo e a calculadora, rainha. A União Europeia não saiu da história pela simples razão de nunca ter entrado nela.
Nunca vimos, em área nenhuma, a marcha de um exército sob a bandeira da coroa de estrelas tirada do texto do Apocalipse nem um arauto de Bruxelas opor seu veto a alguma proposta, convocar uma conferência de paz, provocar ou impedir uma guerra. Isso não está no cardápio da casa. De acordos entre governos, de uma cooperação clássica e judiciosa entre Estados soberanos é que nascem os grandes sucessos europeus, Airbus e Arianespace, muito mais responsáveis pela causa que um artefato institucional cuja contribuição seria franquear a globalização de um capitalismo financeiro estranho aos modelos tanto renano quanto colbertista. É verdade que, entrementes, surgiu em 1987 o excelente programa de intercâmbios universitários Erasmus, que convém elogiar a despeito de sua modéstia: 33 países participantes, mas 1,3% do orçamento comunitário, 3 mil bolsas por ano, sobretudo para as escolas de comércio e engenharia, e 3% de alunos franceses, dos quais 1% de universitários que vão estudar no estrangeiro. A Idade Média fazia melhor em termos de mobilidade, mas ainda assim o esforço é meritório.
O culto europeísta é a primeira religião secular que não conseguiu entregar a seus fiéis uma carteira de identidade, salvo se considerarmos como tal uma nota de dinheiro do Banco Imobiliário. E, para consolá-los de uma narrativa comum impossível, o banco lhes ofereceu uma moeda única, na pressuposição de uma fronteira a ser empurrada cada vez mais longe. Substituir o intensivo pelo extensivo, um “ainda melhor” por um “mais longe”, go easy young man, eis uma fórmula que funciona num continente com um mínimo de diversidade num máximo de espaço, mas não no nosso, onde um mínimo de espaço abriga um máximo de diversidade.
Destruir um sentimento de solidariedade sem pôr outro em seu lugar é sempre perigoso. O risco é a retração tribal, remédio falso e veneno verdadeiro. As religiões políticas – e o europeísmo é uma delas à sua maneira, oblíqua e esquálida – secam depressa quando não há seiva e, sobretudo, um tutor, uma vertical. O mito Europa se desvaneceu mais depressa que o esperado por postular que um texto constitucional poderia agregar sem língua, sem memória e sem lenda partilhadas. Esse patriotismo seco e sem substância, dito constitucional, cede lugar unicamente ao espírito de comércio, considerando negligenciável aquilo que lhe dá sentido: o intercâmbio dos espíritos.
Que há de europeu em nossa Europa recoberta por um manto azul de supermarkets, o sucessor do manto branco das igrejas, com museus em forma de blockhaus aqui e ali, para suplementar a alma, aonde vamos alegremente para cumprir nossas obrigações culturais? Havia mais Europa na era dos mosteiros, quando o irlandês Columbano vinha semear suas abadias pelos quatro cantos do continente. Mais na Batalha de Lepanto, quando saboianos, genoveses, romanos, venezianos e espanhóis se lançaram ao combate contra a frota do Grão-Turco sob o estandarte de Dom João da Áustria. Mais no período pacífico das Luzes, quando Voltaire ia jogar cartas em Sans-Souci com Frederico II ou Diderot batia no ombro de Catarina II em São Petersburgo. Mais na época dos Voyageurs de l’impériale, quando Clara Zetkin agitava os corações dos operários franceses e Jaurès, os congressos socialistas alemães. O russo e o alemão eram ensinados, em 1950, cinco vezes mais que hoje nos liceus; via-se mais Itália na França e França na Itália do que atualmente. Acompanhamos o tempo todo as peripécias da política interna norte-americana e uma tossezinha da senhora Hillary Clinton em campanha abre nossos jornais televisivos; contudo, não dispomos de dez segundos quando se trata de uma mudança de paisagem na Romênia ou na República Tcheca. Os satélites de difusão e nossa preguiça intelectual colocam Nova York diante de nossos olhos, Varsóvia nas estepes e Moscou em Kamtchatka.
O senhor Donald Tusk, presidente da União Europeia, que se dirige em globish a seus diversos interlocutores, parece bem menos europeu que o imperador Carlos V, que falava espanhol com Deus, italiano com as mulheres, francês com os homens e alemão com seu cavalo. De trinta agências centralizadas da União, 21 têm seu site unicamente em inglês – e a lei trabalhista da Itália se chama Jobs Act. Ver os funcionários de Bruxelas se comunicando na língua que, após o Brexit, é a de apenas um de seus membros, a Irlanda, não deixa de ser engraçado. Quem receia que nossa Cartago loquaz se transforme numa vasta Suíça andaria melhor se nos desse essa confederação como exemplo: ali se falam correntemente, como todo europeu deveria fazer, três e até quatro línguas maiores.
Ninguém, é claro, poderia prever que, no início dessa odisseia fracassada, a Europa central e a oriental se tornassem, desde sua libertação, uma pequena América do Leste, onde sex-shops e McDonald’s substituiriam as livrarias e tabernas, onde o Pentágono se apressaria a instalar seus consultores e a CIA, suas prisões clandestinas. Nem que a tensão fecunda entre latinidade e germanidade redundasse, com a ampliação para 27, em benefício de uma Alemanha transformada enquanto isso (por expiação e redenção) na mais americanizada das sociedades europeias (impondo-se na economia, no urbanismo, na organização federal, no governo de juízes etc.). Se é verdade que toda história de passarinho termina com um gato, ignorava-se que um reflexo salutar de defesa diante de um despotismo político se transformaria trinta anos depois numa espécie, mais suportável sem dúvida, de despotismo econômico, como se um “não” a Joseph Stalin exigisse um “sim” a Milton Friedman.
O estrategista Thomas Barnett, que lecionava no Naval War College antes de trabalhar no Pentágono, conclamava recentemente os Estados Unidos a não desanimar por causa de uma guerra perdida, o Iraque, e continuar projetando com sucesso no mundo seu DNA, “o código-fonte da globalização moderna”. Aludia a seu modelo econômico, que se reproduz sozinho, graças ao “efeito dominó”, de uma classe média a outra. “Já não se trata”, insiste ele, “de fazer a América dirigir o mundo, mas de fazer o mundo se transformar em América.” No que toca ao Velho Mundo, nosso estrategista pode ficar tranquilo: ele conseguiu.
*Régis Debray é autor de Civilisation. Comment nous sommes devenus américains [Civilização. Como nos tornamos norte-americanos], Gallimard, Paris, 2017, obra da qual este texto foi extraído.