Sociabilidade favelada: experiências de lesbianidades na Maré
O exercício da lesbianidade dentro da Maré não é de simples compreensão porque aglutina tantas incidências que demanda um olhar atento para não cair no fatalismo de que é impossível ser uma lésbica feliz vivendo na Maré e ao mesmo tempo não criar um lugar de romantização das situações vividas pelas mulheres não heterossexuais da Maré
O Complexo da Maré existe desde 1940 e se formou a partir da oferta de trabalho que a construção da avenida brasil proporcionou. Neste sentido o território nasce a partir da necessidade de trabalhadoras e trabalhadores habitarem, terem um lugar pra chamar de seu, não no sentido único da posse, mas no sentido da possibilidade de existir. Algumas famílias vieram fugindo da pobreza e miséria que havia no norte e nordeste do país e também atraídas pelas políticas migratórias fomentadas pelo governo, atraídos pelo sonho de uma vida melhor[1].Neste sentido a Maré se assemelha a um grande quilombo porque reúne no mesmo território pessoas de diferentes lugares dispostas a criarem ali suas comunidades.
Beatriz do Nascimento [2]sustenta que os quilombos são experiências de vivências de pessoas que se recusaram a serem propriedade de outros e que constroem um novo território para habitar. Assim, ouso dizer que o Complexo da Maré é um quilombo cravado no coração da zona norte do Rio de Janeiro, que tem atualmente mais de 140 mil moradores e uma população feminina de 54%[3].
Embora a atuação das mulheres da Maré na construção do cotidiano das 16 favelas do complexo da Maré seja inegável, os padrões do machismo se impõem fazendo com que suas atuações sejam esmaecidas na história hegemônica contada e quase sempre nas narrativas sobre o território essas atuações sejam colocadas como secundárias e noutros casos usurpadas. Esses mesmos padrões do machismo estrutural se colocam sobre os modos de existência das mulheres da Maré e com esta fala passo, daqui em diante a colocar foco na sociabilidade lésbica das mulheres da Maré.
Tornar-se lésbica
O aprendizado nesse território é muito similar ao aprendizado repassado pelos povos negros escravizados no Brasil e utilizam como ferramenta de transmissão de conhecimento a oralidade ou a história oral. Isso quer dizer que a sexualidade também é operada nessas bases. As mulheres aprendem o que suas mães, avós, tias, cuidadoras, ensinam e as experiências dessas mulheres passam a dar contorno à sexualidade que orientará nossos passos. Se essas mulheres têm vivências diferentes da heteronormativa é provável que uma descendente lésbica não sofra preconceito ou violência familiar, mas a depender das experiências dessas ancestrais ou cuidadoras a situação de uma descendente lésbica pode ser complicar muito desencadeando processos de violência que começam no ambiente familiar.
Nesse sentido o movimento social de lésbicas passa a ter função educativa para além da função de sociabilidade e intervenção política. Não é incomum nas rodas e conversa que o movimento sapatão da Maré promove a presença de perguntas que passam pela educação sexual e conhecimento do corpo simplesmente porque nos marcos da sociedade machista suas ancestrais foram ensinadas a se reprimirem e esse modo de comportamento é o que acaba sendo transferido às gerações seguintes até que alguém interfira no processo.
O movimento social de lésbicas na Maré existe de modo organizado há pouco mais de 14 anos, mas é comum nas narrativas sobre o território a argumentação de que não existe movimento social de lésbicas na Maré. Essa invisibilidade vem de diversas direções desde pessoas e grupos heterossexuais a grupos LGBTS. O exercício da lesbianidade dentro da Maré não é de simples compreensão porque aglutina tantas incidências que demanda um olhar atento para não cair no fatalismo de que é impossível ser uma lésbica feliz vivendo na Maré e ao mesmo tempo não criar um lugar de romantização das situações vividas pelas mulheres não heterossexuais da Maré.
Lembro que quando era pequena e morávamos na divisa da Nova Holanda com a Baixa do Sapateiro, tinha uma vizinha que morava há muitos anos com uma amiga. A vizinhança sempre comentava sobre a “mulher machinho” mas o assunto nunca foi falado conosco. Não parecia coisa da qual crianças devessem se ocupar. Ao mesmo tempo em que toda vizinhança comentava num tom claramente lesbofóbico, a rede de cuidados construída pelas mulheres da vila que abrigava mais de 50 moradores, não excluía as duas mulheres. Só me dei conta que elas eram um casal quando eu já tinha uns 19 anos e elas se separaram. O traço do cuidado construído por mulheres na Maré é muito forte e em alguns momentos são cruciais para que se viva num território que é alvo do terrorismo de Estado e do abandono intencional da política pública.
A memória que divido neste texto ilustra bem a vivência da maioria das lésbicas do Complexo da Maré. Favelado aprende desde cedo que saber o que dizer e quando dizer é condição para se viver no território. Some esse modo de vida às incidências do machismo estrutural e temos aqui o que chamo de primeiro elemento da sociabilidade favelada: a discrição. A lésbica de favela existe, socializa, constrói amores, mas raramente existe uma publicidade sobre essa vivência. Este modo fica muito mais marcado com as lésbicas mais velhas. No entanto, fico feliz em perceber que as gerações mais jovens têm se permitido modos diferenciados de existência fazendo com que a sociabilidade favelada nos últimos anos venha apresentando nuances. Atribuo essa mudança às incidências de grupos LGBTS+ e à atuação específica do movimento social sapatão no território.
Na Maré temos bares que se propõem a serem locais seguros para LGBTS+, algumas organizações sediadas no território tem promovido festas com temáticas LGBTS+ e as lésbicas relatam se sentirem seguras para irem. Eu mesma já conheci amores e amizades importantes fruto desses encontros. Digo com isso que as lésbicas da Maré sabem onde se encontrar mesmo quando não são vinculadas a movimentos sociais, uma vida guetizada tem vantagens e desvantagens, essa talvez seja uma vantagem da guetização. Essas informações sobre sociabilidade favelada na Maré aparecerão com mais solidez na pesquisa intitulada Mapeamento Sociocultural e Afetivo das Lésbicas da Maré que terá os resultados divulgados em breve.
No entanto, como já citei acima, devemos estar atentas à não romantização das lesbofobias territoriais por isso trago para este texto algumas das muitas incidências na sociabilidade sapatão na Maré. Nas conversas que o movimento sapatão da Maré produz recebemos denúncias de pedidos de ajuda das mulheres. Esses relatos nos mostram a manutenção de algumas violências já conhecidas como aplicação de rituais de exorcismo religioso com vistas à reversão da sexualidade “divergente” e apontam que o principal espaço onde as lésbicas sofrem violência esse lugar ainda é o ambiente familiar. Ainda sobre as violências relatadas percebemos as violências de Estado tanto de modo direto com o braço armado quanto com o esvaziamento da política pública voltada às lésbicas. Curiosamente outro traço que temos percebido nos últimos tempos na Maré é que as mães têm se colocado em defesa das filhas lésbicas e alguns relatos que nos chegam mostram que existem mães se separando dos maridos lesbofóbicos para continuarem a se relacionar com a filha sapatão. Observem as muitas camadas que se lançam sobre o debate da lesbiandade favelada.
Em tempos de pandemia do coronavírus considero muito crucial falar da dianteira que as mulheres assumem no combate aos reflexos sociais da doença. Outro dia assisti o documentário Ori, de Beatriz do Nascimento quando a autora fala da importância das mulheres nas sociedades de matriz africana para o “sustento da guerra”. No documentário imagens das mulheres deixando comidas nas matas para alimentar os negros fugitivos. Penso que a atuação das mulheres da Maré no combate à pandemia passe muito pelo lugar de “fazer viver” quando a política implementada por um governo fascista é claramente deixar morrer.
Durante a pandemia todas as iniciativas de enfrentamento à doença na Maré foram lideradas por mulheres. O movimento sapatão se juntou com outros movimentos de mulheres para combater essa doença que escancara as diferenças sociais neste país e atuou apoiando prioritariamente mulheres responsáveis pelo sustento de suas famílias.
Costumo dizer que a Maré é um país, digo em tom de brincadeira, mas cada vez mais tenho feito esta afirmação de modo político. Existem no território comunidades angolanas, senegalesas, chinesas[4] e gente de todo o país que encontrou nos movimentos das marés, formas viver e modos de habitar.
As mulheres da Maré seguem em luta para ficarem vivas e poderem exercer livremente suas sexualidades.
Dayana Gusmão, cria da Maré, assistente social atuante com Redução de Danos para a população em situação de rua dos arredores do Complexo da Maré, coordenadora política nacional da Articulação Brasileira de Lésbicas e Mulheres Bissexuais – ABL; Membra da Comissão de Saúde da Mulher do Conselho Nacional de Saúde – CNS; Membra Fundadora da Coletiva Resistência Lésbica da Maré.
[1] A história completa da formação do Complexo da Maré em fotos está disponivel na exposição permanente no Museu da Maré e no Arquivo Orosina.
[2] Beatriz do Nascimento: RATTS, Alecsandro (Alex) J. P. . Eu sou Atlântica: Sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nacimento. 1. ed. São Paulo: Imprensa Oficial / instituto Kuanza, 2007
[3] Fonte: Censo Maré 2019 produzido pela Redes da Maré
[4] Fonte: Dados Censo Maré 2019