“Sociedade brasileira é hipócrita e preconceituosa”, diz Ney Matogrosso
Aos 77 anos, ícone da cultura nacional fala ao Le Monde Diplomatique Brasil sobre momento político do país, relação com as drogas e religião
“Não falo de política”, afirmou Ney Matogrosso ao sentar no sofá de seu amplo apartamento na zona sul do Rio de Janeiro, em uma tarde abafada de fevereiro. A frase saltou da boca do artista como se fosse um bom-dia, acompanhada por um semblante amistoso, mas firme.
Vestindo branco da cabeça aos pés, as pernas cruzadas, cercado por quadros, Ney Matogrosso não está preocupado em agradar ninguém. “Não sou hipócrita”, diz algumas vezes ao longo da conversa. A máxima de não falar de política acaba rapidamente, ao esclarecer que nenhum partido político lhe interessa e que só a liberdade vale a pena.
Em seu livro de memórias (Ney Matogrosso – Vira-lata de raça), lançado no fim de 2018, Ney se define como livre e subversivo. Ninguém há de esquecer o que ele, João Ricardo e Gerson Conrad fizeram no início dos anos 1970, com o Secos & Molhados. “Eu subia no palco querendo trepar com as pessoas”, relembra. Aos 77 anos e quase meio século de carreira, a forma de reivindicar mudou: “Quando vejo a notícia de que 50 milhões de brasileiros estão abaixo da linha da pobreza, eu canto ‘Tem gente com fome’ no meu show”, salienta.
O já conhecido estilo provocador e autêntico ganha força a cada análise. A sociedade, para ele, vive um período delicado, na linha tênue entre o temor e o atraso. “Não quero ser âncora do medo e não saberia viver desse jeito”, esbraveja.
Ao vasculhar a própria história, Ney Matogrosso vai se desvencilhando das camadas que o formam. Fala do uso de drogas com naturalidade. O amor e a loucura parecem ter a mesma importância, sem que nenhum dos temas seja discutido com pudor. “Desde o começo digo a verdade, sabendo que não teria rabo para as pessoas pisarem”, ressalta.
Entre memórias e revelações, Ney Matogrosso faz de sua vida um grande novelo. Fios longuíssimos estão conectados, ainda que nem todos estejam à mostra. O Le Monde Diplomatique Brasil foi ao seu encontro para puxar uma das pontas.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Há uma frase no seu livro de memórias que diz que “a parte masculina ou feminina que as pessoas enxergam em mim é reflexo delas próprias”. Como, por meio do seu trabalho, é possível fazer uma análise da sociedade?
NEY MATOGROSSO – Sempre achei a sociedade brasileira muito preconceituosa e hipócrita. Sempre me coloquei contra a hipocrisia, assumindo a verdade desde a primeira entrevista que dei. Não sabia o que dizer, mas tinha a certeza de não querer viver escondido como muitos artistas brasileiros viviam à época, ocultos atrás de uma fachada. Isso não me interessava, porque seria compactuar com a hipocrisia. Desde o começo digo a verdade, sabendo que não teria rabo para as pessoas pisarem. Antes que elas falem de mim, eu já falei tudo.
Sobre isso de artistas se esconderem, tenho a impressão de que os artistas de antigamente se expunham mais, talvez pelo período político. Qual é sua avaliação do período atual?
Existe uma novíssima geração que contesta o tempo todo. Não sou uma pessoa acomodada também. Estou fazendo um show que as pessoas estão considerando político, mas não há política partidária. Quando vejo a notícia de que 50 milhões de brasileiros estão abaixo da linha da pobreza, eu canto “Tem gente com fome”, e isso não significa que eu esteja defendendo partido político, porque nenhum deles me interessa nem nunca me interessaram. Quero ter liberdade para falar de todas as coisas. Quando se parte do pressuposto de que você tem um partido, é preciso aceitar todos os erros daquele partido e falar mal dos outros. Então prefiro não ser de nenhum partido. Sou um ser humano que pretende usar a liberdade de expressão.
Como foi aquela situação com o MBL, em que o Kim Kataguiri tirou uma foto com você e postou nas redes sociais?
Foi um episódio bobo; tentaram me usar naquele momento. Mas entrei na justiça e ele foi obrigado a tirar qualquer referência ao meu nome nas redes dele. Uma bobagem, porque depois de três ou quatro dias ninguém lembrava mais. É que ali estava no calor da situação, e ele se guiou por uma entrevista que eu tinha dado para um jornal estrangeiro sobre ser a favor ou contra o impeachment da Dilma. Disse que, se houvesse culpa, ela deveria sair. Mas eu não torcia pela queda dela, como não torço pelo mal desse que está aí [Bolsonaro]. Não sou assim. Posso discordar, mas respeito o voto das pessoas.
Recentemente, você disse que “não queria ser âncora do medo ao falar do Brasil”.
Sim, porque todo mundo estava apavorado, e eu não quero ter medo. Nunca tive medo de nada, por que vou me agarrar no medo neste momento?
Como você se blinda?
É você se colocar mentalmente. Não tenho medo, e aí? Isso não significa que eu esteja imune a nada. Mas eu não quero ficar nessa energia de temor. Isso é um atraso, péssimo. Não saberia viver desse jeito.
Mesmo em tempos de ditadura?
Mesmo naquele período. Se eu tivesse medo, não tinha nem mostrado a cara.
Durante seu documentário, você diz que é no palco que você se liberta.
Da minha loucura, porque sempre temi a loucura. Estou falando isso do Secos & Molhados, que foi um momento de catarse pra mim. Eu não tinha um rosto, lembre-se disso… Quando deixei de ter um rosto, algo jorrou de dentro de mim. Enfrentei todo o medo da loucura que eu tinha.
Da loucura em que sentido?
Vou te dar um exemplo: nas décadas de 1950 e 1960, eu andava de ônibus diariamente. Ia pagar para o trocador e ele dizia que não tinha troco. Antes disso acontecer, eu já imaginava a seguinte cena: vou entrar no ônibus, o trocador vai dizer que não tem troco, e eu me via pendurado no corrimão enfiando o pé na cara dele, quebrando tudo. Era muito louco, e eu tinha horror disso se concretizar.
Aí veio a cara pintada do Secos & Molhados.
Fui com tudo. Eu era muito agressivo, então talvez precisasse exercitar a agressividade. Temia a agressividade, e ela foi exercitada via arte. Acho que todas as pessoas, em todas as profissões, deveriam praticar qualquer tipo de arte. A doutora Nise da Silveira sacou isso. Colocar sua loucura para fora pela arte, ultrapassar os limites e impedimentos das fantasias negativas.
E aí você chega à década de 1980 com shows mais formais, de terno…
Mas não foi pra limpar a barra, e sim por uma necessidade de experimentar aquilo.
Mas em que momento, depois do Secos & Molhados, essa loucura que aparecia por meio da arte acabou?
A arte é útil pra mim até hoje. É o que me realiza como ser humano, e eu não saberia ser outra coisa senão artista.
Mas não pra exorcizar loucura.
Não pra exorcizar loucura, mas, naquele momento, foi. Era um momento de extrema violência do governo, e eu fui muito agressivo. Entrava no palco agredindo antes de dar oportunidade para alguém me agredir. Via fotos daquele período e não entendia como poderia ser eu, porque não me reconhecia na época do Secos & Molhados. Não sabia que aquilo estava dentro de mim, porque aí o assunto é o inconsciente. Era algo que vinha e eu deixava acontecer, protegido por uma máscara que fortalecia o resto.
Como o uso de drogas aparece nessa história?
As drogas aconteceram antes do Secos & Molhados. No dia que começou minha carreira no grupo decidi que não deveria usar nada no palco. Fumei maconha uma única vez para fazer um show, na primeira vez que fomos a Belo Horizonte. Lembro de estar em um campo de futebol e alguém da plateia falou “bota pra quebrar, Ney, porque nós não podemos”. É a única memória do show. Eu não gosto de não ter memória.
Você acha que seria um artista diferente sem utilizar drogas?
Não sei, porque, como nunca subi no palco sob efeito de nada, minhas experiências foram anteriores ao Secos. Estou falando de LSD puro, que abre as portas da percepção. Não é usar droga para dançar em boate. Eu ia para praias desertas no final da década de 1960, com roupa branca, uma espécie de ritual. Droga era um veículo para alcançar outro estágio. Tomei o santo-daime por um ano e meio nos anos 1980 e parei porque estava ficando meio acelerado.
No livro, você diz que se considera uma pessoa estranha para a média da população.
Porque penso esse tipo de coisa que estou te falando [risos]. As pessoas nem atinam para essas possibilidades. Acredito no que não vejo, sou muito intuitivo e acredito na minha intuição. Acredito em vida em outros planetas. É ridículo acharem que somos o ápice de todos os universos e da criação. Estamos longe disso e de qualquer ápice. Se o ápice destrói seu hábitat, rouba, assassina, que ápice é esse?
Por que não refletimos sobre isso?
Porque não somos ensinados, não falam disso na escola. Porque nossos pais não incentivam e porque eles também não sabiam. Não deram o pulo do gato pra eles. Esse pensamento te leva a independer de qualquer igreja ou religião. Seu relacionamento com Deus é direto. Ele não é um senhor que fica lá no céu apontando o dedo para mim dizendo que eu errei. Deus, para mim, é um princípio amoroso.
Qual foi seu pulo do gato?
Entender que quem comanda é o coração, não a cabeça. Compreendi isso ao tomar o daime. Tudo ia para minha cabeça, e eu ficava esquematizando tudo, julgando, “que gente esquisita, esses crentes”. Em determinado momento, pensei: “Idiota, para de olhar para fora e olha para dentro de você”. Árduo trabalho, tá? Até que um dia entendi que não estava na cabeça e comecei a exercitar isso. Este é o pulo do gato que ninguém dá: você tem que se guiar pelo seu coração. Eu não era amoroso com as pessoas, não sabia receber carinho.
Na minha casa, ninguém nunca se beijou. Saí de casa aos 17 anos e fui viver minha vida independente, fosse tendo o que comer ou não. Optei por ser livre e nunca me fiz de coitado. Isso me endurecia, porque estava sozinho contra o mundo. Depois, com o daime, fui entendendo que poderia ser mais manso, mesmo discordando de tudo. É uma questão de amor próprio, outra coisa que as pessoas não entendem. Gostar de si, se respeitar. Devo ter limites, ainda que sejam mais elásticos [risos].
Como o público responde a seu comportamento no palco, antes e agora?
No começo peguei umas barras bem pesadas, de agressão. Mas, a partir do momento em que eu fui mudando, isso foi se alterando também. Hoje em dia não quero agredir ninguém, quero acariciar. Antigamente queria trepar com todos eles. Minha sorte foi nunca ter reprimido nada, mesmo que fosse agressividade.
Você está cantando “Cara do Brasil” no seu show, que diz: “A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho / Ninguém precisa consertar / Se não der certo a gente se virar sozinho / decerto então nunca vai dar”. Essa é nossa sina? Há quem acredite que precisamos criar algo enquanto país.
Sim, concordo com ele. Mas, para isso, precisamos voltar lá atrás, respeitar os índios, os negros, a natureza. Porque há, por exemplo, uma dívida histórica com os negros que ainda não foi resolvida. A gente precisa entender qual é nosso jeito, mas não sei se viverei pra ver. Enquanto o Brasil que eu idealizo não acontece, vou vivendo minha vida, me distanciando desses focos de podres poderes.
Como você avalia a presença da ministra Damares Alves, com um discurso evangélico, no ministério que contempla direitos humanos e temas relacionais a religião e sexualidade?
Bom, primeiro de tudo, o Estado é laico. Nenhuma religião deve comandar nada. Isso já é errado.
E o Bolsonaro?
Moderou um pouco o discurso. Espero que ele entenda que existe muita coisa para se preocupar no país. E não adianta achar que os gays vão acabar, porque as pessoas nascem e continuarão nascendo. Se ele não está informado, que saiba: ninguém vira nada, as pessoas nascem desse jeito. Deixa cada um viver sua vida e vai governar. Não se meta na vida de ninguém.
Há uma entrevista sua recente à Folha de S.Paulo em que você questiona esse papel de ser o representante do movimento gay. Por que você acha que as pessoas o colocam nesse lugar?
Porque talvez eu tenha sido o primeiro que teve coragem de se expor. Não vejo por outro ângulo. Eles estão me ouvindo falar há 45 anos sobre tudo, e será que ainda não entenderam minha mensagem? Ou não querem entender? É conveniente. Eu apoio todos os movimentos. Eu sou muito mais que isso, não me satisfaço só com isso e penso muito além disso.
*Guilherme Henrique é jornalista.