Sociedades efervescentes, governos sem gás
Dispersa em um mosaico de foros de negociação, a esquerda governa sem dar-se conta de que a integração regional poderia ser uma resposta concreta aos efeitos nocivos da globalização econômica. O Mercosul, porém,continua vivo, nas iniciativas da sociedade civil, que não depende da burocracia estatal para se integrar
A opinião pública costuma lembrar-se do Mercosul1 ou quando há um conflito espinhoso entre os países vizinhos ou ao ver a enésima foto de mais uma requentada cúpula presidencial em que, entre vivas e promessas, os canhões oficiais relançam o “bloco-bala”. Com a proliferação dos âmbitos de integração2 , um Presidente seguidamente é obrigado a abraçar aquele com quem trocava farpas na semana anterior, e voltará às turras na seguinte.
Alguns brasileiros, sob o manto do nacionalismo, seguem procurando comunistas sob o tapete, e simulam frêmitos patrióticos ao ver Lula perto de Evo Morales ou de (cruzes!) Hugo Chávez, como se estes fossem realmente socialistas. Ainda menos raros, embora mais dissimulados, são os “patriotas” que abominam os vizinhos mais pobres, e só respiram aliviados quando nosso presidente está junto aos chefes de Estado do Hemisfério Norte.
Note-se que existe, nestes novos governos autoproclamados de esquerda, algo definitivamente positivo: o consenso sobre a imperiosa necessidade da integração sul-americana. É inconteste a semelhança entre os problemas mais graves da região, principalmente as desigualdades sociais. Daí as convergências programáticas, em particular a resistência à acachapante hegemonia econômica do mundo desenvolvido.
O inquietante, porém, é que este consenso não se traduz na prática. Seguem existindo, além de primários e desgastantes conflitos entre Estados, inaceitáveis óbices à integração, a dificultar a vida das empresas e dos cidadãos, sobretudo nas regiões de fronteira. A falta de tangibilidade dos discursos corrói, lenta e perigosamente, a credibilidade da idéia. Cresce o júbilo daqueles que, ao longo da história, souberam erigir os seus interesses corporativos e setoriais em interesses nacionais.
Nada justifica, portanto, a irrelevância do Mercosul nas agendas políticas nacionais, especialmente na brasileira. Decepcionados, os governos do Paraguai e do Uruguai vêem crescer, em suas disputas políticas internas, o número de defensores dos tratados bilaterais com os Estados Unidos (ou com qualquer um que ofereça maiores vantagens comerciais ou políticas), em detrimento de uma aliança regional. De quebra, o Uruguai foi duramente atingido por um constrangedor conflito com a Argentina, que recorreu ao Tribunal Internacional de Justiça, em Haia (Holanda), para resolver um problema caseiro3 .
O Brasil, por sua vez, prioriza a aliança com a Argentina. Ambos seguem absortos em suas complexas políticas internas, deixando o bloco nas mãos de burocratas tão convictos que costumam sair das reuniões comentando que o Mercosul nunca vai dar certo. Os altos escalões dos governos não se inteiram da realidade mercosulina, resignados em sua síndrome de cúpulas (em espanhol, cumbrismo – seria a doença infantil do intergovernamentalismo?).
Mas, afinal, poderia o Mercosul tornar-se uma ferramenta para o desenvolvimento sustentável da região e, por conseguinte, um instrumento a serviço das forças progressistas dos governos?
Reformar instituições caras, opacas e ineficazes
Para o primeiro semestre de 2008, prevê-se a realização de ao menos uma centena de reuniões oficiais do bloco. Estima-se que elas onerem os cofres dos Estados, semestralmente, em mais de US$ 1 milhão, contando apenas custos de logística, passagens e diárias.
O Mercosul possui apenas 7 instituições4. Contudo, elas desmembram-se em incontáveis grupos ad hoc, comitês, subgrupos e comissões. Calcula-se que existam, hoje, quase duas centenas de “foros” negociadores, mas desprovidos de poder decisório. É que o Mercosul padece de concentrações de poder em cascata.
Todo o produto da negociação afunila-se nos escassos 3 órgãos que podem tomar decisões: o Conselho (composto por Chanceleres e Ministros da Economia); o Grupo e a Comissão de Comércio (diplomatas e outros funcionários). A Cúpula presidencial e as numerosas Reuniões de Ministros não têm poder decisório. O Conselho reúne-se ao final de cada semestre, período em que se concentram as decisões. Na correria, produzem-se dezenas de normas, parte delas irrelevante ou que jamais será aplicada.
A Presidência do Mercosul (dita pro tempore) e, com ela, o local das reuniões, estendem-se a todos os foros. É exercida por um semestre, em rodízio e por ordem alfabética. Atualmente, por exemplo, o bloco foca-se em Buenos Aires. O nomadismo institucional dificulta sobremaneira o acompanhamento das negociações, tanto para os Estados como para os cidadãos, além de concentrar poder na burocracia anfitriã. Já os países menores, quando presidem, enfrentam grandes dificuldades para organizar e ao mesmo tempo atuar de modo qualificado nas reuniões.
No seio dos governos, especialmente no caso do Brasil, há um claro predomínio da Chancelaria sobre os demais Ministérios, embora os temas da agenda sejam variados: comércio, saúde, educação, justiça, meio-ambiente, direitos humanos etc.
Finalmente, o calendário oficial5 não indica a pauta das reuniões, tampouco quem será convidado a delas participar ou os documentos que as instruem. Há temas que passam anos saltando de foro em foro. Grande parte dos anexos às atas segue confidencial, em particular as posições defendidas por cada Estado.
Logo, para saber o que ocorre no Mercosul, é preciso estar dentro dele. Uma “grande família”, burocrática e pouco integracionista, é quem realmente define, hoje, o destino real da integração. Mas com um novo quadro institucional, que conteúdo a ela se poderia dar?
Consolidar e ampliar uma integração positiva
Em sua origem, o Mercosul limitava-se à chamada integração negativa, que significa a eliminação de obstáculos ao comércio. Neste ponto, devido, entre outros fatores, às crises econômicas que assolam periodicamente os seus sócios, o bloco não conseguiu chegar a uma política comercial comum, e mantém perfurações surpreendentes em sua união aduaneira.
A alta do incremento comercial, referida cediçamente como indicador de sucesso no Mercosul, relativiza-se diante dos níveis iniciais muito baixos de intercâmbio, nos anos 1990. Mas a integração regional pode ser algo bem maior do que o comércio, como bem compreenderam outras regiões do mundo. Ademais, agir positivamente sobre as estruturas estatais termina por favorecer, no futuro, de modo direto ou indireto, o comércio.
Em 2004, por pressão do Paraguai e do Uruguai, foi criado o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM)6 , a fim de minimizar as assimetrias estruturais entre os Estados (entre elas, as de infra-estrutura e nível de desenvolvimento) e as que se origin
am das políticas públicas (principalmente a capacidade de cada economia se beneficiar da integração regional). Trata-se, por conseguinte, de um instrumento típico da integração positiva.
No entanto, o FOCEM é ainda modesto. Primeiro, porque seu orçamento para 2006-2008 é de apenas U$ 225 milhões. Segundo, sua concepção é de viés nacional, e não regional. Ora, as regiões mais pobres do Mercosul não estão necessariamente no Paraguai e no Uruguai. Assim, o Fundo deveria privilegiar projetos regionais, ou seja, que beneficiem a mais de um país, escolhidos segundo o retorno direto e real que trarão em matéria de integração. Desafortunadamente, os percentuais de contribuição e destinação são fixos, e por país: a Argentina aporta 27% do orçamento e recebe 10%; o Brasil dá 70% e colhe 10%; o Paraguai traz 1% e leva 48%; o Uruguai dá 2% e recebe 32%7 . A Venezuela ainda não faz parte do FOCEM.
Assim, é preciso ampliar e aprofundar os fundos regionais, além de neles centralizar a cooperação internacional abundante que o Mercosul capta, mas segue gerida individualmente pelos Estados. Urge, também, difundir o FOCEM e estendê-lo a atores não governamentais.
A adesão da Venezuela: muito barulho por nada
Quando lembra dele, e apesar de seus percalços, a população dos Estados Partes é favorável ao Mercosul. Espontaneamente, e há mais de 15 anos, profissionais, estudiosos e artistas reúnem-se, criando uma dimensão regional de conhecimento mútuo, intercâmbio e cooperação. Até encontro de marionetes o Mercosul já teve.
A opinião pública opõe-se à integração apenas quando não a entende. Por exemplo, quando há uma controvérsia comercial entre Argentina e Brasil, é difícil para um leigo entender que uma concessão feita pelo Brasil pode ser muito pequena, comparada à tudo que ele já ganhou com o Mercosul, política e economicamente, e ainda pode ganhar.
Contribuem para semear a incompreensão os setores econômicos que crêem só haver Mercosul quando há negócios. Toscas elites, incapazes de entender que a integração serve justamente para garantir, no futuro, que haja sempre negócios. De fato, a integração regional exige medidas de médio e longo prazo, por isto padece para encaixar-se em nossa cultura política imediatista.
Um caso emblemático das dificuldades de comunicação é a adesão da Venezuela. Os integracionistas há muito sonhavam com o alargamento do bloco e a parceria deste grande país. Mas alguns (de)formadores de opinião insistem em confundir a Venezuela com Hugo Chávez, quase sempre os mesmos que pouco reparavam em Alberto Fujimori, ex-ditador do Peru.
Há que divergir de Chávez por conceito e não por preconceito. Estar comprometido com um bloco que oferece vantagens concretas pode, precisamente, limitar as pulsões antidemocráticas de qualquer Estado-membro. A adesão ao Mercosul é uma boa herança que Chávez deixará à Venezuela. Por vezes, ele se comporta como um bufão, mas quem atirará a primeira pedra? O presidente dos Estados Unidos?
Se Caracas deseja investir na integração, pode emergir no bloco a noção de políticas públicas regionais, um belo caminho a seguir. Boas iniciativas podem ser extraídas deste novo élan trazido pelos venezuelanos, num processo órfão de liderança e visibilidade. Por isto, a integração regional é bem mais do que política exterior: envolve política interna, setor por setor.
Superar a burocracia e Democratizar a discussão
Se é verdade que a população é simpática ao bloco, dos poderes locais e da sociedade civil organizada pode-se dizer bem mais. A rede Mercocidades, criada por governos municipais e totalmente independente da burocracia do Mercosul, constitui um dos maiores exemplos do imenso potencial integracionista, acumulando grandes feitos, especialmente na área cultural8 . Hoje, enfrenta dificuldades com a ascensão ao poder, em importantes cidades, de alguns provincianos, ou pouco afeitos às relações internacionais, ou que claramente preferem o flerte com os ricos à aliança entre os pobres.
Por outro lado, numerosas e representativas organizações sociais já estão conectadas em redes regionais. Grande parte delas milita ativamente por “mais e melhor Mercosul”9 . No Brasil, setores integracionistas do governo, sob a liderança do Ministro Luiz Dulci, procuram abrir espaço para a cidadania no processo de integração. A tarefa não é fácil, e por diversas razões.
Os foros de maior êxito no Mercosul são justamente aqueles que souberam construir uma autonomia política em relação aos órgãos decisórios do bloco, embebidos do dinamismo do setor que os anima. Exemplo disto é a Reunião das Cooperativas do Mercosul, que fez do bloco um valioso instrumento para difusão e aperfeiçoamento do cooperativismo nos países da região10 .
O inconveniente das dimensões paralelas à decisória (e, felizmente, até Cúpula Social o Mercosul já teve) é o descompasso que se produz, uma vez mais, entre a vontade política declarada e a governança cotidiana. O recém-criado Parlamento do Mercosul poderá ser uma ponte entre estas duas esferas11. Sua maior qualidade é a de associar partidos e parlamentares a um processo que carece de relevância política. Por vezes, um pequeno gesto de apoio pode desbloquear um dossiê que beneficiará milhares de pessoas, contrariando um punhado de burocratas.
O Parlamento pode também catalisar e qualificar a participação social. A maior crítica que se faz às organizações é a da intermitência de seu interesse, e da escassa qualidade de suas propostas. Natural é a dificuldade de participar quando não se sabe aonde ir, como ser convidado, o que será discutido e o que significam as propostas. Resta lutar para que o Parlamento venha a ser uma verdadeira tribuna regional. Seguramente, ele enfrentará, como a sociedade, um grande complicador: a inflação de âmbitos negociadores para temas conexos.
Um partido ou uma organização que trabalhe com saúde pública, por exemplo, deve seguir as negociações do Subgrupo 11 (unidade temática do Grupo). Mas necessita igualmente acompanhar a Reunião de Ministros da Saúde (órgão dependente do Conselho), que, por sua vez, possui diversas subdivisões. Além das dezenas de instâncias especializadas no tema, há a incidência sobre a saúde pública das negociações sobre comércio ou meio-ambiente, por exemplo. E as demais negociações multilaterais em que o Brasil toma assento?
Ora, é preciso evitar o isolamento tem&aacut
e;tico, legitimando, por exemplo, com sua presença, uma pequena reunião marginal sobre um grande assunto. Também a participação à la carte (eufemismo para cooptação), pode comprometer a escassa presença de atores sociais nas reuniões oficiais do Mercosul.
Finalmente, ao constatar que sociedades e governos almejam a integração, é de se perguntar: quem ganha com os seus parcos resultados? Talvez a resposta esclareça outro dilema: os Estados não crêem nos seus acordos ou não estão de acordo sobre aquilo em que crêem?
*Deisy Ventura é professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, IRI-USP.