Socorro, doutor, não consigo dormir
A Escola do Crime surgiu como necessidade de mercado e para cumprir uma função social. O mercado exige níveis cada vez mais altos na área da delinqüência e a educação criminal é a única que assegura aos jovens um trabalho bem remunerado e permanenteEduardo Galeano
Seis moscas ficam zumbindo na minha cabeça e não me deixam dormir. O mosqueiro das minhas insônias, na verdade é muito mais numeroso — digo seis para encurtar a coisa. Descrevo aqui algumas das angústias que atormentam minhas noites. Como se verá, não é pouca coisa. Referem-se nada menos que aos destinos do mundo.
Ficará o mundo sem professores?
Segundo o jornal The Times of India, vem funcionando com absoluto sucesso uma Escola do Crime, na cidade de Muzaffarnagar, na região ocidental do Estado indiano de Uttar Pradesh.
Ali se oferece aos adolescentes uma formação de alto nível para ganhar dinheiro fácil. Um dos três diretores, o pedagogo Susheel Mooch, é encarregado do curso mais sofisticado, que, entre outras matérias, inclui Seqüestros, Extorsões e Execuções. Os outros dois se ocupam de matérias mais convencionais. Todos os cursos incluem trabalhos práticos. Por exemplo, a didática do roubo em rodovias e estradas: escondidos, os estudantes jogam algum objeto metálico sobre o automóvel escolhido; intrigado com o ruído, o motorista pára e então se passa ao assalto, que o docente supervisiona.
Segundo os diretores, a escola surgiu em resposta a uma necessidade de mercado e para cumprir uma função social. O mercado exige níveis cada vez mais altos de especialização na área da delinqüência e a educação criminal é a única que assegura aos jovens um trabalho bem remunerado e permanente.
Receio bastante que tenham razão. E me apavora pensar que o exemplo se vá propagar pela Índia e pelo mundo. Que será — fico-me perguntando — dos pobres professores das escolas tradicionais, já punidos com salários de fome e com a pouca ou nenhuma atenção que lhes dão os alunos? Quantos professores conseguirão reciclar-se e adaptar-se às exigências da modernidade? Dos que conheço, nenhum. Consta que são incapazes de matar uma mosca e não têm talento sequer para assaltar uma velhinha órfã e paralítica. Que irão ensinar no mundo de amanhã, esse bando de inúteis?
Ficará o mundo sem presidentes?
Consta do disse-que-disse malicioso que um certo presidente de um certo país latino-americano viajou a Washington para negociar a dívida externa. De volta, anunciou a seu povo uma notícia boa e uma ruim:
— A notícia boa é que não devemos nem mais um centavo. A ruim é que todos os habitantes, temos vinte e quatro horas para sair do país.
Os países pertencem aos seus credores. Os devedores devem obediência; o bom comportamento se demonstra praticando o socialismo, mas o socialismo ao contrário: privatizando os lucros e socializando as perdas.
— Nós fizemos o dever de casa — disseram, com poucos meses de diferença, Carlos Menem, ainda presidente da Argentina, e seu colega mexicano Ernesto Zedillo.
Do jeito que vamos, dentro em pouco também se vai privatizar o ar, e logo virão os especialistas explicar que quem não paga pelo ar não o sabe valorizar e não o merece respirar. Tudo ou quase tudo se privatizou, digamos assim, na Argentina, no Brasil, no Chile e no México. Nesses quatro países, explicaram que não havia outro remédio para pagar a dívida externa — e os quatro, agora, devem o dobro do que deviam há dez anos.
E essa é outra das fontes de angústia: fico sem sono, pressentindo que um dia destes os banqueiros credores virão desalojar os presidentes e se sentarão nas suas poltronas ao grito de: Basta de intermediários!
E, noite após noite, fico revirando-me nos lençóis e perguntando-me onde irá parar toda essa gente. Onde conseguirá emprego essa mão-de-obra tão altamente qualificada? Irão os presidentes aceitar qualquer tipo de biscate? No McDonald’s, a fila é grande.
Ficará o mundo sem assunto?
O espetacular desenvolvimento da tecnologia tornou possível que todos nós, habitantes globais deste mundo, tenhamos passado mais de um ano — todo o de 98 e uma parte do de 99 — na expectativa do grande acontecimento do fim de século: as façanhas da lingüista Mônica Lewinsky no salão oval da Casa Branca.
A lewinskização globalizada permitiu a todos nós, nos quatro cantos do planeta, ler, ver e ouvir, até o mínimo detalhe, essa epopéia da humanidade. Os grandes meios de comunicação de massa outorgam-nos mil possibilidades de optar entre isto e isto.
Mas isso acabou passando, como também passaram a Grécia e Roma, e a partir daí a grande imprensa, as redes de televisão e as rádios ficaram sem assunto. Estava eu alimentando a esperança de que estourasse outro sexgate quando alguém me contou que, segundo fontes bem informadas, a secretária de Estado Madeleine Albright ia denunciar o presidente por assédio sexual incessante. Mas nunca mais ouvi mencionar o caso e suspeito que se trate de uma fofoca torpe, indigna de ocupar o centro da atenção universal.
E isso também me tira o sono. Agora que os jornalistas passaram a chamar-se comunicadores sociais, que irão eles comunicar à sociedade? De que irão viver? Mais uma multidão de desempregados jogados na rua?
Ficará o mundo sem inimigos?
Já faz bastante tempo que os Estados Unidos e seus aliados da Otan não fabricam uma guerra. A indústria da morte está ficando indócil. Os imensos orçamentos militares precisam justificar sua razão de ser e a indústria de armas não tem onde exibir seus novos modelos.
Contra quem será lançada a próxima missão humanitária? Quem será o próximo inimigo? Quem fará o papel de vilão no próximo filme, quem será o Satã do inferno que virá? Isso me deixa muito preocupado. Estive relendo os motivos invocados para bombardear o Iraque e a Iugoslávia e cheguei à conclusão alarmante de que há um país, e um só país, que reúne todas as condições, todas, todinhas, para ser reduzido a escombros.
Esse país é o principal fator de instabilidade da democracia em todo o planeta, devido ao seu velho costume de fabricar golpes de Estado e ditaduras militares. Esse país constitui uma ameaça para seus vizinhos, a quem invade, com freqüência, desde sempre. Esse país produz, armazena e vende a maior quantidade de armas químicas e bacteriológicas. É nesse país que se situa o maior mercado de drogas do mundo e em seus bancos se lavam milhões de narcodólares. A história nacional desse país é uma longa guerra de limpeza étnica, contra os aborígines primeiro, contra os negros depois; e esse país foi, nos anos recentes, o principal responsável pela matança étnica que aniquilou duzentos mil guatemaltecos, em sua maioria índios maias.
Irão os Estados Unidos se autobombardear? Se invadirão a si próprios? Cometerão os Estados Unidos esse ato de coerência, fazendo consigo o que fazem com os outros? As lágrimas molham meu travesseiro. Queira Deus evitar que se passe semelhante desgraça com essa grande nação, que nunca foi bombardeada por qualquer outra.
Ficará o mundo sem bancos?
Em sua edição de 14 de dezembro de 1998, a revista Time publicou o relatório do Congresso norte-americanos sobre a evaporação de cem milhões de dólares provenientes do tráfico de drogas, no México. Segundo a comissão parlamentar que investigou o caso, foi o Citibank que organizou a viagem dessa narcofortuna através de cinco países, assim como inventou empresas-fantasmas e nomes fantasiosos até conseguir apagar as pistas.
O sistema carcerário norte-americano — com a maior população do planeta — está cheio de jovens pobres e negros, dependentes de droga; mas o Citibank, estrela brilhante do céu financeiro, não foi preso. Na verdade, essa foi uma idéia que não passou pela cabeça de ninguém. E no entanto, a leitura do relatório me deixou ruminando. É verdade que esse grande banco continua livre e prosperando; e que o sabão Citibank, o amaciante Banco Suíço, a água sanitária Bahamas, assim como tantas outras marcas prestigiadas pelas melhores lavanderias continuam batendo, alegremente, recordes de venda no mercado global de artigos de limpeza.
Mas não consigo deixar de pensar que a ameaça se acerca deles.
O que aconteceria se um belo dia a guerra contra as drogas deixasse de ser uma guerra contra os drogados, que pune as vítimas, e se as armas corrigissem a pontaria, mirando mais acima? Agora, que a economia morreu e só existem as finanças, o que seria do mundo sem bancos? E o que seria do pobre dinheiro, condenado a perambular pelas ruas, como o fazem as pessoas sem casa onde morar? Só de pensar nisso, sinto um aperto no coração.
Ficará o mundo sem mundo?
Um dia de outubro de 98, em plena Era Lewinskiana, descobri uma notícia insignificante, perdida no pé-de-página de algum jornal. Três organizações ambientalistas — WWF International, New Economics Foundation e World Conservation Monitoring Centre — haviam chegado à conclusão de que, nos últimos trinta anos, o mundo perdeu cerca de um terço das suas riquezas naturais. A maior catástrofe ecológica desde a época dos dinossauros: a recuperação das plantas e animais extintos levaria pelo menos cinco milhões de anos.
Desde que li essa pequena notícia sem importância, outra obsessão me deixa sem dormir. Não consigo tirar da cabeça o pressentimento de que, em algum tempo, em algum lugar, animais e plantas nos farão um juízo final. Chego ao delírio de imaginar-nos a todos, acusados por fiscais que nos apontarão, com a pata ou o galho:
— O que é que vocês fizeram deste planeta? Em que supermercado o compraram? Quem lhes deu o direito de nos maltratar e exterminar?
E vejo uma corte suprema de animais e vegetais lendo a sentença de condenação eterna contra o gênero humano.
Pagarão os justos pelos pecadores? Passarei minha eternidade no inferno, junto a bem-sucedidos empresários exterminadores do planeta, assim como seus políticos comprados e seus chefes guerreiros e seus marqueteiros publicitários que vendem veneno envolvendo-o com celofane verde?
Um suor gelado me faz tiritar o corpo. Até agora, achava que o juízo final era caso para Deus. Na pior das hipótes