Somente para meus olhos
Há uma dificuldade institucional e corporativa das Forças Armadas no Brasil em compreender e aceitar a subordinação ao poder civil. Isso se reflete no histórico engajamento político de militares e na relutância em conectar os serviços de inteligência do país aos três poderes, o que enfraquece nossas experiências democráticas
A subordinação dos militares ao poder civil é unanimidade nos estudos acadêmicos sobre relacionamento civil-militar em regimes democráticos. Não há democracia sólida se os militares não aceitarem e serem comandados de fato por um poder civil. A lógica é que as instituições civis, ao representarem o desejo popular, definem a política a ser seguida. Aos militares, cabe o papel de executar essas políticas, sejam elas quais forem. Esse balanço é o que garante o equilíbrio dos que controlam a estabilidade constitucional e a soberania nas democracias.
Esse equilíbrio jamais ocorreu no Brasil – e agora se distancia ainda mais com a quantidade de militares ocupando cargos-chave no governo de Jair Bolsonaro. Nossos militares – originalmente a elite colonial e, posteriormente, imperial – sempre foram agentes políticos domésticos com forte engajamento, atuando como garantidores do status quo político. Ainda que essas ameaças não fossem assim tão claras, a percepção de “estabilidade nacional” vinda dos quartéis prevaleceu no processo de independência de Portugal, na proclamação da República, na implantação e desmonte do Estado Novo e no regime militar de 1964-1985, para citar apenas os principais envolvimentos diretos na política doméstica.
Parece haver uma percepção de que existe um despreparo dos civis para a condução dos temas ligados à defesa nacional, o que demandaria uma “tutela” dessas questões pelos militares até que os civis, de fato, se mostrassem preparados. O problema é que esse momento parece nunca chegar – e não é por falta de preparo dos civis.
Um dos exemplos disso é o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que reúne os órgãos federais de (contra)espionagem. Ainda que hoje, por decreto de 2018, o Sisbin seja composto por 39 órgãos federais, o principal deles é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), herdeira direta do Serviço Nacional de Informações (SNI), do regime militar.
Criado em 1964, imediatamente após o golpe que depôs João Goulart, o SNI sobreviveu até depois do fim do regime. O órgão da ditadura foi dissolvido apenas por Fernando Collor, que criou a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). A Abin foi institucionalizada apenas em 1999, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, no mesmo ano de criação do Ministério da Defesa. Nova no nome, mas velha nas práticas e no obscurecimento.
Não que se espere que um serviço secreto seja absolutamente transparente, o que seria um contrassenso à sua atividade fundamental. O estabelecimento da Política Nacional de Inteligência, em 2016, da Estratégia Nacional de Inteligência, em 2017, e do Plano Nacional de Inteligência, em 2018, são passos importantes para a transparência das agências do Sisbin. Mas não são suficientes, em especial pela ausência de controle e supervisão dos serviços de inteligência das Forças Armadas.
A falta de subordinação ao poder civil nesse campo é vista em elementos concretos, tais como ausência de supervisão dos gastos, de um marco legal de operação e limites das agências, de um controle contínuo e de uma prestação de contas aos poderes Legislativo e Judiciário. A Abin coleta as informações e as entrega ao Executivo federal, hoje, pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Mas as informações ali chegam prontas, sem ciência de como foram coletadas – e o mais agravante: já previamente filtradas.
As agências de inteligência brasileiras ainda parecem seguir a mesma política conduzida pelas Forças Armadas para o Ministério da Defesa: isolar e manter o controle. Apesar de todo o organograma, o ministério é ainda fraco institucionalmente e atua apenas nos espaços deixados pelos comandos independentes das três Forças. Exemplo disso é a incapacidade, mesmo já com duas décadas de existência, de controlar o orçamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que seguem operando independentemente uns dos outros, em larga medida.
Essa liberdade dos serviços secretos é problemática porque a desconexão entre a prática de coleta de informações e o propósito político para uso delas as torna inócuas ou, pior, objeto de manipulação do poder. Não tendo ainda saído do espírito estabelecido pelo SNI e sem uma clara definição e controle de alvos e coletas de dados, nossos espiões podem estar se dedicando muito mais à caça de “subversivos” (termo usado durante o regime militar para denominar todos os opositores domésticos ao governo) do que a agentes ligados ao crime organizado, por exemplo. Enquanto o limite, o escopo e os métodos de atuação dos espiões não forem claramente definidos, haverá uma névoa invisível perigosa à democracia.
Há alguns anos, em fóruns anônimos na internet, nossos arapongas reclamavam da precariedade institucional, da falta de propósito e do saudosismo dos anos da ditadura que imperava na Abin. De lá para cá, mudou-se a ave mascote para o carcará. Novo bico, velhas penas.
A ausência de um claro controle civil no Ministério da Defesa e nas agências de inteligência reflete a inquietude da caserna brasileira em aceitar esse comando. Se o respeito à hierarquia é um dos princípios fundamentais da formação e atuação militar, esse respeito, em tempos recentes, tem parado no generalato, não chegando ao comandante em chefe e, por vezes, nem mesmo aos próprios comandos das Forças. Isso sem falar no ministro da Defesa, que, com raras exceções, tem papel esvaziado e pouco expressivo no comando dos militares.
Exemplos de insubordinação não faltam nos anos recentes, sejam de alta ou de baixa patentes. O maior deles é do próprio vice-presidente da República. Enquanto ainda estava na ativa, em 2015, o general Hamilton Mourão foi demitido do Comando Militar do Sul pelo então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em razão de declarações que fez chamando, entre outras coisas, de incompetente a então presidenta da República e comandante em chefe das Forças Armadas, Dilma Rousseff. Em 2017, o mesmo Mourão foi novamente desligado do cargo de secretário de Economia e Finanças do Comando do Exército por declarações sobre o “balcão de negócios” do presidente Michel Temer, seu superior constitucional máximo.
À época, as reprimendas às insubordinações de Mourão foram criticadas por serem muito brandas, ao que Villas Bôas respondeu que não desejava criar um mártir. Não foi preciso criá-lo, pois o palco político de Mourão o levou (por ora) à Vice-Presidência da República. A mensagem passada à sociedade não poderia ser mais clara: a insubordinação militar e a atuação política na caserna são não apenas toleradas, como também compensam. Não é à toa que Mourão demonstrou tanto interesse em mudar a Constituição Federal, que proíbe a atuação política de militares da ativa e os obriga a respeitar a hierarquia de comando, hierarquia essa que deve ter obrigatoriamente, no posto máximo do Executivo Federal – e, portanto, comandante em chefe das Forças Armadas –, um civil.
O princípio da subordinação dos militares ao poder civil não quer dizer que os civis sejam melhores que os militares, e sim o oposto: que os militares não são, per se, melhores que os civis. Essa é a mensagem urgente que deve ser compreendida tanto pela caserna quanto pela sociedade civil se desejamos recompor um regime democrático sólido em nosso país. E, se esse é o desejo, a desmilitarização dos serviços secretos brasileiros e a retirada de sua névoa antidemocrática parecem ficar agora mais distantes com o retorno dos militares ao poder e da militarização da política no Brasil.
*Lucas Pereira Rezende é doutor em Ciência Política e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É autor de Sobe e desce: explicando a cooperação em defesa na América do Sul, Editora Universidade de Brasília, 2015.