Suicídio e a raridade da escuta
As campanhas de prevenção frequentemente evocam a fala: “falar é a melhor solução”. Mas há realmente espaços para a escuta? E se há, como são esses espaços? Além disso, se falar é uma estratégia viável de prevenção por que a ênfase nesse aspecto parece ocorrer apenas no mês de setembro?
A campanha “Setembro Amarelo” ganha cada vez mais visibilidade na prevenção do suicídio. As campanhas de prevenção respondem ao fato de o suicídio ser mundialmente uma questão de saúde pública. São assustadores os dados epidemiológicos especialmente quando vemos que os suicídios aumentam em jovens. E isso parece causar perplexidade maior porque nos soa inconcebível querer deixar a vida, mais ainda quando jovens.
Mas, quanto há de questionamento sobre as nossas formas de viver atuais? E quanto há de questionamento sobre nossas formas de lidar com as angústias frente às mais diversas situações existenciais? Quanto há de reflexão sobre os sofrimentos que podem estar contribuindo para o mal-estar (ou mal ser) que leva os jovens a pensar em deixar a vida?
As campanhas de prevenção frequentemente evocam a fala: “falar é a melhor solução”. Mas há realmente espaços para a escuta? E se há, como são esses espaços? Além disso, se falar é uma estratégia viável de prevenção por que a ênfase nesse aspecto parece ocorrer apenas no mês de setembro?
Forma de morrer
É importante lembrar que suicídio não é um tema exclusivo da saúde mental, ao contrário do que parece estar sendo naturalizado. O suicídio é uma forma de morrer e a morte é um processo que é parte da existência, do inevitável.
Nesse sentido, o suicídio é um tema do âmbito dos modos de existência, nos fala de formas de vida que podem ser percebidas como suportáveis ou insuportáveis. Assim, as análises de Durkheim (sociólogo francês), que tem mais de um século de existência não estão superadas. Pensar o suicídio é pensar em dignidade e precariedade de condições de vida. É pensar nas condições sociais nas quais se dão o mal-estar e a constituição da subjetividade humana.
É frequente que os estudiosos do tema relacionem a angústia psíquica a vontade de morrer. E é também frequente que nos remetam a pensar nas condições sociais que produzem mal-estar psíquico.
Desde Freud o suicídio é associado a fortes dores emocionais, a angústia. E é inviável pensar que essas ocorram sem interação com o social. O ser humano é constituído nas e com as relações sociais.
O modo mais ou menos integrado com que esse processo se dá pode produzir mais ou menos angústia, mais ou menos conciliação consigo próprio.
Mal-estar social
Fala-se muito, em psicanálise, na questão do mal-estar social. Um mal-estar que seria uma forma de resposta psíquica a altas demandas de performance, ideais praticamente inalcançáveis de conduta e desempenho (totalmente ligados a competitividade/produtividade).
Mas pouco se fala de mal ser. O indivíduo parece cada vez menos integrado subjetivamente para sequer perceber o mal-estar. É como se o entorno social proporcionasse ínfimas condições de constituição enquanto existência, enquanto ser.
Winnicott (psicanalista inglês) pode ser considerado um psicanalista do ser. Nisso alguns estudiosos o aproximam de Heidegger. Winnicott preocupa-se em averiguar as condições nas quais o indivíduo se constitui como individualidade integrada e genuína, criativa, capaz de produzir suas próprias condições, capaz de escolher dizer sim ou não às convocações da realidade, às demandas ambientais/sociais.
Em uma sociedade como a nossa quase não há espaço para constituir-se subjetivamente de forma adequada. É preciso, desde cedo, desde a infância, responder, competir, muitas vezes, adequar-se em demasia, apequenar-se.
Responder e se adequar às demandas do mundo. As crianças cada vez mais são espécies de microempresários do que serão amanhã e cada vez menos sujeitos em início de processo inventivo de si.

Adolescência
Na outra ponta, os adolescentes parecem ser atualmente mais os rótulos de suas incapacidades do que as perspectivas da possibilidade de provar e decidir seu caminho no mundo. Os sujeitos respondem. E quando isso ocorre cada vez mais cedo a consequência é o silenciamento da palavra e da própria individualidade.
Aquele que não tem voz, não é visto. O que não é visto não é reconhecido, e o que não se reconhece, é como se não existisse. Se não há espaço para reconhecimento de quem somos, é como se não houvesse lugar para existirmos.
Estamos vivendo numa racionalidade social que cada vez mais dificulta os processos saudáveis de constituição psíquica. Daí a dificuldade de sentir-se real, genuíno enquanto ser. Aí está uma espécie de síntese (bastante afinada) do que Winnicott poderia chamar de mal ser na sociedade, mal ser no mundo.
Ser genuíno
A vontade de deixar a vida se daria nesse âmbito, de acordo com Winnicott. Se há apenas a convocação para adequações e pouco espaço para a criação genuína e se é praticamente impossível existir socialmente de outra forma que tipo de colorido e de potencial de vida haveria? Quais as oportunidades de ser genuíno verdadeiro si mesmo, na atualidade?
Nesse sentido, quando dizemos que é possível e necessário falar para prevenir o suicídio levamos em consideração o ínfimo espaço cotidiano de escuta daqueles que podem estar à margem dos ideias de normalidade, produtividade e satisfação? Ou antes, levamos em consideração o ínfimo espaço social de visão do outro?
Pode-se afirmar que é preciso falar de suicídio, mas é preciso ver e reconhecer potenciais de vida. É preciso falar de suicídio, mas para isso há que se discutir quais condições de vida são inaceitáveis de serem levadas adiante, inaceitáveis de serem naturalizadas.
Recriar condições
É preciso falar de suicídio, não apenas para evitar mortes a qualquer custo, mas sobretudo para sermos capazes de recriar condições de existência e de subjetividade dignas de serem experimentadas.
Angústias precisam de espaço. E é desses espaços que carecemos atualmente. Podemos fortalecer as ações e a campanha Setembro Amarelo. Mas isso não pode ser feito com funis, com recortes do real. Os espaços de fala são a abertura do cuidado necessário para a dignidade do bem viver. Nosso e do outro. E eles passam e ultrapassam o âmbito da saúde mental; são um campo de abrangência múltipla, histórica, política e social, no qual as subjetividades se constituem.
Flávia Andrade Almeida é psicóloga clínica e hospitalar, especialista em Psicologia da Saúde, Psico-oncologia e Prevenção do Suicídio. Mestranda em Filosofia (Suicídio na Biopolítica – estudo à luz dos escritos de Michel Foucault). Autora do blog “Psicologia e Prevenção do Suicídio”.