Tabuleiro sem limites
A impressão que tenho ao ler e reler qualquer um dos textos de Fernando Sabino é a de que tudo nele era puramente literárioRenata Miloni
“Qual foi o último acontecimento literário, independentemente da sua natureza, que mais lhe tocou?”, perguntou Luís Carmelo, editor do site PNETLiteratura, a João Tordo, escritor português. A resposta de Tordo foi a recuperação de uma doença que debilitou José Saramago por um tempo. Ao ler esta declaração, comecei a pensar no quanto os escritores que gostamos estão presentes em nossa vida e qual é a real importância daqueles a quem chamamos de preferidos.
Com a recente morte do americano David Foster Wallace, dois assuntos passaram a ser tratados com freqüência em jornais e blogs: a morte na literatura e o significado dos escritores para quem os acompanha. Li comentários comoventes de pessoas que sentiam Foster Wallace como um amigo ou membro da família. O que vi naquelas palavras foi a dor da perda de alguém realmente querido, alguém que fez mais por esses leitores do que tantos outros mais próximos a eles. Tudo isso, na verdade, foi um conjunto de várias formas, sempre belas, de agradecimento. Porque, no fundo, a vontade de um leitor talvez seja agradecer por tudo o que determinado autor escreveu.
Se a pergunta de Carmelo fosse feita a pessoas de inúmeras partes do mundo, com certeza a morte de Wallace seria a resposta imediata. A minha infelizmente não foge do assunto: seria também a de uma morte. Ao contrário de João Tordo, que, de certa forma, celebrou a vida. Em 2004, eu estava com muitos planos voltados para a literatura. Tentava estar perto de escritores que me deixariam próxima também de outros que já não estão mais aqui. Foi quando tive a certeza de que aquele escritor, que tão bem me fazia e com quem aprendi tanto, seria a parte principal de um projeto de extrema importância. Mesmo sabendo de sua doença, não fui capaz de prever que tudo mudaria e acabaria com sua morte. E como lidar com algo tão terrível e anunciado, mas repentino?
O terceiro lado
Quando soube do falecimento de Fernando Sabino, a sensação foi a de que não havia sobrado qualquer pedaço para desmoronar. Não foram meus projetos e sonhos ? que tinham nele uma enorme, se não única, razão de ser ? que acabaram. Ao mesmo tempo em que fui incapaz de lidar com esse fim, olhava para os lados e não conseguia entender por que a literatura de Fernando não fazia falta para as pessoas que conviviam comigo de alguma forma. Como isso era possível? Foi-se alguém que tanto fez por mim sem saber, em quem eu já não teria mais a chance de dar um simples abraço. E talvez por isso eu tenha compreendido tão bem todos os que demonstraram tamanho pesar com a morte de David Foster Wallace.
No desespero da distância, que já existia antes e naquele dia só se tornou permanente, minha vontade de estar perto de Fernando havia aumentado descomunalmente. E assim segue com os anos. A impressão que tenho ao ler e reler qualquer um de seus textos é a de que tudo nele era puramente literário por não ter qualquer razão de separar a pessoa do escritor. Fernando Sabino, de tantas maneiras, continua a ser literatura. Era como ele mesmo se definia:
A literatura me sustenta não somente no sentido econômico, como também existencial. Só atinjo a minha verdadeira dimensão, e presto contas a Deus, através da literatura [1].
Que momento horrível, aquele onze de outubro de 2004 (um dia antes do aniversário de Sabino), para descobrir que a literatura pode, além de tão mais, ser uma fonte constante de tristeza. Isso quando levada a sério, quando se admite que ela serve para alguma coisa. Mas não está exatamente nela a cura para o que provoca? Assim como dizia que o tabuleiro de damas “não é preto com quadrados brancos nem brancos com quadrados pretos: é de outra cor com quadrados pretos e brancos”, Sabino não era este nem aquele. Ele era outro. Sua literatura nunca foi feita por somente dois lados de uma mo