Tanatoeconomia, a economia política da morte
O primeiro caso da Covid-19 confirmado no Brasil foi no dia 26 de fevereiro e, na primeira semana, ninguém morreu. Carnaval, é disso que o Brasil é feito. Na segunda semana, ninguém morreu. No Carnaval, todo mundo se encontra, pobre ou rico, preto ou branco, patrão ou trabalhador. Na terceira semana, ninguém morreu. O Brasil do Carnaval é abençoado, sem desastres naturais e o futuro pertence a essa nação: Deus é brasileiro! Na quarta semana, dezoito pessoas morreram. Na quinta semana, outras 114 morreram
Se a única coisa que de o homem terá certeza é a morte; a única certeza do brasileiro é o Carnaval no próximo ano.
Gracialiano Ramos
Thánatos significa morte em grego, oposto de bio. Na mitologia grega, Tânato1 era a personificação da morte. Ao contrário de Sísifo, que persuadiu Tânato elogiando sua beleza e conseguiu acorrentá-lo e estancar a morte provisoriamente, no Brasil, país da desigualdade com passado-presente colonial escravocrata, a morte nunca arrefeceu. Ao contrário, a orientação da economia política da morte, a tanatoeconomia, só tem agravado os problemas de uma nação tão assimétrica, em especial para pobres e negros.
A necropolítica, como formulada pelo filósofo camaronense Achille Mbembe (2003), diz respeito à arbitrariedade violenta do Estado em decidir quem deve viver e quem deve morrer. Pense em Ághata, Evaldo Rosa e João Pedro. A tanatoeconomia é o braço econômico da necropolítica, formulada a partir do tripé austeridade fiscal permanente, retirada de direitos sociais e manutenção de privilégios de propriedade. Se o capitalismo já traz consigo a tendência-essência à desigualdade social, a tanatoeconomia a conduz às suas últimas consequências. Assim como o neoliberalismo pode ser compreendido como a negação do liberalismo social e, ao mesmo tempo, a segunda negação do liberalismo clássico2, a tanatoeconomia é a segunda negação da vida.
Figura 1. Homicídios de pessoas negras e não negras, 2000-2017*
Fonte: elaboração própria baseada nos dados do Atlas da Violência (IPEA). *O período se refere à série histórica disponível no Atlas, o que não significa dizer que a situação dos negros em algum momento anterior tenha sido melhor no país.
O tema da violência no Brasil nunca deixou de ser chocante. A quantidade de homicídios, uma das expressões mais brutais da violência, apresenta uma trajetória crescente entre 2007 e 2017, passando de 60 mil somente no ano de 2017. A escalada também se observa em termos relativos, com a taxa de homicídios passando de 30 a cada 100.000 habitantes, em 2017, de acordo com o Atlas da Violência (IPEA, 2019). No entanto, a trajetória é de queda para as pessoas não negras (Figura 1), ao passo que o grupo social mais atingido é formado por homens negros, em geral com baixa escolaridade, jovens ou de meia idade e solteiros, sendo a taxa de homicídios relativamente maior no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
O que a violência tem a ver com a economia? Evidentemente, tudo. São inúmeros os estudos que relacionam as condições socioeconômicas (absolutas e relativas, ou seja, a desigualdade importa) com a exposição à violência. Voltando ao Atlas da Violência, em 2016, os dez municípios menos violentos tinham 0,6% dos habitantes na extrema pobreza, 0,5% com saneamento básico inadequado e 10,3% de taxa de desocupação entre jovens de 18 a 24 anos. Mas, para os dez municípios mais violentos, o cenário era diferente: 5,5% das pessoas em extrema pobreza, 5,9% com saneamento básico inadequado e taxa de desocupação de 19,8% de jovens na mesma faixa etária (IPEA, 2018).
A violência, entretanto, não é a única que mata. Condições precárias de moradia, falta de comida ou subnutrição, acesso restrito à água potável, saneamento básico precário e falta de atendimento médico-hospitalar, entre outros fatores, também podem matar e reduzir a expectativa de vida ao nascer. Tudo isso está relacionado ao acesso – seja pela renda ou pela provisão pública de bens e serviços – que é, em sua maioria, tratado como direito pela Constituição. Mas, a capacidade do Estado em garantir essas provisões é extremamente reduzida quando a tanatoeconomia se coloca como orientação de política econômica predominante, sacralizando a austeridade fiscal3 e impondo recorrentes reformas estruturais para reduzir o gasto social.
O imbricamento entre a redução do gasto público com a saúde e as condições inadequadas da infraestrutura médico-hospitalar para fazer frente à pandemia é notório. A Emenda Constitucional 95 é responsável pela redução de mais de R$ 20 bilhões no setor da saúde, em 2019. Entre 2008 e 2018, foram 40 mil leitos de internação a menos disponíveis para o Sistema Único de Saúde (redução de 12%), ao passo que os leitos não relacionados ao SUS aumentaram em 15,7% no mesmo período. Austeridade e desigualdade se encontram na escolha de quem terá maior probabilidade de morrer.
A lógica mais geral da austeridade fiscal é materializada, em parte, através de sucessivas ondas de reformas no aparato legal que delimita o raio de atuação do Estado na proteção social. Ao não entregar o que promete – crescimento da economia e do emprego – as reformas recondicionam os parâmetros sob os quais o eventual próximo ciclo de crescimento econômico e criação de empregos irão operar. Pode-se pensar, como exemplo, nas características das ocupações que irão prevalecer quando (e se) a economia voltar a crescer, totalmente condicionadas à reformulação das leis trabalhistas de 2017, em que as condições de alocação da força de trabalho em termos de contrato, jornada e remuneração foram flexibilizadas em favor dos empregadores.
Os defensores da austeridade fiscal argumentam, grosso modo, que o caminho para o crescimento econômico passa necessariamente por “desinchar” o Estado – redução do gasto social e da tributação, privatizar e mais liberdade para os empregadores manejarem a força de trabalho – e, então, os investimentos privados nacional e internacional retomarão a pujança econômica. O único detalhe é a falta de comprovação teórica e prática dessa visão, o que nos leva a formular o conceito de tanatoeconomia: a promessa de crescimento é colocada no plano retórico como forma de chantagem na imposição de lógica sabidamente falsa, socialmente cruel e garantidora de privilégios em tempos de crise.
Austeridade fiscal permanente como antiprojeto nacional de desenvolvimento
A economia brasileira não estava lá essas coisas antes da chegada do coronavírus. A agenda de austeridade fiscal permanente, que anuncia a “quebra do Brasil”4 e promete a retomada do crescimento econômico, tem se mostrado um fracasso desde 2015 em meio ao ambiente internacional de intensa concorrência e taxas de juros próximas de zero ou negativas. O teto do gasto público (2016) e as reformas trabalhistas (2017) e previdenciária (2019) prometeram gerar emprego e não cumpriram, resultando apenas em um Estado menos capaz de amparar a população, em trabalhadores mais desprotegidos5 pela regulação pública do mercado de trabalho e em condições mais restritas de acesso ao direito previdenciário.
Figura 2. PIB e taxa de desocupação, 2012-2020*
Fonte: elaboração própria com dados da PNADC (IBGE).
*Para 2020, as taxas se referem ao primeiro trimestre e o PIB corresponde à estimativa do Banco Central.
Não obstante a estagnação econômica dos últimos anos, há tendências de longo prazo que circunscrevem os problemas recentes. A perda de participação da indústria de transformação no PIB, por exemplo, é flagrante desde a abertura econômica desorganizada da década de 1990, o que traz consigo a deterioração de uma série de ocupações de maiores salários médios6, qualificação, produtividade e valor agregado. Por ser um setor bastante dinâmico, a indústria é capaz de mobilizar diversos subsetores e negócios adjacentes em torno de suas atividades, tanto cadeias de suprimento de matéria prima e bens intermediários, como serviços especializados e distribuidores nos comércios associados. A maior parte dos empregos criados nesse circuito tende a se enquadrar na formalidade, o que assume grande importância em mercados de trabalho desestruturados e heterogêneos, como o brasileiro. Ao final da década “perdida” de 1980 a participação da indústria de transformação no PIB chegou a 27,3% como resultado de um longo esforço de industrialização das cinco décadas anteriores. Em 2019 essa relação estava em 11,3%, a menor da séria histórica iniciada em 1996.
Figura 3. Evolução do emprego formal e participação do emprego na indústria de transformação, 1985-2018
Fonte: elaboração própria com dados da RAIS (1985-2018).
Diversos fatores acumulados e combinados podem ser considerados como causas da “desindustrialização” e da incapacidade da economia brasileira em gerar empregos acima de dois salários mínimos. Por um lado, tem-se o câmbio historicamente pouco competitivo e volátil, a taxa de juros básica sistematicamente elevada e acima da média dos países em desenvolvimento, a moeda periférica não conversível, a estrutura bancária oligopolizada e a fragilidade do sistema de financiamento de investimentos de longo prazo. Por outro lado, mas associado aos anteriores, permanece a dependência tecnológica e a reduzida capacidade de investimento em pesquisa e tecnologia, evidenciadas na desarticulação da estrutura produtiva brasileira com as cadeias globais de valor. Esses elementos sintetizados refletem a completa ausência de um projeto de desenvolvimento nacional de longo prazo ou outro qualquer sentido de transformação social mais radical.
Independente de qual for a combinação de elementos que melhor explique a estagnação econômica dos últimos anos e a desaceleração do crescimento das últimas décadas, a resposta não pode ser encontrada na agenda de austeridade fiscal permanente, que na verdade é a antítese de projeto nacional, um antiprojeto de país. Não há precedentes internacionais que comprovem que a adoção desta agenda tenha desenvolvido economicamente algum país, pelo contrário, ela é, via de regra, acompanhada de elevação do desemprego e retirada de direitos sociais. Em 2019, mais de 170 mil pessoas foram jogadas para a pobreza extrema.
Em 2020, no entanto, parece haver uma “conjuntura da conjuntura” com o isolamento social e a paralisação parcial das atividades produtivas e comerciais. A economia, que se arrastava, fica de joelhos, implorando por coordenação e liderança do Estado, que se debate com os grilhões da cosmovisão neoliberal e ensaia, por um lado, ações lentas e insuficientes de amparo aos trabalhadores e à população mais vulnerável e, por outro, mobiliza rapidamente as instituições públicas capazes de dar liquidez ao sistema financeiro, comprando inclusive títulos de dívidas de qualidade duvidosa (“podres”) sem estabelecer contrapartidas minimamente razoáveis.
Pandemia e dilema ideológico: entre o gasto público e a tanatoeconomia
Na sexta semana, o total de mortes chegou 432 pessoas.
A pandemia da Covid-19 encontra no Brasil o combustível perfeito para se alastrar e potencializar seus impactos sociais, formado principalmente pela combinação de crise política e economia rastejante. O enfrentamento do governo central ao contágio do vírus é tenebroso e desorienta a população em relação ao isolamento social e às “curas milagrosas” da doença. O desgaste político é evidente: presidente e governadores agora parecem não falar a mesma língua; no Congresso a base aliada busca se proteger, a oposição se esforça pela frágil unidade pelo impeachment, o centrão tenta um espacinho no governo; o Poder Judiciário, em meio a tantas barbaridades, espera uma barbaridade a mais para transbordar o copo. Trata-se de brincar com a vida. Ou, como propõe a perspectiva lúgubre deste texto, com a morte.
Na sétima semana, as mortes somavam 1.124 pessoas.
A mesma tensão se percebe na dinâmica das atividades econômicas, ou seja, quem entende a necessidade de ficar em casa e tem o privilégio de fazê-lo, fica. Quem subestima os riscos, desafia a ciência ou vê prejuízos em seus negócios, pressiona pelo retorno ao trabalho. Quem não tem escolha, continua como antes, “se virando”, na condição de subcidadania, colocando sua vida ainda mais em risco7. Para os últimos, o sentimento predominante e mobilizador é o medo de não ter condições mínimas de reprodução social de si e de suas famílias, o que impõe uma ação prática (inclusive diante da política8) de quem não tem “direito ao isolamento social”.
Na oitava semana, 2.347 pessoas já tinham morrido.
A tanatoeconomia enquanto ideário de política econômica predominante nos últimos anos é ainda mais flagrante no governo atual. Mas, os imperativos impostos pela crise sanitária estão levando as contradições entre economia e morte às últimas consequência, o que coloca um dilema importante para o governo, qual seja o de costurar política e ideologicamente a contradição entre a austeridade fiscal e a necessidade absoluta de gasto público neste momento. As diversas medidas de enfrentamento à crise econômica adotadas pelos governos Executivo e Legislativo – que nem sempre implicam diretamente em gasto público, como, por exemplo, as isenções e flexibilização no pagamento de impostos – e a queda do produto interno devem aumentar a razão dívida pública/PIB para 90% no próximo ano, segundo cálculos do Tesouro Nacional, o que levanta o debate econômico em torno do “pós-pandemia”.
Na nona semana, o número de mortos chegou a 4.016.
O dilema está colocado no seio do governo. A posição predominante da equipe econômica se expressa na visão do secretário do Tesouro Nacional, que reconhece, por um lado, o aumento de gasto público “este ano, em uma situação de calamidade”, mas, ao mesmo tempo, enfatiza o caráter temporário da expansão das despesas e afirma que a pandemia não pode virar uma “farra fiscal”. O ministro da Economia – que acumula grande prestígio entre o setor financeiro, o comércio de varejo, parte do setor industrial e praticamente a totalidade da grande mídia – segue na mesma linha delicada entre suspender temporariamente os ditames da contenção do gasto público e manejar o discurso (e a prática) da necessidade absoluta de retomar a austeridade fiscal permanente no pós-pandemia. Essa posição é largamente apoiada pelos think tanks neoliberais e pelos atores econômicos mais poderosos.
Na décima semana, a soma de mortes atingiu 6.724.
Não exatamente no outro espectro, mas tentando se “encaixar” na direção geral da política econômica do governo – com menos força e ideologicamente mais frágil – está a posição do ministro da Casa Civil, que tensiona a relutância fiscalista com o Programa Pró-Brasil, que prevê R$ 30 bilhões em investimentos públicos para tentar amenizar os efeitos econômicos da crise sanitária. A posição expressa por esse programa é minoritária entre os articuladores da política econômica do governo e, além de tímida em sua magnitude, ela tende a ser esvaziada no plano ideológico, embora prorrogações das transferências de renda à população e rodadas de retomada de obras públicas para combater o desemprego possam ocorrer em caráter excepcional como tentativa de sustentar o governo.
Na décima primeira semana, 10.627 pessoas já haviam morrido.
Em suma, embora haja inúmeras medidas por parte do governo no enfrentamento da crise econômica – mais generosas e ágeis no caso do setor financeiro, mais tímidas e morosas no que concerne à população mais vulnerável, às micros e pequenas empresas e à preservação da renda e dos empregos –, não se rompe em absoluto a cosmovisão neoliberal dominante. Primeiro, porque neoliberalismo enquanto racionalidade governamental não se encerra quando são feitas concessões “impostas pela realidade”, vide o imperativo do ajuste fiscal pós-pandemia já colocado no plano do discurso. Segundo, as transformações operadas pelo neoliberalismo dizem respeito a “fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do governo de si9”, isto é, a introjeção da lógica empresarial também no plano da subjetividade. Por fim, a natureza mais geral dos auxílios mínimos e insuficientes para a população mais vulnerável está completamente circunscrita nas possibilidades de política pública do neoliberalismo, em que para garantir a concorrência entre os indivíduos não há impedimentos ideológicos em propor políticas de renda mínima10.
Na décima segunda semana, o total de mortes era de 15.633.
A introjeção da mentalidade de austeridade fiscal permanente está conectada com a cosmovisão neoliberal, em que o Estado é visto como uma empresa. O que é particularmente dramático no caso da periferia capitalista é que, por aqui, a desigualdade econômica, a pobreza, a violência e os traços coloniais nunca nos deixaram, então, um Estado-empresa austero na América Latina, por exemplo, é muito diferente da austeridade na França ou na Alemanha. É essa diferença que revela o âmago da economia política da morte, em que uma massa de subcidadãos é deixada à sua própria sorte para que elaborem estratégias de sobrevivência entre o emprego informal, o desemprego, o subemprego e a viração.
Na décima terceira semana, 22.013 pessoas tinham morrido.
Mais tenebrosa, ainda, é a situação brasileira atual, em que as crises sanitária e fiscal são catapultadas por um “presidencialismo de colisão” que enfrenta a ideia de social em seu sentido forte, por meio do Estado e contra o Estado, reivindicando a tradição, a moral e a família11 para enfrentar os inimigos internos (a esquerda ou “o PT”) e externos (a China, no alinhamento unilateral a Trump), impulsionando o armamentismo em nome da “liberdade” e a milicianização entre seus semelhantes, na corrida da pulsão de morte.
Na décima quarta semana, as mortes chegaram a 28.834
É evidente que a disputa em torno da agenda de austeridade para o pós-pandemia está aberta e aquilo que prevalecer será validado (ou rechaçado), no médio prazo, na eleição presidencial de 2022, caso esta ocorra. No entanto, o enfrentamento da economia política da morte e da cosmovisão neoliberal acontece em um horizonte de tempo mais longo, na luta em que Freud considerou constituinte da própria civilização, o “processo a serviço de Eros”, ou seja, da vida, em seu sentido forte e em oposição à Thánatos, de tal sorte que nosso instinto de vida deve se impor sobre a barbárie e, se possível, “combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade”12.
Até 9 de junho, as mortes chegaram a 38.406. E nem a certeza do Carnaval no próximo ano o brasileiro tem mais.
Pietro Borsari é doutorando do Instituto de Economia/Unicamp, no Cesit, pesquisador da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir) e coordenador do GT Mundos do Trabalho: Reformas.
1 Na psicanálise freudiana, Tânato se refere ao termo em alemão Todestriebi, que corresponde ao conceito de pulsão de morte. Segundo Freud, “A inclinação para a agressão constitui, no Homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião de que ela é o maior impedimento à civilização”.
2 Eleutério Prado (2010), em “Uma apresentação dialética da genealogia do neoliberalismo de Foucault”.
3 É verdade que a ideia de austeridade fiscal não é nova e suas origens são exploradas por Mark Blyth em “Austeridade: A História de Uma Ideia Perigosa” (2018), com ênfase para a análise do cenário europeu. No Brasil, essa orientação geral de política econômica ganha força fundamentalmente a partir da década de 1990 e nos acompanha desde então, ainda que as tensões tenham sido parcialmente aliviadas no período de crescimento dos anos 2000s, sem, contudo, terem deixado de exercer profunda influência e constrangimentos nos últimos 40 anos.
4 O anúncio de que “o Brasil vai quebrar se não fizer reformas” é um dos argumentos mais utilizados pelos defensores de cortes de gastos públicos e sociais. Além de ser uma formulação enganosa e persuasiva, pouco se discute sobre as incongruências do tripé macroeconômico que estabelece os principais parâmetros de orientação da política macroeconômica. Ver: https://pedrorossi.org/e-mentira-que-o-brasil-vai-quebrar-se-nao-fizer-as-reformas-afirma-pedro-rossi/
5 A “reforma trabalhista”, consolidada na lei 13.467/2017, não enfrentou nenhum dos problemas estruturais do mercado de trabalho brasileiro, que é marcado por um excedente estrutural de força de trabalho, baixos salários, alta desigualdade, forte heterogeneidade e expressiva informalidade.
6 Entre as ocupações privadas do setor formal, em 2018, 30,6% dos empregos do setor da indústria de transformação estavam na faixa de até um salário mínimo e meio, ao passo que, para todos os outros setores, a participação nessa faixa mais baixa era de 39,3%. Nas faixas salariais seguintes, de 1,51 a 3 e 3,01 a 5 salários mínimos, a indústria de transformação apresentou 45,4% e 13,6% dos empregos, respectivamente, enquanto os outros setores concentravam 40,9% e 10,7% dos ocupados, considerando a remuneração média dos vínculos ativos em 31 de dezembro (RAIS, 2018).
7 O Brasil é o país em que mais morreu enfermeiros por conta da Covid-19 (https://super.abril.com.br/ciencia/covid-19-brasil-lidera-ranking-mundial-de-enfermeiros-mortos/) e as mortes de motocicletas em São Paulo foram 50% maiores nos meses de abril e março de 2020, quando comparadas com o mesmo período do ano anterior (https://agora.folha.uol.com.br/sao-paulo/2020/05/morte-de-motociclistas-cresce-durante-periodo-de-quarentena-em-sp.shtml).
8 Há uma atitude prática diante da política por parte da camada social mais vulnerável – descrita pelo sociólogo Jessé Sousa, em Subcidadania brasileira –, em que predominam o sentimento de descrença e a ideia de que política “não é para nós”. Essa relação prática diante das possibilidades de amparo público se explica pelo histórico abandono social que levou ao desenvolvimento do princípio da sobrevivência “por nós mesmos”. Assim, se algum benefício chegar até eles, como é o caso dos R$ 600 do Programa de Auxílio Emergencial, essas pessoas vão aceitar (de forma prática), embora não tenham a ilusão de que serão tratadas como cidadãs e incluídas em algum projeto de nação.
9 A nova razão do mundo, de Dardot e Laval (2016).
10 Não é fora de propósito que o Programa de Renda Mínima Emergencial em execução carregue o termo “emergencial”, em estreita oposição à abrangência “universal”.
11 Wendy Brown destaca, em seu livro “Nas Ruínas do Neoliberalismo” (2019), o aspecto da moral e da tradição tão importante quanto o mercado na defesa do neoliberalismo para defensores como Hayek.
12 Freud, em “O mal-estar na civilização”.