TCU: entre a decisão técnica e política
A construção de alianças e coalizões partidárias leva os governantes a indicarem para o Tribunal de Contas da União representantes de partidos e de interesses privados. Os resultados são mínimos, apenas 1% das solicitações de devolução de recursos ou multas aplicadas retornam aos cofres públicos
A Constituição brasileira, a exemplo da maioria das demais cartas magnas, adota os preceitos de Montesquieu da separação dos poderes, em que a autoridade política é exercida pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, cada um independente e fiscal dos outros dois. Tais preceitos, segundo Montesquieu, buscam o justo equilíbrio entre a autoridade do poder e a liberdade do cidadão.
Constitucionalmente, o controle externo no Brasil é exercido pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU), que tem a atribuição de zelar pela boa e regular aplicação dos recursos públicos. Para tanto, entre as ações de controle externo, estão as fiscalizações contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades sob sua administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas. Vê-se que é uma missão de fôlego, dado o tamanho continental do país e a quantidade de instituições públicas e privadas que estão sob a jurisdição do TCU.
Tendo em mente os preceitos constitucionais e a concepção de independência entre os poderes, cabe analisar como são indicados os membros do TCU e como funciona essa engrenagem, que é responsável pela fiscalização de todos os recursos cuja origem seja o governo federal – os recursos de fonte estadual e municipal são fiscalizados pelos Tribunais de Contas dos Estados e Municípios.
São ao todo nove ministros, dos quais seis são escolhidos pelo Congresso Nacional e três pelo presidente da República, com aprovação do Senado Federal. Dos três indicados pelo presidente, um é oriundo de sua preferência pessoal e os outros dois são alternadamente indicados entre os quatro ministros-substitutos e os sete procuradores junto ao TCU, funções estas supridas por concursos públicos.
A Constituição exige que a escolha dos membros do TCU esteja pautada pelos seguintes requisitos: tenham mais de 35 anos; idoneidade moral e reputação ilibada; notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; e, por fim, mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados. Para comprovar a competência necessária para o ingresso no TCU, quem indica os ministros (os parlamentares) exerce o dever de arguir os indicados (seus pares) sobre o tal notório saber. Assim, a constatação dos conhecimentos específicos exigidos está associada aos critérios do processo de inquisição. Mas, em que pese a exigência de um bom desempenho em áreas diversas, na prática não há a rigidez esperada para um cargo de tamanha envergadura: a formação dos ministros é bastante variada, a exemplo do ministro Aroldo Cedraz, que além de ex-parlamentar é graduado em Veterinária, e do ministro Valmir Campelo, também ex-parlamentar, que cursou Comunicação Social.
Atendidos tais requisitos, os ministros assumem o TCU com os seguintes benefícios: cargo vitalício; salário de R$ 24 mil; carro com motorista; moradia; cota de passagens área (igualzinha à dos parlamentares) e “ajuda” de custo de R$ 70 mil para aqueles que não moram em Brasília. Eles trabalham nove meses ao ano, pois gozam de dois meses de férias e um mês de recesso, e têm direito ao ressarcimento integral das despesas médicas, independentemente do valor. Esses benefícios também são estendidos para ministros-substitutos e procuradores.
Indicações do Congresso Nacional
O resultado desse processo não tem gerado surpresas, à exceção de um único caso em mais de um século de existência do TCU: a indicação do Senador Luiz Otavio. O parlamentar simplesmente não conseguiu assumir a vaga à qual foi recomendado.
Não por rejeição do Parlamento, pois sequer teve início a votação de seu nome. Mas porque a associação que congrega o corpo técnico do TCU, a AUDITAR, efetuou uma grande mobilização contrária nos meios de comunicação e entre os parlamentares, alegando que o então senador não preenchia os requisitos de idoneidade moral e reputação ilibada. Ele seria responsável pela prestação de contas fraudulentas de empréstimos no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para a empresa de seu sogro.
Na Comissão de Ética do Senado, Otavio confessou que, ao invés de adquirir embarcações novas, como previa o objeto do contrato firmado com a instituição pública, reformara as antigas. O então senador foi processado pelo Supremo Tribunal Federal e, embora nunca tenha sido condenado pela Comissão de Ética, os parlamentares resolveram não submeter seu nome à votação. O cargo de ministro ficou vago por mais de um ano, até que o deputado federal Augusto Nardes foi indicado.
O TCU, portanto, é composto majoritariamente por indicados pelo Congresso Nacional entre ex-políticos e funcionários de carreira do Parlamento. No total, os seis integrantes estão assim dispostos: três membros do partido Democratas (DEM) – ministros Aroldo Cedraz (ex-deputado federal), José Jorge (ex-senador) e Raimundo Carreiro (ex-funcionário do Senado); um do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – ministro Ubiratan Aguiar (ex-deputado federal); um do Partido Progressista (PP) – ministro Augusto Nardes (ex-deputado federal); e um do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – ministro Valmir Campelo (ex-senador). Integram também o colegiado os três indicados pelo presidente da República: Marcos Villaça (nomeado diretamente por José Sarney); Benjamin Zymler (colocado na vaga de ministro-substituto pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso); e Walton Alencar (também recomendado por FHC na vaga do Ministério Público junto ao TCU). Estes dois últimos ingressaram no TCU por concurso público.
Essa segregação partidária é fundamental para se compreender a correlação de forças que atua no colegiado. Recentemente, a Polícia Federal abriu investigação sobre a empreiteira Camargo Corrêa por suspeita de remessa ilegal, superfaturamento de obras públicas e doação irregular a partidos. Por duas vezes, a investigação esbarrou no TCU. A primeira, com o filho do ministro Valmir Campelo, Luiz Henrique, diretor de Relações Institucionais da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) e citado na operação como intermediário de supostas doações ilegais da empreiteira Camargo Corrêa para políticos. Valmir Campelo é relator da auditoria que investiga supostas irregularidades nas obras da refinaria do Nordeste, em Pernambuco, que tem participação da Camargo Corrêa. A segunda foi com o ministro Augusto Nardes: soube-se, via investigação da PF, que um funcionário da empresa, Guilherme Cunha Costa, atuou para que o ex-deputado Nardes fosse nomeado ministro do TCU, em 2005. Já no cargo, Nardes avaliou o contrato da Camargo Corrêa para a construção da eclusa da hidrelétrica de Tucuruí (PA) e permitiu à empresa obter um pagamento extra, maior que o previsto no contrato – de R$ 62 milhões, o adicional passou para R$ 155 milhões.
Julgar quem financia campanhas
A indicação político-partidária pode interferir na decisão dos ministros? A indagação é pertinente, porém, a afirmação é de difícil comprovação. Entretanto, cabe-nos refletir na condição de cidadãos. Esses ministros, quando parlamentares, tiveram suas campanhas financiadas por empresas eventualmente com processos no TCU. De igual modo, os ministros que não tenham assumido cargos eletivos, mas que foram indicados por bancadas de partidos políticos que receberam doações de empresas, poderão vir a julgar essas companhias se porventura elas receberem recursos federais decorrentes de contratos celebrados com o poder público.
O ex-senador José Jorge, por exemplo, teve como principal financiador de sua eleição em 1998 a CBPO Engenharia. Já o ministro Aroldo Cedraz, em sua campanha para deputado federal pela Bahia em 2006, recebeu recursos da empresa Norberto Odebrech, uma das maiores prestadoras de serviços ao governo federal.
Não são raras as vezes que os ministros discordam do corpo técnico e mudam a direção dos processos. O exemplo paradigmático foi o escândalo do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP), em que os técnicos apontaram graves irregularidades, mas o ministro-relator não as considerou tão sérias, mandou que a obra continuasse e aplicou uma multa irrisória de R$ 5 mil ao então presidente do TRT-SP, juiz Nicolau dos Santos Neto. Posteriormente, o TCU voltou atrás em sua decisão, pois a CPI do Judiciário apurou que havia superfaturamento de R$ 139 milhões.
No que diz respeito à efetividade das decisões do TCU, apenas 1% das solicitações de devolução de recursos e multas aplicadas pelo órgão retornam aos cofres públicos.
Quantos casos semelhantes ao do TRT-SP foram apontados pelos técnicos e não acatados pelos ministros? É uma questão difícil de responder, já que no TCU os processos são sigilosos e o controle social, inexistente. Somente as partes interessadas têm acesso aos autos até o julgamento final pelo colegiado. Como há processos que se arrastam por vários anos, dificilmente a sociedade toma conhecimento dos fatos tempestivamente.
Quem controla essas decisões do TCU? Em tese, o peso e contrapeso montesquiano poderia ser exercido pelo Ministério Público junto ao TCU. Porém, o procurador-geral Lucas Furtado, que está há dez anos no cargo, expediu portaria em 2005 limitando a atuação dos demais procuradores e avocando para si a prerrogativa de interpor recurso em qualquer processo.
Além disso, a corregedoria daquela Corte de Contas jamais investigou qualquer um de seus membros, mesmo quando houve indícios de fraude, como foi o episódio do então ministro Iran Saraiva, acusado de superfaturamento da obra do anexo do TCU, cuja empresa era a mesma que construía uma universidade de sua propriedade em Goiânia. Esse imbróglio teve um final feliz para o ex-ministro, pois o TCU garantiu sua aposentadoria sem qualquer averiguação dos fatos.
Como nos ensina Montesquieu, para que ninguém possa abusar da autoridade, “é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder”. Seria essa a melhor garantia da liberdade dos cidadãos e, ao mesmo tempo, da eficiência das instituições.
*João da Silva: O jornal adota a denominação fantasia de “João da Silva” para preservar a confidencialidade do autor, que solicitou permancer anônimo. É uma situação singular na qual optamos por garantir esta análise aos leitores, respondendo desta forma pela autenticidade e veracidade do depoimento.