TCU: quem controla o controlador?
O Tribunal de Contas da União tem a responsabilidade de apoiar o Congresso Nacional na fiscalização das ações do Executivo, especialmente seus contratos e seu gasto. Tem a possibilidade inclusive de criar assessorias técnicas em áreas específicas. Pouco de seu trabalho resulta em ressarcimento aos cofres públicos
Tratar do controle das contas públicas implica em questionar o papel do TCU e, em linha direta, a própria eficiência do Estado: o que garante ao cidadão que o Governo Federal esteja desempenhando suas funções de forma adequada e regular?
A Constituição conferiu ao Tribunal de Contas da União o papel de auxiliar o Congresso Nacional no controle do Executivo. É função do TCU apreciar e fiscalizar as contas do Presidente da República e dos órgãos e empresas ligadas à Administração Pública federal, dentre outras atribuições. Mas o controle sobre a ação dos órgãos públicos não implica apenas em avaliar a aplicação de recursos, ainda que esta seja uma questão fundamental. Quando se fiscaliza uma licitação está em jogo o interesse da sociedade de zelar pelo bom uso da coisa pública. É nesse momento que são testados os instrumentos que disciplinam as relações entre a esfera privada e o Estado.
Na medida em que se redefine o papel do Estado brasileiro, a tendência é que esse controle se torne mais complexo. No âmbito interno, é parte do embate a discussão sobre o projeto de governo que os brasileiros almejam – o quanto terá de liberal, social ou socialista, e como este Estado se relaciona com a sociedade. Ao mesmo tempo, o contexto internacional coloca questões urgentes – vide a última crise, que tornam necessário reformular o modo como o poder Executivo interfere na economia.
Do ponto de vista do controle e fiscalização das contas públicas, a Constituição contém normas que expressam características de um “Estado burocrático” e outras que denotam aspectos de um “Estado gerencial”. O primeiro está mais atrelado aos trâmites e procedimentos. O Estado gerencial visa articular os vários interesses e recursos presentes na sociedade, focando em resultados. Desde a reforma constitucional de 1998, os modelos burocrático e gerencial coexistem.
Em vista da dupla natureza do estado no Brasil, em qual medida o controle deve incidir sobre os procedimentos e os resultados? Vejamos: no núcleo estratégico, que é onde se definem as diretrizes políticas do Estado, são relevantes a correção formal das decisões tomadas e a garantia de seu cumprimento. Já no setor dos denominados “serviços públicos não-exclusivos de Estado” (cultura, educação, saúde etc.), ligados à satisfação das necessidades fundamentais dos cidadãos, em que o Estado pode atuar tanto como executor direto quanto como fomentador da execução por instituições privadas, tem maior importância a eficiência.
O mesmo deveria valer para as empresas estatais – que necessitam de um regime mais flexível, em vista do ambiente de extrema competitividade em que atuam. É urgente que as empresas estatais sejam, definitivamente, excluídas do regime de controle da Administração Pública direta e do regime burocrático da Lei de Licitações. Não se trata de eliminar os mecanismos de controle, mas de substituir os atuais modelos por normas que privilegiem os resultados finais, e não a mera prevalência dos procedimentos formais.
Diga-se que a própria Constituição prevê a edição de lei relativa ao estatuto jurídico das empresas estatais que realizam atividade econômica. A busca da eficiência justifica a implementação de instrumentos consensuais mais ágeis, flexíveis e rápidos, bem como parcerias com o setor privado, que muitas vezes se situam fora do regime estabelecido pela Lei de Licitações.
Nas últimas décadas, uma série de transformações pautou a redefinição do papel do Estado e das atividades executadas diretamente pelo Poder Público: descentralização, privatização de empresas e terceirização de serviços; aumento do papel regulatório; necessidade de diminuir custos, ter mais flexibilidade e agilidade.
A crise atual, por outro lado, demanda um papel mais efetivo do Estado na economia e na promoção das políticas sociais. Há maior cobrança por transparência e eficiência das políticas públicas.
O desempenho do TCU
Diante da redefinição do papel do Estado e das atividades executadas pelo Poder Público, a questão que se apresenta é: o desenho institucional do TCU e seu histórico de desempenho dão conta de suas responsabilidades nesse novo ambiente?
A relevância do seu papel institucional é inegável. A crítica de fundo que se faz à atuação do TCU é extensiva aos demais órgãos de controle da Administração federal: o emperramento da máquina estatal e a prevalência de um ambiente de insegurança jurídica para a ação dos gestores públicos.
Hoje, o controle sobre os atos administrativos está baseado, de modo geral, na verificação se foram ou não cumpridos os procedimentos estabelecidos em lei ou regulamento. Em realidade, do ponto de vista técnico ainda são poucas as análises do ato em vista dos resultados, nem sob o prisma de sua conexão com as políticas do Estado. Ademais, a fiscalização, principalmente no TCU, é, preponderantemente, de índole sancionadora: aplica multa ou rejeita as contas do agente público.
Aqui se delineia um problema de cultura das instituições republicanas. Os procedimentos administrativos instaurados e previstos na Constituição não têm, a priori, o caráter sancionador que adquiriram com a aplicação do texto constitucional.
O TCU, por exemplo, é encarregado de verificar a destinação correta dos valores empregados na execução de políticas públicas, contratos administrativos, convênios ou quaisquer outros repasses. O problema começa quando o controle incide sobre a opção eleita pelo administrador dentre possibilidades legalmente previstas. Ou, então, numa interpretação rígida, restrita e inaplicável a objetos que guardam certa singularidade como aqueles promovidos por uma contratação na área da ciência e tecnologia.
É preciso criar condições institucionais para que o Tribunal de Contas melhore seu desempenho no controle de gestão. O caminho para implantar um controle mais atento aos resultados é construir ferramentas específicas para cada uma das modalidades institucionais -não é por outra razão que o Tribunal de Contas está autorizado a criar unidades técnicas e de fiscalização a partir da identificação de matérias específicas.
A par da adequação da forma de controle aos diversos entes da atividade pública, o TCU também pode acompanhar a execução de contratos mediante a criação de indicadores ou a adoção d
e critérios finalísticos, com verificações periódicas.
TCU: relacionamento com o Congresso
Um ponto importante do relacionamento do TCU com o Congresso diz respeito à mudança, na Constituição, em relação à forma de indicação de seus integrantes. O Congresso ganhou atribuição de indicar 2/3 dos membros do Tribunal, limitando o poder do Executivo, que indica somente 1/3 de seus integrantes. Todos os indicados devem ser confirmados pelo Congresso Nacional. Entretanto, o poder atribuído ao Congresso não significa uma dependência do TCU. As regras, inclusive a questionável vitaliciedade dos seus conselheiros, garantem a autonomia do órgão.
Existe ainda uma limitação ao rol dos candidatos sugeridos pelo Presidente da República: dos três indicados, dois devem integrar os quadros profissionais do próprio TCU. O novo critério de profissionalização está adequado à idéia de um órgão técnico profissional, embora se restrinja a duas vagas apenas.
Outro ponto importante diz respeito à aprovação do relatório sobre as contas do governo. É de tradição republicana que essa aprovação seja feita pelo legislativo, com uma clara divisão de tarefas entre o TCU e Congresso. Compete ao primeiro a apuração analítica do balanço oferecido pelo governo, e ao segundo a avaliação política das informações produzidas.
A análise do relatório é uma passagem na qual a capacidade técnica do Tribunal de Contas poderia ser melhor aproveitada pelo Congresso – e não apenas nas CPIs.
Trata-se de um momento decisivo para avaliar a conformidade das práticas governamentais em relação ao ciclo orçamentário (plano plurianual, lei de diretrizes orçamentária e lei orçamentária anual). O TCU poderia contribuir com avaliações para uso dos parlamentares, ampliando assim o papel dos congressistas no controle das políticas públicas, durante todo seu mandato.
Além das afinidades, existe uma clara tensão política entre o TCU e o Congresso. No Brasil, a estrutura de poder está concentrada no executivo e o TCU é o órgão fiscalizador de transferência de recursos da União para os municípios. Na medida em que os deputados e senadores aspiram a conquista do poder nas esferas Estadual e Municipal, surge um antagonismo na base da ação política. Se conseguirmos fazer com que parte dos impostos fique nos municípios, a tensão tende a diminuir. Ademais, é mais fácil para o cidadão controlar a aplicação desses recursos na sua localidade do que cuidar da coisa pública em Brasília, longe da vista. Seguramente teríamos uma eficácia muito maior na educação, saúde e outras políticas públicas.
Da escolha dos integrantes do TCU
Tem sido muito criticada a forma de escolha dos nove integrantes do TCU. Críticos mais severos ligam algumas indicações à privatização dos recursos públicos. Trata-se de questão estrutural que merece reflexão e reforma.
Em primeiro lugar, a vitaliciedade dos integrantes tem mostrado a sua inconveniência ao perenizar a jurisprudência, entre outros aspectos. Uma renovação é sempre saudável, a entrada em cena de novos membros possibilita um debate produtivo sobre a forma do Estado atuar.
Vale lembrar que o direito não pode ser aplicado ou interpretado distante da realidade. O condicionamento social muda até mesmo a natureza de algumas categorias jurídicas. O entendimento procedimental dos Conselheiros sobre um ato administrativo pode ter se mostrado adequado há quinze anos, num regime mais centralizador, mas não em um momento em que existem outros mecanismos de análise das políticas públicas, como o controle por resultados.
Um estudo comparativo pode contribuir para o aperfeiçoamento do sistema, seja visando uma maior competência técnica, seja buscando um equilíbrio entre o técnico e o político. A Corte de Contas da Bélgica é nomeada pela Câmara dos representantes, a cada período de seis anos, com possibilidade de renovação do mandato; em Portugal o Tribunal de Contas é composto por um presidente, nomeado pelo Presidente da República e dezesseis juízes concursados para um mandato de quatro anos; na Espanha os doze conselheiros de contas tem mandato de nove anos, sendo seis escolhidos pelo Congresso dos Deputados e seis pelo Senado. Nos Estados Unidos o Fiscal de contas públicas é nomeado para um mandato de quinze anos e conta com uma assessoria técnica, com forte competência interdisciplinar. Análise aprofundada da experiência internacional contribuirá para uma escolha adequada à nossa realidade.
Da efetividade das ações do TCU
Existe um sentimento difundido de que as ações do TCU carecem de efetividade. Esta percepção advém em parte da divulgação ampla, pelos meios de comunicação, de obras públicas inacabadas, com um enorme desperdício de dinheiro, e que não geram sanções penais.
É necessário distinguir alguns aspectos ligados a essas denúncias: de um lado uma certa superficialidade na divulgação de números, valores e outros dados, em que se deixa de aprofundar as informações. Muitas obras ficam inacabadas por problemas orçamentários. Nestes casos, a solução está no reequilíbrio contratual, sempre um foco de incertezas e disputas entre o Poder Público e as empresas contratadas. Esse tipo de problema não tem relação com as atividades do TCU – realidade que o grande público desconhece. As ações das auditorias e os exames de contas do Tribunal têm sido feitas e, na maioria das vezes, com competência.
O que deveria ser separado é a constatação de irregularidades advindas com a continuidade das obras, como o superdimensionamento dos preços pactuados. É exemplar a solução dada para a obra inacabada do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. A Presidência da República tomou uma atitude inovadora e nomeou uma comissão de notáveis para indicar uma solução para o caso. Rapidamente, concluiu-se pela necessidade de terminar as obras. Foram feitos novos arranjos contratuais, sem prejuízo da apuração das irregularidades e responsabilização pela Justiça.
O que o país precisa para ter um controle efetivo do gasto público federal?
O nosso ordenamento jurídico político abriga inúmeros mecanismos de controle, além do trabalho do TCU. Esses mecanismos podem ser classificados em internos e externos, abrangem não só os órgãos públicos, como também as entidades privadas que são parceiras do Estado.
Nas parcerias da área social, são vários os mecanismos de controle interno das entidades: Con
selho de Administração, Ouvidoria, Conselho Fiscal e divulgação dos regulamentos para a contratação de obras, serviços e compras. Quanto aos mecanismos de controle externo, destacam-se: auditoria externa, comissões de avaliação, acompanhamento pelos ministérios e secretarias, fiscalização do Tribunal de Contas e do Ministério Público, controle social, publicação dos relatórios financeiros e de execução dos contratos e convênios celebrados.
A listagem denota que o modelo de controle hierárquico e monocrático foi substituído por uma difusão de mecanismos. A burocracia responde hierarquicamente para o seu superior, mas presta contas ao legislativo. Instituições mediadoras como Ministério Público e as ouvidorias dirigem-se diretamente ao administrador, responsabilizando-o por seus atos. A mídia cobra informações e providências da administração. Além disso, importante trabalho vem sendo desenvolvido pela Controladoria Geral da União – CGU. Vale destacar também as pesquisas de satisfação do usuário do serviço público.
Diante de tantos mecanismos de controle, por que a opinião pública permanece perplexa e sente-se manipulada? Por que a disseminação do sentimento de impunidade, como se não existissem mecanismos para o controle e fiscalização dos atos públicos? Na verdade, os mecanismos são múltiplos, o que falta é a sua integração num sistema articulado.
Finalmente a questão que colocamos é quem controla o TCU?
Um exemplo recente serve de mote para compreender o alcance do debate: embora embasados em preceitos legais, os atos dos dirigentes das instituições federais de ensino superior que pactuaram convênios com fundações de apoio nos termos da Lei federal nº 8.958/94 foram impugnados pelo TCU. Essa posição gera um ambiente de insegurança jurídica para a atividade do administrador público e dos particulares que contratam com o Estado brasileiro: mesmo atuando em conformidade com a lei, suas ações podem ser contestadas pelo TCU como comportamento irregular.
As declarações de inconstitucionalidade feitas pelo TCU estão em confronto com as normas constitucionais que traduzem o principio da legalidade. É urgente a revisão da Súmula do Supremo Tribunal Federal nº 347, de 1963, invocada para justificar a impugnação, na esteira das decisões dos Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
Cabe ao Poder Judiciário (que não pode agir por impulso próprio, devendo sempre ser provocado) a capacidade de invalidar qualquer decisão do Tribunal de Contas. Como órgão vinculado do Congresso Nacional, o TCU deve se submeter ao controle social exercido pela sociedade em geral por meio de seus representantes eleitos, organizações da sociedade ou qualquer cidadão.
O Tribunal de Contas da União é, em tese, um órgão técnico e não político. Mobiliza recursos materiais e pessoais para fazer seu trabalho de fiscalização, seus pronunciamentos e pareceres. Por isso, deve ser fiscalizado na mesma medida de todos os órgãos da Administração Pública.
*Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.