Temer e a estatização da EBC
O patrão dos trabalhadores da EBC é a sociedade brasileira, que paga para mantê-la funcionando. Mas hoje, na prática, a empresa responde apenas à Presidência da República. O sentimento entre os funcionários é que as chefias têm feito um esforço diário para tornar o discurso dos meios de comunicação públicos, sustentados com o dinheiro de todos, cada vez mais parecidos com os da mídia comercial e privada
A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) recebeu mais um golpe. O Conselho de Administração da empresa, órgão que ganhou superpoderes depois da medida provisória de Michel Temer que reestruturou a empresa em 1º de setembro de 2016, resolveu tirar a palavra “pública” de seu mapa estratégico. Desse modo, a “visão” da EBC era de “ser referência em Comunicação Pública”, agora é ser apenas “uma empresa referência em comunicação”. A mudança é mais um passo para fragilizar o caráter público do órgão, que deveria promover os interesses da sociedade. Em contrapartida, deve tornar ainda mais governamental o discurso e a produção de conteúdo daquela que surgiu para fazer avançar no Brasil o que já é feito em outros países: uma comunicação plural, regionalizada, crítica.
Para quem acompanha de perto a história da EBC, não é novidade que sempre houve algum nível de interferência de governos e partidos ali, objetivamente exercida por pessoas nomeadas para os cargos de confiança – os chamados comissionados. Muitos deles respondem a partidos ou a padrinhos políticos e não são concursados. Porém, agora essa interferência chegou a graus nunca antes vistos pelos empregados mais antigos e também por aqueles que entraram por concurso na empresa nos últimos cinco anos, com a finalidade de estabelecer e consolidar essa forma plural de comunicação.
As mudanças na política editorial têm sido sentidas diariamente, e dentro das redações os jornalistas estão vivendo casos de censura e perseguição. Um dos episódios mais emblemáticos foi a retirada de uma produtora de suas funções, depois que uma entrevistada, convidada por ela com a proposta de falar sobre a Marcha das Mulheres no dia 8 de março de 2017, declarou “Fora, Temer” ao vivo no final da entrevista do telejornal local, chamado Repórter São Paulo. Uma manifestação que teria sido aceita em qualquer emissora pública e democrática, na TV Brasil gerou a revisão de vários processos, entre eles a determinação de que todas as entrevistas do programa, antes feitas ao vivo, passassem a ser gravadas. Em outubro, outra jornalista de São Paulo levou uma advertência depois de ter se negado, baseada no manual de jornalismo da EBC, a mostrar o rosto de um homem acusado de ter pichado a casa do prefeito João Dória. A jornalista afirmou que estava preocupada em não expor uma pessoa que era suspeita. Não houve, entretanto, respeito por parte da chefia à cláusula de consciência. Esta prevê que o jornalista não execute tarefas que firam o Código de Ética bem como as suas convicções. Por parte da chefia foi alegada enfaticamente que uma ordem hierárquica deveria ter sido cumprida pela subordinada.
Segundo os trabalhadores, produtoras e produtores receberam comentários por parte de gerência sobre “a desimportância de pautas de direitos humanos e cultura, que contemplam a missão pública da empresa de oferecer conteúdo diverso e de qualidade”. Se essas pautas antes tinham muito mais aceitação entre os superiores e ganhavam destaque nos sites e telejornais da EBC, agora perdem a importância ao passo que têm aumentado desde 2016 as pautas de economia, em geral com um único viés, liberal, e favoráveis ao governo, apesar da atual conjuntura.
O caráter público da EBC pressupõe que interesses e visões contraditórias existentes na sociedade sejam contempladas. Entretanto, a fragilização desse caráter chegou ao ponto que estamos hoje também graças à extinção do Conselho Curador, um órgão da sociedade civil limado por Michel Temer e que tinha a função de fiscalizar o conteúdo produzido. Soma-se a isso a pouca valorização do quadro de funcionários – muitos jornalistas, desiludidos, basicamente se mantêm no emprego por causa da realidade do mercado de trabalho.
Ora, sabe-se que o patrão dos trabalhadores da EBC é a sociedade brasileira, que paga para mantê-la funcionando. Mas hoje, na prática, a empresa responde apenas à Presidência da República. O sentimento entre os funcionários é que as chefias têm feito um esforço diário para tornar o discurso dos meios de comunicação públicos, sustentados com o dinheiro de todos (leia-se TV Brasil, Rádio Nacional, Agência Brasil, entre outros), cada vez mais parecidos com os da mídia comercial e privada. Infelizmente, os conteúdos dos veículos jornalísticos da EBC estão cheios de clichês, de dogmas econômicos nunca comprovados nem contestados, e não apresentam múltiplos pontos de vista. O que antes era um desafio a ser superado nas gestões anteriores, atualmente parece se consolidar como a estrutura de produção da empresa.
A situação é agravada pois a direção também dá sinais de que não está à altura da sua missão de criar e difundir conteúdos que contribuam para a formação crítica das pessoas. Os recentes compartilhamentos de memes pelo diretor-presidente da EBC Laerte Rímoli, debochando da atriz Taís Araújo, teriam sido objeto de processo administrativo se cometidos por algum empregado. Compartilhar memes de cunho racista em rede social, em pleno horário de trabalho, poderia gerar um Termo de Ajustamento de Conduta para um empregado, prática cada vez mais comum na empresa. O que dizer, então, se uma atitude como essa parte de uma autoridade pública, que responde por uma empresa que, por sua própria razão de existir, há de ser diversa, plural e democrática? No dia 27 de novembro, a Comissão de Ética Pública da Presidência da República abriu um procedimento para apurar a conduta de Rímole.
Segundo o blog de Ricardo Noblat, o atual diretor-presidente deve ser substituído em breve por Carlos Clemente, sócio e diretor da Mariá Logística e Transportes, ex-superintendente-comercial da Rede Record e indicado para o cargo pela bancada evangélica da Câmara dos Deputados. A substituição, em vez de ser comemorada pelos funcionários, gera preocupação. Com essa mudança, o quanto serão asseguradas as perspectivas democráticas da EBC?
Seria curioso se não fosse trágico: um governo privatizante e neoliberal trabalhando para ter uma empresa pública cada vez estatal. Além disso, há um projeto de diminuir o tamanho da EBC, com o anúncio de um Plano de Demissão Voluntária, que deve atingir funcionários com mais de 53 anos e 10 anos de casa, o que corresponde, segundo a própria direção, a 20% da empresa. Também já é sentida a precarização no trabalho – com espaços físicos sendo reduzidos e materiais e equipamentos não sendo repostos.
O sociólogo espanhol Manuel Castells defende que as relações entre poder e comunicação são essenciais para a compreensão de como se dão as formas de dominação e resistência. Para o autor de O poder da comunicação, nenhuma forma de dominação é capaz de se estabilizar apenas pela coerção. É preciso aliar a esta uma outra forma de poder, que permita construir consensos em torno de determinadas normas que regulam instituições e organizações sociais – e isso ocorre principalmente por processos de comunicação. Temer pode não ser leitor de Castells, mas sem dúvida reconhece o caráter estratégico da comunicação. Caso contrário, a EBC não teria sido um de seus alvos preferenciais, desde a interinidade, quando ilegalmente nomeou Laerte Rímoli, desrespeitando o mandato do presidente anterior, passando por sua posse, quando extinguiu por medida provisória o Conselho Curador, até os dias atuais, em que o aspecto público da empresa vem sendo eliminado. Seu governo utiliza a estrutura que pertence a todos para colocar em pauta a sua visão de mundo e de seus aliados e avalistas – o mercado financeiro, o grande empresariado, a mídia tradicional. Abusa do que é da sociedade brasileira para a manutenção de seu poder, com a difusão de uma impressão de normalidade e consenso. É exatamente uma percepção de que se vive no Brasil certa normalidade a que temos quando nos deparamos com o conteúdo jornalístico produzido na EBC.
A descaracterização do aspecto público da instituição e o pouco ou quase nenhum espaço ao contraditório trazem sérios prejuízos à cidadania brasileira. Os instrumentos públicos de comunicação devem servir a interesses universalistas e, para tanto, precisam respeitar a pluralidade e a representação de minorias e de vozes dissonantes em relação a setores econômica e politicamente mais poderosos da sociedade brasileira. Concordamos com o professor Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, quando diz que a esfera da cidadania encontra, na defesa de seus interesses, uma ampla e desigual concorrência com o sistema político (no qual se inclui, entre outros, a figura do governo federal) e com determinados entes de campos sociais (como os meios de comunicação empresariais). Para fazer frente a esses interesses, a Constituição Federal brasileira de 1988 prevê alguns dispositivos, como o “princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal” dos serviços de radiodifusão. É esse o princípio da frágil democracia brasileira que está em risco com a apropriação da EBC pelo Estado. E é pela efetivação desse princípio que a sociedade deve lutar.
*Aline Scarso e Priscila Bernardes são jornalistas.
Referências bibliográficas
CASTELLS, M. Introdução. In: O poder da comunicação. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
GOMES, W. Participação política online: questões e hipóteses de trabalho. In: MAIA, R. C. M.; GOMES, W.; MARQUES, F. P. J. A. Internet e participação política no Brasil. Porto Alegre: Sulina, 2011.