Tempo de Pachakuti: o que será de “nós” e o que será do “eles” no momento populista?
Neste sexto artigo da série “Populismo e Crises: A análise política dos discursos sobre a pandemia da Covid-19”, produzida pelo Grupo de Pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)”, abordamos os debates sobre um conjunto de olhares renovados e transformadores sobre o futuro pós-pandemia.
Caracterizamos em artigos anteriores a pandemia da Covid-19 como um acontecimento que coloca em suspensão a hegemonia; identificamos os principais elementos dos discursos negacionista e científico; analisamos o papel e as estratégias das mídias na pandemia com a reconfiguração política resultante; consideramos a eternização do presente com a demora em sair da pandemia e a disputa pela vacina como um indicador no pré-futuro; e procuramos recuperar um primeiro conjunto de olhares sobre o porvir – que apontam para o aprofundamento das dominações existentes ou para a reforma do sistema. Dando continuidade aos olhares sobre o futuro, neste artigo trazemos os cenários e propostas que visualizam na suspensão da hegemonia que a pandemia e seus discursos em disputa provocam, uma oportunidade – ou necessidade – de construção de alternativas emancipadoras. Trazemos também uma reflexão final sobre a volta do político e o novo protagonismo do momento populista na construção desses futuros.
No artigo anterior, recuperamos um conjunto de visões e cenários que apontavam para o aprofundamento das dominações existentes ou para a reforma do sistema. Por exemplo, uma virada autoritária do capitalismo neoliberal, com a normalização do Estado de exceção, o capitalismo de vigilância, a transformação da biopolítica em psicopolítica vs. a reinvenção do comunismo. Ou das propostas de caráter mais reformista dos sistemas, como a construção de um Estado de bem-estar social 3.0 vs. o socialismo participativo. Neste artigo, tratamos de questões e olhares no campo discursivo sobre o futuro pós-pandemia que abrem caminhos de renovação e de transformação do sistema existente, como a política da natureza, a política da terra, a reterritorialização dos sistemas agroalimentares e as visões que resultam dos olhares feministas, indígenas e decoloniais.
O futuro em aberto: política da natureza, política da terra, bem comum como valor público e re-territorialização dos sistemas alimentares.
Bruno Latour retoma o convite para refletirmos sobre uma política da natureza[i] cujo eixo central é pensar o desenvolvimento sem a separação entre natural e social, do humano e do não humano. Descentraliza a ideia de produtividade, predadora do que chamamos de meio ambiente, visando garantir a preservação dos recursos naturais e das gerações futuras, mudando a compreensão da nossa relação com a natureza, pois seríamos todas coletividades interligadas, natureza e sociedade. Os seres não humanos, como os recursos naturais, não seriam sujeitados por modelos de desenvolvimento catastróficos, mas antes, considerados como atores, actantes que estão inteiramente presentes e são necessários à vida do planeta. Tendo este referencial, Latour destaca dois grandes méritos da crise sanitária provocada pela pandemia. Primeiro, ter conseguido – rapidamente e em todo o mundo – uma transformação radical e duradoura de nossas condições de vida em uma escala – em termos de magnitude do desastre, forças mobilizadas e vítimas – só equivalente às duas últimas guerras mundiais. Estamos constatando que a ordem mundial, que nos diziam ser impossível de mudar, tem uma plasticidade espantosa e que coletivamente, dependendo da capacidade de resistir ao retorno à ordem anterior, os seres humanos não estão indefesos. A segunda característica do vírus é que está conseguindo tudo isso sem ir além do contágio de pessoa a pessoa, um contágio que cada um de nós pode interromper ou, pelo contrário, facilitar. Um vírus vindo da China, por si só, e que viaja boca a boca, pode perfeitamente derrubar a ordem estabelecida. Fica como lição: não existe sistema capaz de resistir à viralidade da ação política, basta colocá-la em prática com os instrumentos adequados[ii].
Por sua vez, Philippe Descola convida a pensar uma política da Terra[iii], como sendo o planeta uma casa comum e não mais reservada exclusivamente aos humanos. A pandemia serviu para revelar que os humanos são o vírus do planeta. O sistema capitalista tem o mesmo tipo de comportamento com o planeta que o vírus tem com o corpo de quem ele afeta. Ele se espalhou como uma pandemia matando as condições de vida no planeta à longo prazo. Uma outra relação com a natureza é necessária. Uma cosmopolítica da Terra, não no sentido do estabelecimento de regras universais e uniformizantes, mas no sentido literal, como uma política do cosmos, onde cada particularidade é respeitada. Como ilustração, ele afirma que quando os povos indígenas da Amazônia conseguem impedir que garimpeiros e desmatadores da floresta entrem em seus territórios, trazendo diversas doenças, eles estão sendo muito mais acolhedores aos não humanos de quem eles são muito mais familiarizados. O seu cosmos é protegido. Uma política da Terra que não reserva privilégio apenas aos humanos implica uma revolução do pensamento político da mesma magnitude que a levada a cabo pela filosofia do Iluminismo e depois pelos pensadores do socialismo. Já há vários coletivos que procuram pôr em prática essa nova visão quando consideram que é necessário ter solidariedade entre as diversas espécies que habitam o planeta, o respeito aos ritmos diferentes de vida ou à tipos diferentes de apropriação privada da terra. É sobre essa base que se deve pensar novos modos de viver na mesma casa, o planeta Terra.
E é precisamente sobre a ideia do comum ou dos comuns que a economista ítalo-americana Mariana Mazzucato[iv] inova na abordagem para pensar o papel do Estado e da produção de valor como um bem comum não atrelado à ideia de preço. Para ela, o choque provocado pela pandemia produziu três crises: a econômica, com o aumento das vulnerabilidades e desigualdades existentes; a da saúde, constatadas as inúmeras fragilidades dos sistemas de saúde; e a climática, cujas conhecidas causas nos levam a refletir que não é possível continuar com os negócios de sempre. Integrante da equipe reunida pelo Papa Francisco para pensar uma outra economia para o mundo, ela propõe que os governos incorporem o conceito de bem comum como um valor público, cujo princípio é alinhar os interesses das corporações a um projeto inovador e inclusivo de sociedade, concentrado na preservação das relações de trabalho durante a crise e na manutenção da capacidade produtiva da economia, evitando a extração de fundos para os mercados financeiros e remuneração de executivos. A longo prazo, trata-se de garantir que os modelos de negócios levem a um crescimento mais inclusivo e sustentável. Para isso, é necessário investimento público ancorado na produção de valor como um bem comum e uma relação público-privada reformada, orientada para um projeto não predatório das condições sociais e ambientais. É na energia renovada que trazem os movimentos sociais, como o Black Lives Matter, que se poderá pressionar por mudanças fundamentais na direção de um projeto mais justo.
Na agricultura, o movimento agroecológico coloca que a crise da Covid-19 escancara as contradições e os limites dos sistemas agroalimentares globalizados atualmente hegemônicos, abrindo novos horizontes políticos para que novas geografias alimentares sejam estabelecidas, encurtando as distâncias físicas e sociais entre a produção e o consumo de alimentos[v]. Trata-se, segundo a perspectiva agroecológica, da necessidade da democratização dos sistemas agroalimentares, com a superação do regime agroalimentar corporativo, ou seja, do ordenamento sociotécnico que se impôs mundialmente sob a égide do neoliberalismo, transferindo para um grupo restrito de corporações transnacionais o poder de regulação e desenvolvimento dos padrões de produção, beneficiamento, distribuição e consumo de alimentos. Ao atribuírem a essa configuração dominante de organização da agricultura e da alimentação um papel central no agravamento das desigualdades sociais e do colapso do ambiente natural, incluindo aí as mudanças climáticas, a crítica agroecológica defende a reterritorialização dos sistemas agroalimentares como condição urgente e indispensável para a superação estrutural da crise civilizatória que distingue o presente período histórico. Reterritorializar implica refundamentar a produção alimentar nas dinâmicas ecológicas dos ecossistemas. Por outro lado, implica reconectar os processos de distribuição e consumo alimentar nas economias e culturas regionais. Nesse sentido, o enfoque agroecológico para a construção das futuras realidades agroalimentares – o plural é essencial – mantém coerência conceitual e política com os movimentos de defesa da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e de garantia ao Direito Humano à Alimentação Adequada.
O olhar de intelectuais feministas para o futuro
No segundo artigo desta série (O vírus não é democrático: a pandemia da Covid-19 como acontecimento e a disputa de discursos) destacamos os impactos desiguais da pandemia e seus efeitos perversos na vida das mulheres e das populações negra e indígena, ou, conforme enfatizou a escritora brasileira Conceição Evaristo, aqueles que, ao morrerem, não fazem falta nem para a sociedade e nem para o capitalismo. Pensando em um mundo pós-pandemia, Conceição acredita que existirão novas relações humanas nos âmbitos político, econômico e social. Mas como seria possível pensar em mudanças nas relações humanas com um viés mais ecológico se a nossa base continuar sendo o capitalismo? Para ela, dificilmente a ideologia capitalista – traduzida na afirmação de que a economia não pode parar – desaparecerá e, ao pensar o mundo pós-pandemia, reflete sobre qual lugar as coletividades mais periféricas irão ocupar[vi].
A filósofa estadunidense Judith Butler também prevê um cenário doloroso, no qual existirá uma divisão entre as pessoas que deveriam ser protegidas contra a morte a todo o custo e aquelas cujas vidas não serão levadas em consideração. Por si mesmo, o vírus não discrimina, mas a humanidade certamente o faz, entrelaçada em conceitos como nacionalismo, xenofobia, racismo e capitalismo. Ao mesmo tempo, há uma incapacidade dos Estados em lidar com as consequências da pandemia e a vontade de capitalizarem-se a partir dos efeitos da doença, o que acelera as formas de reprodução e fortalecimento da desigualdade racial, da violência contra mulheres, pessoas queer e trans e da exploração capitalista. Como uma possível saída esperançosa, o ideal de um sistema de saúde universal e comprometido com todas as vidas deve estar vivo nos movimentos sociais, que estão mais interessados no futuro e nas consequências da atualidade. Essas visões, rejeitadas e banalizadas pelo capitalismo, resultam em um desejo inovador de um mundo diferente e que pode ser mantido vivo a partir de um trabalho em conjunto e fundamentado na visão social de assistência à saúde universal na luta contra doenças morais e virais[vii].
As sucessivas crises no mundo capitalista que são exacerbadas com a Covid-19 trouxeram para o centro das discussões não apenas a necessidade de pensar o futuro pós pandemia a partir de laços de solidariedade e de universalização dos sistemas de saúde. Articuladas a essas demandas urgentes, essas crises nos obrigam a pensar e a discutir a respeito da interseccionalidade, do papel do feminismo e da reprodução da vida e dos cuidados na criação de novos valores e práticas.
Nessa perspectiva desafiadora, Angela Davis afirma que a crise está revelando a natureza do capitalismo racial, que pode ser observado desde a crescente xenofobia direcionada à população asiática até a falha em providenciar kits médicos para hospitais e clínicas em bairros negros nos Estados Unidos. A ex-pantera negra ressalta a necessidade de organização contra o racismo estrutural e institucional juntamente com a criação de organizações feministas, já que muitas das pessoas que atuam na linha de frente no enfrentamento da pandemia e que estão no centro da crise são as mulheres. Um tipo de organização que aprimore a noção de solidariedade internacional, retirando a ilusão autocentrada na potência estadunidense e que resulte na solidariedade e na união internacional, onde pessoas com questões comuns possam se articular e unirem-se a movimentos sociais[viii].
A escritora e professora italiana Silvia Federici também coloca as mulheres na linha de frente, ao recuperarem as medidas mais básicas de reprodução que permitem garantir a dignidade humana, o que põe no centro a importância da reprodução. Reprodução é o cuidado, as crianças, cozinhar, acompanhar pessoas doentes e o cuidado com a natureza, onde as mulheres são as primeiras trabalhadoras de uma agricultura que não termina no lucro, mas no sustento de sua família. Deste modo, a reprodução é um terreno estratégico e fundamental para a construção de um futuro e de uma sociedade. Vivemos em um sistema capitalista cujo problema fundamental – e insustentável – é que ele sistematicamente se estrutura sobre a subordinação da reprodução da vida. É na subordinação das vidas e do nosso futuro que se baseia o lucro individual das grandes companhias e corporações. É o capitalismo no qual todas as medidas políticas e econômicas postas em ação estão conformadas para essa finalidade de subordinação da nossa reprodução. E são as mulheres que estão à frente dessa luta, sendo os movimentos de mulheres estrategicamente importantes para recuperar a medida mais básica de nossa reprodução, seja a riqueza social que temos produzido, seja a terra, o controle sobre a água e sobre as florestas. É necessário criar uma forma de organização, fortalecer os laços entre as redes de mulheres e não apenas a capacidade de resistência ao Estado. Assim, será possível criar formas de reprodução mais solidárias e impor outro tipo de sociedade em que a vida esteja ao centro[ix].
Para a antropóloga brasileira Débora Diniz, a pandemia impulsionou uma circulação dos valores de cuidado e da reprodução da vida para fora dos círculos feministas como nunca ocorreu anteriormente. Atualmente, esses valores já podem ser vistos como presentes no campo formal da política e da economia, como o próprio auxílio emergencial oferecido pelo governo brasileiro. Entretanto, Diniz nos atenta que para pensar num mundo pós-pandemia, será preciso garantir que a interdependência e os cuidados estejam de fato presentes nos mecanismos coletivos de amparo e de proteção social. Nos cabe assegurar que os questionamentos a respeito dos mais vulneráveis e de como vamos nos proteger não caiam no esquecimento[x].
Por sua vez, a argentina Maristella Svampa afirma que o Coronavírus nos coloca diante da tarefa de pensar o futuro da civilização à beira do colapso sistêmico, cuja crise deve servir como contraexemplo para optar por propostas inovadoras e democráticas que visem a igualdade e a solidariedade. A solução, então, passa por colocar na agenda pública as causas ambientais da pandemia para, dessa forma, responder ao desafio da humanidade: a crise climática. Como têm insistido o ecofeminismo e os feminismos populares na América Latina, é necessário instalar um novo paradigma dos cuidados, bem como uma estrutura sociocognitiva para implementar um grande pacto ecossocial e econômico em escala nacional e global. Essa ação transformadora deverá partir das narrativas emancipatórias e utopias concretas já existentes na América Latina, que estão associadas ao Bem Viver e aos direitos da natureza, aos comuns, à ética do cuidado e à justa transição socioecológica, presentes nos movimentos ecoterritoriais – rurais e urbanos, indígenas, camponeses e multiculturais, mobilizações de jovens pela justiça climática – e na agroecologia[xi].
Já a boliviana de origem indígena aymara, Silvia Rivera Cusicanqui, complementa que todas essas crises têm nos ensinado que após cada crise, sobrevém uma exacerbação daqueles fatores que a conduziram, como o desmatamento, os incêndios florestais e a ampliação da fronteira agrícola. Em meio a esses tempos de catástrofe[xii], surge um grande mensageiro da Terra, um organismo tão pequenino, tão diminuto, invisível, mutante e versátil que acabou gerando condições extraordinárias de parar o mundo. Um ínfimo bichinho capaz de fazer o que inúmeras conferências, cúpulas e reuniões científicas e políticas das nações sobre mudanças climáticas para frear o aquecimento global não conseguiram. Com a pandemia, a crise sanitária nos levou a um nível básico de consciência no qual o que interessa é simplesmente a reprodução do dia a dia, e o grande ensinamento dessa crise é a ideia de que é necessário voltar ao elementar, que são o alimento, a saúde mental e material, a restauração do afeto e do valor da palavra. A pandemia também trouxe essa possibilidade da volta aos ciclos e valorização dos circuitos comerciais locais, propiciando, por exemplo, o consumo de alimentos colhidos de acordo com as estações e a recuperação da consciência de produzir alimentos na própria cidade[xiii]. Dessa forma, nos encontramos diante da possibilidade de reconstruir tecidos comunitários em escala local e de boicotar os circuitos de consumo globais, evitando tudo aquilo que nos vincula aos produtos de grandes empresas alimentares internacionais, como as empresas de alimentos transgênicos. Para os grandes males, pequenos remédios. Nos cabe, então, construir pequenas bolhas de resistências, de rearticulação ética do tecido social. Este é um momento de Pachakuti[xiv], de reviravolta do tempo e do espaço que pode ser catastrófico ou pode significar uma renovação e que nos obriga a refletir com profundidade na busca de compreender como podemos reconstruir uma forma de viver que permita superar a atual e as futuras crises. Pachakuti é, sobretudo, feminino. A pandemia converte os trabalhos rotineiros em tarefas de bem comum, de bem social, que são a vida e a saúde, traduzidos nos saberes curativos, nas ervas medicinais e nas medidas caseiras de prevenção e de fortalecimento do sistema imunológico. Essa capacidade de dar a vida e de cuidar da vida que está nas mãos das mulheres deve se estender ao conjunto da sociedade para que possamos reconstruir espaços e territorialidades habitáveis alternativas, pequenas, intimamente interconectadas por uma ética da vida, da reprodução e da cura da pacha[xv].
O olhar decolonial dos povos originários e tradicionais do Brasil
O cenário de crise humanitária que vivenciamos hoje reforça o que lideranças intelectuais, políticas e xamânicas indígenas há muitos anos nos alertam: estamos derrubando o céu, segundo o xamã Davi Kopenawa[xvi]. Liderança do povo Yanomami, Davi alerta para a invasão de seu território pela epidemia do ouro (oru xawara) que é a atividade extremamente degradante e ilegal do garimpo em terras indígenas. O problema se agravou com a pandemia da Covid-19, visto que os invasores podem ter levado a doença para dentro do território Yanomami[xvii].
Para Célia Xakriabá[xviii], os povos originários enfrentam a herança do que chama de Covid-1500, relacionando a pandemia da Covid-19 com os impactos da colonização, que inclui vários ciclos de epidemias e o confinamento desses povos em ilhas territoriais no que hoje se tornaram as terras indígenas. Ela alerta para o avanço do desmatamento, em que cada árvore derrubada representa também a perda de uma parte da cultura indígena e da respiração do mundo. De forma equivalente, cada morte entre indígenas representa também a morte de uma identidade, tradição e das narrativas indígenas. Um velho ancião que parte antecipadamente, leva consigo toda uma biblioteca da cultura indígena, as estórias dos avós que são o primeiro livro que se lê, é menos uma mão que sacode o maracá[xix].
Assim, os povos originários partem do diagnóstico de que são os corpos escolhidos como alvo para morrer desde o pesadelo da colonização. Na atualidade, os dados do relatório “Defendendo o amanhã” da ONG britânica Global Witness[xx] reforçam que o Brasil é o terceiro país mais letal para ambientalistas no mundo. Cerca de 90% desses assassinatos ocorreram na região amazônica e várias dessas ocorrências se relacionam a indígenas. São pessoas na linha de frente da crise climática, que colocam seus corpos contra a violência da força de destruição do neo-extrativismo que continua operando e avança sobre seus corpos e territórios. Esse seria o projeto de arrancar os índios de suas terras (essa gente que cisma em viver da Terra, nas beiradas) e transformá-los em pobres[xxi].
As terras indígenas e dos povos e comunidades tradicionais têm sido construídas como zonas de morte da necropolítica, entendida por Achille Mbembe como aquelas onde a morte se torna o último exercício de dominação do poder soberano, mas também da principal forma de resistência[xxii]. No contexto brasileiro, a necropolítica se reatualiza com o acontecimento da pandemia da Covid-19, acelerando o processo que lideranças denunciam como genocídio. Para Ailton Krenak, o Brasil teria se engajado no projeto político de matar os povos originários ao abrir a porteira, ir pra cima da mata, apoiar o garimpo nas terras indígenas: é uma declaração de guerra, que consiste em eliminar aqueles cujas vidas não são úteis[xxiii].
Diante desse contexto em que estão situados os povos originários e comunidades tradicionais no Brasil, para falar de futuro é necessário desconstruir a necropolítica e deter essa guerra. Mas isso não é suficiente. Há que mudar a ideia que temos de normalidade. Se a normalidade da humanidade representa um divórcio da natureza, devastando o planeta e cavando um fosso de desigualdades entre povos e sociedade, não podemos voltar ao normal. Na visão indígena tudo é natureza, até o que pensamos, concebendo a Terra como um organismo vivo. Assim, é preciso imaginar e construir o futuro pós-pandêmico a partir da perspectiva decolonial cuja (re)existência dos povos originários e tradicionais no Brasil persistem em nos mostrar.
Primeira mestra de seu povo, Célia Xakriabá se coloca como parte de uma geração de primeiras mulheres indígenas com mãedato, junto com Sônia Guajajara – primeira candidata à Presidência da República e Joenia Wapichana – primeira parlamentar eleita ao Congresso Nacional. Célia considera que existe um racismo das ausências, em que os povos indígenas são invisibilizados desde a origem da sociedade brasileira. Para ela, os indígenas devem ser considerados não em termos numéricos, mas pela força de sua resistência e ancestralidade. Só haverá futuro se houver uma reconexão com a ancestralidade. É preciso remontar às origens e repensar o Brasil a partir da presença dos povos originários e, especialmente, a partir da presença das mulheres indígenas, que pariram os primeiros brasileiros. Remete à ancestralidade a partir dos ensinamentos dos antigos, transmitidos pelos seus avós, o primeiro livro que leu. Relaciona a pandemia com um tempo já anunciado pelos ancestrais, que falavam de um tempo em que a Terra não iria mais suportar. As pessoas teriam perdido a conexão de entender a Terra como parente e por isso não conseguem ouvir o chamado do útero da Terra. Mas a Terra seria nossa mãe, irmã, tia, avó – a mãe de todas as mães.
O quilombola Antônio Bispo (o Nêgo Bispo) destaca se seriam os auto intitulados seres humanos os próprios responsáveis pela pandemia ao jogar veneno na terra e nas águas, jogar fumaça no ar. Questiona quantas pandemias teríamos causado para outras espécies vivas, em que mais longa a vida dos humanos, menos curta parece ser a vida dos demais seres vivos[xxiv].
Voltando a Ailton Krenak em suas reflexões sobre o futuro[xxv], ele ressalta que a pandemia da Covid-19 teria colocado a humanidade na lista de extinção, nos fazendo questionar se somos, de fato, uma humanidade. Haveria uma sub humanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela e isso foi naturalizado. Assim, com um olhar decolonial questiona a ideia de uma humanidade homogênea, que parte da premissa de que haveria um jeito determinado de estar na Terra, um pacote que considera uma narrativa globalizante, superficial, que conta as mesmas histórias. Haveria um tipo ideal de progresso, de modelo de bem-estar no mundo, imposto pelos donos da grana no planeta. A humanidade seria, então, uma espécie de clube seleto, cuja premissa é a separação da humanidade do organismo vivo que é a Terra. O clube da humanidade seria uma abstração civilizatória, que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência, de hábitos. Limita as capacidades de criação de novas existências, novos modos de ser e estar na Terra e, ainda assim, muita gente insiste em entrar para esse clube exclusivo. Esse clube não aceita novos sócios, onde ele e tantos outras gentes que ainda consideram que precisam se manter agarrados e insistem em viver da Terra estariam excluídos. Essa seria a sub humanidade – índios, quilombolas, caiçaras, aborígenes – os esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens de rios em continentes como a América Latina, África e Ásia.
Krenak destaca que o vírus é mais um organismo do planeta e, até onde sabemos, está discriminando a humanidade – o vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outros ser, apenas humanos. Os únicos seres em pânico seriam os humanos e seu mundo artificial, cujo modo de funcionamento entrou em crise. O vírus seria uma resposta ao pensamento doentio dos humanos, como um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha. Assim, para ele, o futuro passa por abandonarmos o antropocentrismo, considerando que há muitas outras formas de vida além da gente, que não fazemos falta na biodiversidade, pelo contrário, seríamos piores que a Covid-19. Não seríamos o sal da Terra: há muita gente mais interessante na Terra, tal como os indígenas, que chegam ao século XXI ainda esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes[xxvi].
O futuro deve ser decolonial considerando que há centenas de narrativas de povos vivos, que nos ensinam que não somos as únicas pessoas interessantes no mundo. Para Krenak, se pudermos contar mais uma história, estaremos sempre adiando o fim do mundo. Assim, a narrativa do mundo deve ser plural e diversa, de modo que o fim do mundo não seria absoluto: há muitos mundos e há mundos por vir. A resistência indígena se dá através da ampliação de suas subjetividades, sendo necessário enriquecer nossas subjetividades, objeto de consumo dos atuais tempos do neoliberalismo – devorador de mundos[xxvii].
Precisamos libertar o futuro que nos foi sequestrado por uma força de destruição que representa a hegemonia hostil vigente, tal como nos coloca Eliane Brum, jornalista e apoiadora do movimento indígena. Deste modo, torna-se imperativo olhar para o colonialismo que, junto com o racismo, é a espinha dorsal fundadora da sociedade brasileira. Ainda segundo Brum, como tínhamos apontado anteriormente, a hegemonia do e daí? não teria um futuro a nos oferecer e esse seria justamente seu ponto frágil, onde imaginar um futuro se torna um ato de resistência. Para ela, é preciso deslocar o pensamento e a linguagem de matriz branca ocidental e ouvir mais a matriz afro indígena. O futuro deve ser multicêntrico, deslocando também a ideia que temos de centro e periferia[xxviii].
Assim, os povos originários nos colocam que para que seja futuro, é necessário remontar às raízes, reconectarmos com nossa ancestralidade e pensar o Brasil a partir de seus povos originários – o futuro é ancestral. A perspectiva de futuro pós pandemia dos povos indígenas nos diz que é preciso superar o racismo e o colonialismo estrutural em nossas sociedades e indigenizar os corações. A cura estaria em nossa capacidade de reativar nosso princípio de humanidade, de modo que é preciso ampliar a concepção que temos de humanidade e considerar também a Terra como parente. A cura está no princípio ativo do afeto, do coração, da solidariedade.
O olhar da necropolítica
Achille Mbembe destaca que para aqueles que vivem em zonas do mundo nas quais o sistema de saúde foi devastado por conta da negligência, a situação pode piorar. Países lidam com a ausência de leitos hospitalares, máquinas respiratórias, testes, máscaras de proteção, álcool e outros mecanismos de proteção. Infelizmente, pode-se prever que muitos não passarão pelo buraco da agulha. Vivemos num momento no qual tememos o próprio fim, permeado de brutalismo, definido como o processo contemporâneo na qual o poder é constituído, se reproduz e é caracterizado por uma redistribuição desigual da vulnerabilidade[xxix]. A necropolítica – zonas onde a morte se torna o último exercício de dominação do poder soberano – aparece nesse cenário atual pelo fato do vírus não atingir a todos da mesma forma. Existe um debate acerca da necessidade de priorizar o tratamento a jovens e de deixar os idosos falecerem, ou seja, governos e hospitais estão escolhendo quem vai viver e quem vai morrer. Além disso, o discurso negacionista insiste na ideia que a economia não pode parar, mesmo que alguns precisem morrer para que isso ocorra. O que nos leva a outro dilema também em termos de necropolítica: qual deveria ser a prioridade política nesse cenário: salvar a economia ou à população? Ao olharmos para o neoliberalismo, que pode ser chamado de necroliberalismo segundo Mbembe, veremos que há uma noção de que quem não tem valor pode ser descartado. No entanto, os mais atingidos são as mesmas raças, os mesmos gêneros e as mesmas classes sociais de sempre[xxx].
Após a pandemia, Mbembe prevê que as espécies não serão santificadas, e sim, um novo período de brutalidade emergirá, e a lógica do poder e da força prevalecerão. Por conta da ausência de uma infraestrutura comum, haverá maior separação, como a fortificação de fronteiras para proteção de externalidades. No sul do mundo e principalmente no continente Africano, a expansão agrícola, a extração e a predação de vendas de terras continuarão ainda mais intensamente. Manter o mundo à distância se tornará a norma, apenas para eliminar riscos de todos os tipos do exterior. A maneira como lidamos e olhamos para o nosso corpo vai mudar com essa pandemia, visto que agora temos o poder de nos matar por meio dele, pois, ao sair de casa, é possível pegar ou transmitir o vírus. Nosso corpo passou a ser uma ameaça para os outros e para nós mesmos. Dessa forma, o poder de matar foi democratizado[xxxi].
Para além do vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. A luta não deve ser direcionada a um vírus específico, mas sim a um sistema que já condenava o direito universal à respiração. O capitalismo segmentou populações e as condenou à uma respiração difícil e sem fôlego, à uma vida pesada (sendo necessário entender respiração para além dos termos biológicos). O direito universal à respiração não pode ser apropriado, muito menos restrito, sendo um direito universal não apenas para os humanos, como para os seres vivos como um todo.[xxxii]
Os perigos para a humanidade são cada vez mais intensos, seja por ataques à razão, à destruição da biosfera, o surgimento de determinismos ou a prisão de mentes pela tecnociência. A humanidade e a biosfera estão completamente ligadas, uma não existe sem a outra. Mas será possível redescobrir esse pertencimento e vínculo com toda a vida? A resposta é pessimista. Da próxima vez será muito pior do que essa pandemia e, se a levarmos a sério, veremos que ela está nos mostrando que não há garantias de que estaremos na Terra para sempre. Assim, é preciso perceber que a possibilidade da vida continuar sem a gente é a questão-chave deste século[xxxiii].
Tempo de Pachakuti: a disputa hegemônica no momento populista para transformar os futuros possíveis em realidade pós-pandemia.
Como Silvia Cusicanqui aponta, a pandemia da Covid-19 nos coloca num momento de Pachakuti, de reviravolta do tempo e do espaço que pode ser catastrófico ou pode significar uma renovação. Estamos, assim, em meio à uma disputa hegemônica para transformar os futuros possíveis em realidade pós-pandemia. Nas páginas precedentes – assim como no artigo anterior desta série: A eternização do presente e o futuro pós-pandemia – recuperamos algumas das principais visões e propostas sobre os futuros que estariam em disputa.
Por exemplo, cenários catastróficos: negócios trágicos como sempre com a recuperação do normal do mainstream neoliberal através do capitalismo do choque, guinada autoritária do capitalismo neoliberal, capitalismo de vigilância, servidão digital, psicopolítica digital, normalização do Estado de exceção, capitalismo racial, violência sobre corpos e territórios, necropolítica ou necroliberalismo, novo período de brutalidade e a apropriação pelo capitalismo do direito universal de respirar.
Mas também aparecem caminhos de renovação como o Estado de bem-estar 3.0, outra economia com o bem comum como um valor público, socialismo participativo e reinvenção do comunismo. Ou de transformação no olhar sobre os futuros, como política da natureza, política da Terra, reterritorialização dos sistemas agroalimentares, justa transição socioecológica, grande pacto ecossocial e econômico, Bem Viver, reforço de laços de solidariedade internacional, universalização dos sistemas de saúde, novo paradigma do cuidado, reprodução solidária da vida, reconstrução de tecidos comunitários em escala local interconectados por uma ética da vida, reconexão com a ancestralidade, abandono do antropocentrismo, libertar o futuro sequestrado por uma força de destruição, reativar nosso princípio de humanidade, superar o racismo e o colonialismo estrutural em nossas sociedades, indigenizar os corações e redescobrir o pertencimento e vínculo com toda a vida.
Como se vê, nesta disputa, cenários catastróficos não faltam. Mas também abundam visões de renovação e até de transformação. Para entender esta disputa pela hegemonia, cabe lembrar que o acontecimento pandemia acontece num momento onde a democracia e o capitalismo parecem novamente cada vez mais incompatíveis. A riqueza eliminou a cidadania, produzindo maior concentração de renda e poder, bem como a perda de fé na democracia[xxxiv].
Como Polanyi já tinha apontado, a democracia não pode sobreviver em um mercado excessivamente livre. Existiriam dois tipos de movimentos em nossas sociedades. O movimento mercantilizador, que através da ideia de um mercado autorregulado leva a cabo tanto a conformação da natureza, a força de trabalho e o dinheiro enquanto “mercadorias fictícias”, como também a mercantilização de todas as relações sociais. Mas conter o mercado é tarefa da política. Frente ao movimento mercantilizador, Polanyi nos aponta a produção de um contra-movimento desmercantilizador impulsionado pelo Estado e a sociedade. As configurações deste segundo movimento podem ser bem distintas. Ou democratizador quando, por exemplo os movimentos sociais se conformam como um muro de contenção e impugnação da lógica mercantilista. Ou reacionário, como no momento europeu de entre guerras, quando o contra-movimento se concretizou na ascensão do fascismo: uma reforma da economia de mercado alcançada ao preço de extirpar as instituições democráticas[xxxv].
Voltando ao contexto recente pré-pandemia, Wendy Brown destaca que vivemos um processo de desdemocratização[xxxvi]. Segundo Dardot e Laval, o neoliberalismo destrói a democracia liberal-social, propiciando a ascensão de regimes autoritários e de partidos de extrema direita, apoiados por amplos setores das classes populares nacionais. A exploração da cólera e dos ressentimentos da população pela extrema direita geraria um novo neoliberalismo, ainda mais agressivo e militarizado do qual Trump é tanto a bandeira como a caricatura[xxxvii]. Ele se conforma como uma variante do poder neoliberal apropriando-se da retórica da soberania, adotando um estilo populista. O neoliberalismo se aproveita da crise da democracia liberal-social que ele mesmo provocou – e não cessa de agravar – para impor e avançar ainda mais na lógica do capital sobre a sociedade[xxxviii].
Assim, ao contrário dos fascistas do período entreguerras, os líderes de extrema direita desse novo neoliberalismo não se ocupam de conter as turbulências no mercado ou proporcionar empregos dignos[xxxix]. Através de um líder carismático com um discurso eleitoral anti-establishment, o novo neoliberalismo sintetiza, paradoxalmente, na prática governamental o nacionalismo econômico; a liberalização dos mecanismos econômicos, financeiros e ambientais; uma política sistematicamente pró-empresarial; a crise como modo de governar; o uso clientelístico de políticas de proteção social; o incentivo à guerra civil com a exacerbação dos fundamentalismos; a aplicação da lei contra a democracia; a segurança nacional e o paradigma militar da guerra contra insurgente[xl].
A pandemia devastou um mundo que ainda não tinha se recuperado da crise financeira global de 2008 e que em diversos países experimentava este novo neoliberalismo. Num artigo anterior a esta série, publicado também no Le Monde Diplomatique Brasil[xli], lembrávamos que neste presente longo da pandemia haveria demasiada ira, ressentimento e insegurança liberados. Dessa forma, novamente, tanto a extrema direita como a esquerda teriam condições de aproveitar essa tormenta subjetiva para aprofundar cenários catastróficos – com o novo neoliberalismo – ou propiciar alguns dos futuros de renovação e até de transformação.
Apontávamos que há iniciativas em curso no campo da extrema direita, como o grupo The Movement em torno de Steve Bannon, ex-estrategista chefe da campanha que levou Trump à presidência dos EUA em 2017, e que veio assessorando “informalmente” ao então candidato e atual presidente do Brasil. O grupo com sede em Bruxelas, promove uma internacional conservadora que fomenta o novo neoliberalismo com um nacionalismo xenófobo de caráter anti-imigrantes e conservador fundamentalista. Sua influência vem crescendo com apoios nos setores populares e nas classes médias afetados pela globalização. E está muito bem posicionada para aproveitar também o descontentamento do povo em diferentes países com a Covid-19 enquanto acontecimento[xlii].
Por outro lado, no campo progressista renovador ou transformador haveria muitas ideias, mas com uma grande pobreza em termos de estratégias políticas e lideranças unificadoras eficazes[xliii]. A paixão e a razão cada vez são mais indissolúveis nas escolhas e na mobilização política. E a esquerda e os setores progressistas têm muito que voltar a aprender sobre como opera essa articulação, principalmente nos setores populares, enquanto instrumento de mobilização para a emancipação[xliv].
O momento populista que segundo Mouffe tinha se aberto com as frustações ante os resultados da globalização, da hegemonia do capital financeiro e da integração da socialdemocracia na política neoliberal, voltaria com mais força com a crise da pandemia. O princípio de povo soberano com o neoliberalismo tem se convertido numa fórmula oca: não tem soberania, só uma exaltação da liberdade. O populismo de direita tem aproveitado melhor esse momento, restabelecendo a soberania popular. Porém não a igualdade porque etniza ou discrimina com outros fundamentalismos os problemas sociais. Lembrando que o povo é uma construção política, o povo – o nós – construído pelo populismo de direita reduz a democracia ao invés de ampliá-la. E isso é seu calcanhar de Aquiles[xlv]. Os atores progressistas, através de um populismo de esquerda podem entrar na disputa pela hegemonia aberta com a crise do neoliberalismo e potencializada com a crise da pandemia.
A tarefa é construir um povo. O povo não é um povo já dado, mas um povo que resulta da articulação de identidades e demandas numa cadeia de equivalências. A questão da articulação é mais ampla e desafiadora como consequência da hegemonia neoliberal que tem multiplicado os antagonismos. Assim, encontramos ainda mais demandas heterogêneas para articular no momento da hegemonia: das classes populares (particularmente do novo precariado), das classes médias, dos feminismos, do anti-racismo, do ecologismo, dentre outras. O povo tem que ser construído através da articulação de demandas muito heterogêneas que não convergem naturalmente, mas que tem no eles – o neoliberalismo e o capitalismo – o elemento externo aglutinador.
Para que essa convergência aconteça, é necessário um princípio articulatório. E esse princípio não pode ser só racional. Tem que recuperar o papel dos afetos, da paixão na política. Quando se fala em criar um povo, significa criar um nós, gente que se reconhece e se identifica como uma coletividade. E isto implica não só em interesses racionais, mas em afetos, em paixão. No populismo, tradicionalmente o líder cristaliza esses afetos e a dimensão racional dos interesses. Mas o princípio articulador pode ser uma das lutas que se transforma num determinado momento numa luta símbolo. O que se necessita é um símbolo da unidade do nós, do povo. Esse princípio, como o político, é contingente. Assim, num contexto o movimento feminista – desde que articule demandas distintas – pode ser o princípio articulador inicial de todas as lutas pela radicalização da democracia e a construção do comum como princípio político. Num outro contexto, pode ser a luta anti-racista. Ou a luta dos povos indígenas. Ainda em outro, as lutas ambientais. Para levar a cabo as visões transformadoras, esse novo povo deveria ser um povo maior, uma humanidade menos antropocêntrica, um povo onde estão presentes e reconhecidas as diversidades, um povo da vida.
Como tínhamos apontado anteriormente[xlvi], a estratégia populista de esquerda se apresentaria como pertinente na saída da crise da Covid-19. O populismo de esquerda procuraria expandir e aprofundar os horizontes de democratização para um maior número de áreas com a inclusão de atores e vidas descartáveis. Para isso, propõe uma ruptura com a ordem neoliberal e o capitalismo financeiro, que são incompatíveis com a democracia e procura estabelecer uma nova formação hegemônica que coloque ao centro a igualdade, a justiça social e climática assim como a reprodução solidária da vida. A estratégia é criar uma vontade coletiva, um nós que possa transformar as relações de poder e instaurar um novo modelo econômico, social e de relação com a natureza, a partir de uma perspectiva interseccional – articulando feminismo, antirracismo, de-colonialismo e ecologismo – procurando democratizar a ordem socioeconômica com o comum como princípio político e criando condições para uma transição ecológica que permita redescobrir o pertencimento e o vínculo com toda a vida.
A crise da pandemia da Covid-19 enquanto acontecimento, com a disputa política entre os discursos negacionista e científico e a recriação de fronteiras políticas a partir de velhos e novos antagonismos, assinala a volta do político e dá uma nova dimensão ao momento populista. Conforme as forças que se apropriem dela e a maneira como se construam a oposição eles/nós o futuro pós- pandemia pode levar a uma radicalização dos valores democráticos, do comum e pós-coloniais ou a soluções autoritárias e de necroliberalismo. A hegemonia está em suspense. O futuro está em aberto. O que podemos intuir é que num futuro pós-Covid-19, o pior será pior e o melhor será melhor[xlvii].
[Jorge O. Romano, Liza Uema, Thais Ponciano Bittencourt, Eduardo Britto Santos, Juana dos Santos Pereira, Larissa Rodrigues Ferreira, Pâmella Silvestre de Assumpção, Paulo Petersen, Annagesse de Carvalho Feitosa, Daniel S. S. Borges, Daniel Macedo Lopes Vasques Monteiro, Juanita Cuellar Benavídez, Paulo Augusto André Balthazar, Renan Alfenas de Mattos, Ricardo Dias, Ana Carolina Aguiar Simões Castilho, Caroline Boletta de Oliveira Aguiar, Érika Toth Souza, Myriam Martinez dos Santos e Vanessa Barroso Barreto são pesquisadoras e pesquisadores do grupo de pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sócio-Políticas (DISCURSO)” vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade e ao Curso de Relações Internacionais do DDAS/ICHS da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, registrado no CNPq e com apoio de ActionAid Brasil
[i] LATOUR, Bruno. Politiques de la nature Comment faire entrer les sciences en démocratie. Paris, Éd. La Découverte, 2004.
Id. La crise sanitaire incite à se préparer à la mutation climatique. Le Monde, 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/03/25/la-crise-sanitaire-incite-a-se-preparer-a-la-mutation-climatique_6034312_3232.html.
[ii] LATOUR, Bruno. Não existe sistema capaz de resistir à viralidade da ação política. El País – Brasil, 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/cultura/2020-07-24/bruno-latour-nao-existe-sistema-capaz-de-resistir-a-viralidade-da-acao-politica.html.
[iii] DESCOLA, Philippe. Nous sommes devenus des vírus pour la planète. Le Monde – França, 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/05/20/philippe-descola-nous-sommes-devenus-des-virus-pour-la-planete_6040207_3232.html.
[iv] Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação na University College London, no Reino Unido. A economista defende uma mudança radical do capitalismo para o mundo pós-pandemia. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/08/08/a-economista-que-defende-uma-mudanca-radical-do-capitalismo-para-o-pos-pandemia.htm.
[v] PETERSEN, Paulo. A crise do coronavírus escancara os limites do capitalismo. Brasil de Fato, 2020. https://www.brasildefatope.com.br/2020/08/10/petersen-a-crise-do-coronavirus-escancara-os-limites-do-capitalismo.
[vi] EVARISTO, Conceição. Pandemia e pós pandemia: desafios para a humanidade. 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/waldeckcarneiro/videos/1179440905741485/.
[vii] BUTLER, Judith. Capitalism has its limits. Verso Books, 2020. Disponível em: https://www.versobooks.com/blogs/4603-capitalism-has-its-limits.
[viii] DAVIS, Angela. Construindo movimentos: uma conversa em tempos de pandemia. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mIwEP5pXcSg.
[ix] FEDERICI, Silvia. Capitalismo, Reproduccíon y Cuarentena. Lobo Suelto, 2020. Disponível em: http://lobosuelto.com/capitalismo-reproduccion-y-cuarentena-silvia-federici/.
[x] DINIZ, Débora. Mundo pós-pandemia terá valores feministas no vocabulário comum, diz antropóloga Debora Diniz. Folha Online, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mundo-pos-pandemia-tera-valores-feministas-no-vocabulario-comum-diz-antropologa-debora-diniz.shtml?fbclid=IwAR3xgGAHpVniQTA8wmDnszhK-jcDDmIkgx9e_OKFizGeW_DIbyJZ4Y82POE
Id. Um mundo mais feminista? Ecoa-UOL, 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/o-mundo-pos-covid-19-2—comportamento-por-debora-diniz/#page1
[xi] SVAMPA, Maristella. Reflexiones para un mundo post-coronavirus. Elefante Editora, 2020. Disponível em: https://www.editoraelefante.com.br/reflexoes-para-um-mundo-pos-coronavirus/
[xii] STENGERS, Isabelle. No Tempos das Catástrofes. São Paulo: Cosac Naify. 2015.
[xiii] CUSICANQUI, Silvia Rivera. Resistencias, insurgencias y luchas por la vida en tiempos de exterminios. CLACSO TV, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VQ08llpL9YM.
Id. Diálogo de saberes 1: Coronavirus devela crisis del capitalismo. Planeta Paz Comunicaciones, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=–vbJKD3HMI.
Id. Inti Raymi 2020: Celebración en tiempos de distanciamento – Rito-fiesta y sublevación. Wambra, 2020. Disponível em: http://www.facebook.com/WambraEC/videos/vb.973959955962085/693488604820816/?type=2&theater
[xiv] Na concepção de Silvia Cusicanqui, Pachakuti, como muitos outros conceitos andinos, pode ter dois sentidos divergentes e complementares – e até mesmo antagônicos em certas circunstâncias: o sentido de catástrofe ou o sentido de renovação. Assim, passado e futuro são elementos que estão contidos no tempo presente, trazendo dessa forma a experiência da contemporaneidade que se move em ciclos e espirais a partir de uma contínua retroalimentação do passado sobre o futuro. As práticas e saberes de resistência coletiva que se elaboram de forma variada se expandem a partir das fissuras da história e conjugam memórias coletivas nas quais o passado de luta não apenas está presente, mas sobretudo potencializa os projetos contemporâneos de emancipação. In: Ch’ixinakax utxiwa. Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta limón, 2010. Ver também nota 1.
[xv] Ibid., nota 15.
[xvi] KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras. 2015. No livro, Davi Kopenawa relata ao etnólogo Bruce Albert a história do povo Yanomami e o contato conflituoso com o mundo dos brancos desde a década de 60. O livro também conta o que seria uma profecia do povo Yanomami, em que a devastação da floresta amazônica representa a própria morte dos xamãs, ocasionando a queda do céu e culminando com o fim do mundo.
[xvii] Segundo pesquisa elaborada pelo Instituto Socioambiental (Isa) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Terra Indígena Yanomami é a mais vulnerável ao coronavírus entre as regiões indígenas da Amazônia. A Hutukara, principal associação do povo Yanomami, denuncia os riscos de contaminação pela Covid-19 associado às invasões ilegais. Estima-se que há cerca de 20 mil garimpeiros atuando ilegalmente naquele território com a “epidemia do ouro” (oru xawara). O povo Yanomami diz não querer que “extraiam os minérios que Omama escondeu debaixo da terra” porque não quer que “as fumaças de epidemia xawara” se alastre por sua floresta: “(os brancos) tem que saber que por causa da fumaça maléfica dessas coisas que eles tiram da terra estamos morrendo todos, um atrás do outro!”. O clima de tensão e violência é similar ao chamado Massacre de Haximu, ocorrido em 1993, em que 16 indígenas foram mortos por garimpeiros. Haximu é o primeiro caso reconhecido como genocídio pela Justiça brasileira. Destaca-se também que a primeira morte indígena por Covid-19 confirmada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) no Brasil foi de um jovem Yanomami residente na cidade de Boa Vista – Roraima. Estudo disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/o-impacto-da-pandemia-na-terra-indigena-yanomami-foragarimpoforacovid.
[xviii] Célia Xacriabá é mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e atualmente cursa o doutorado em Antropologia pela UFMG. É professora e ativista indígena do povo indígena Xacriabá, integrando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) onde mobiliza a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas.
[xix] XAKRIABÁ, Célia. Participação no evento virtual Latinidades 2020. Construções e coalizões do agora. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b2dSCP86Ij4
[xx] Relatório disponível em: https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/defending-tomorrow/.
[xxi] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Involuntários da Pátria – elogio do subdesenvolvimento do antropólogo. Aula pública realizada durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro, 2016.
[xxii] MBEMBE, Achille. Le droit universel à la respiration. Analise Opinion Critique – AOC, 2020. Disponível em: https://aoc.media/opinion/2020/04/05/le-droit-universel-a-la-respiration/?loggedin=true. Tradução – O direito universal à respiração. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598111-o-direito-universal-a-respiracao-artigo-de-achille-mbembe
[xxiii] KRENAK, Ailton; BISPO, Antônio; MARTINS, Gizele. Participações em sessão virtual Caminhos para construção do mundo que queremos: o que aprender com a Pandemia? Escola Nacional de Saúde Pública/ENSP e Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/EPSJV – Fiocruz, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HELi9GGVtIk.
[xxiv] Ibid., nota 24.
[xxv] KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Cia das Letras, 2020.
Id., Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia das Letras, 2019.
Id., A vida não é útil. São Paulo: Cia das Letras, 2020.
[xxvi] KRENAK, Ailton. Entrevista à série Vozes da Floresta – A aliança dos Povos da Floresta de Chico Mendes a nossos dias. Le Monde Diplomatique Brasil, 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/tv/vozes-da-floresta-ailton-krenak/.
Id. Lilia Shwarcz Entrevista – Ideias para adiar o fim do mundo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GIz0hRuRXqc
[xxvii] Ibid., nota 27.
[xxviii] BRUM, Eliane. Imaginando Futuros. Festival Mulheres do Mundo WOW 24h, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AMr8V6PjGm4.
[xxix] Ibid., nota 23.
[xxx] MBEMBE, Achille. Entrevista Pandemia democratizou poder de matar. Folha Online, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml
[xxxi] Ibid., nota 31.
[xxxii] Ibid., nota 23.
[xxxiii] Ibid., nota 31.
[xxxiv] KUTTNER, Robert. A profecia de Karl Polanyi. Revista IHU on-line, 2018.
[xxxv] POLANYI, Karl. A Grande Transformação. Editora Campus, Rio, 2ª ed., 2000.
[xxxvi] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019.
[xxxvii] DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A “nova” fase do neoliberalismo. Viento Sur, 2019.
[xxxviii] Ibid., nota 38.
[xxxix] Ibid., nota 35.
[xl] Ibid., nota 38.
[xli] ROMANO, Jorge O. et al. A disputa de discursos sobre a pandemia da Covid-19. Le Monde Diplomatique Brasil, 2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-disputa-de-discursos-sobre-a-pandemia/.
[xlii] Ibid., nota 42.
[xliii] Há iniciativas ainda incipientes e que parecem reproduzir os mesmos limites de propostas anteriores. É o caso da Internacional Progressista, lançada no dia 12 de maio de 2020 pelo movimento pró-democrático e pan-europeísta DiEM25 e o Instituto Sanders, dos EUA, com a assinatura de mais de 40 políticos e intelectuais de todos os continentes, dentre eles, Noam Chomsky, Yanis Varoufakis e Fernando Haddad. O grupo tem por objetivo fomentar a união, coordenação e mobilização de ativistas, associações, sindicatos, movimentos sociais e partidos em defesa da democracia, da solidariedade, da igualdade e da sustentabilidade.
[xliv] Ver, por exemplo, Paixão e razão: Os discursos políticos na disputa eleitoral de 2018. Jorge O. Romano (Org.) – São Paulo: Veneta, 2018. Disponível em: https://diplomatique.org.br/wp-content/uploads/2019/03/livropaixaoerazao.pdf
[xlv] MOUFFE, Chantal. Entrevista “La única manera es desarrollar un populismo de izquierda” – El momento populista. Página 12, 2018. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/157798-la-unica-manera-es-desarrollar-un-populismo-de-izquierda
[xlvi] Ibid., nota 42.
[xlvii] WIEVIORKA, Michel. Entrevista de Eduardo Febbro à Página 12, 2020.