A disputa de discursos sobre a pandemia
Em poucos meses, a pandemia de Covid-19 alcançou quase todos os países do planeta. Ameaça a saúde e modifica o cotidiano de bilhões de pessoas. Ressuscita demandas e expectativas sobre o Estado. Abre espaços para a importância da solidariedade na sociedade. Ofusca o papel redentor do mercado no imaginário hegemônico
Na maioria das interpretações, a pandemia não é vista só como uma crise sanitária. Neste artigo convidamos o leitor a olhar para a pandemia como um “acontecimento”. O filósofo Byung-Chul Han, recuperando Nietzsche e Foucault, destaca que o “acontecimento” abre uma fissura na certeza dominante. É tão imprevisível e repentino como um evento natural. Apresentando um novo exterior ao sujeito, o acontecimento representa descontinuidades e até rupturas que criam oportunidades.1
Alterando a normalidade estabelecida pelas relações de poder dominantes, o acontecimento pandemia Covid-19 coloca em suspense a formação hegemônica vigente, dando margem à disputa política de discursos – com suas narrativas nas dimensões nacional e internacional.
Neste artigo apresentamos algumas ideias de um trabalho mais amplo,2 com base nos princípios da análise do discurso propostos por Laclau e Mouffe e da abordagem de marcos interpretativos.3 Procuramos reconstruir o campo discursivo sobre a pandemia com os principais discursos em disputa – o negacionista e o científico –, que articulam com ênfases diferentes dois polos temáticos: a sustentabilidade da economia e a sustentabilidade da vida. A análise continua com a identificação de seus respectivos porta-vozes nacionais e internacionais; o diagnóstico e as soluções propostas; a construção antagônica das identidades na forma de um “eles” (os inimigos) e um “nós” (o povo); os meios de divulgação e reprodução dos discursos; a reconfiguração política derivada dessa disputa e as visões de futuro pós-pandemia.
De um lado, temos o discurso negacionista, defendido por algumas autoridades como o presidente dos Estados Unidos e o do Brasil, lideranças econômicas e religiosas pentecostais, e difundido principalmente nas mídias sociais. Esse discurso minimiza ou não reconhece a amplitude e importância da pandemia – é uma gripezinha4 –, privilegiando a sustentabilidade da economia ao incentivar a volta ao trabalho e o fim das medidas restritivas de isolamento social horizontal e do lockdown.
De outro, o discurso científico, defendido por médicos sanitaristas com apoio de instituições como a Organização Mundial da Saúde e a Fiocruz, de governadores (São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e os demais do Nordeste), da maioria dos governos estrangeiros (Rússia, China, Argentina, França, Alemanha, Nova Zelândia etc.), além do papa, e reproduzido sobretudo nas mídias tradicionais. Tal discurso privilegia o cuidado com a saúde e a sustentabilidade da vida, defendendo o isolamento social horizontal – fique em casa – e até o lockdown como melhor forma de garantir a vida e o êxito futuro em termos de sustentabilidade econômica.
A análise política do discurso negacionista
Nas práticas discursivas de porta-vozes do discurso negacionista, o diagnóstico do problema nega ou minimiza a importância da pandemia como um risco à sustentabilidade da vida, tratando as medidas de isolamento social horizontal como histeria e pânico criados pela mídia e por autoridades de oposição, já que as consequências do tratamento não podem ser mais danosas que a própria doença. A injustiça desse impacto é projetada sobre a população e sobre as regiões mais pobres do país, sendo justificada pelo castigo do desemprego e da fome. Práticas discursivas do presidente do Brasil são um exemplo das adaptações do discurso no caminho da negação da pandemia: fantasia quando ainda não havia mortes no país; histeria quando apareceu a primeira morte; gripezinha quando havia onze mortes; medinho ao alcançar 202 mortes; está indo embora quando se chegou a 1.230 mortes; não sou coveiro com 2.588 mortes; e daí? Lamento, quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagres quando questionado sobre o crescimento para 5.083 mortes; chegou no limite, não tem mais conversa com 6.759 mortes; organização de um churrasco para 3 mil pessoas no Palácio da Alvorada – substituído por um passeio de jet ski no Lago Paranoá – quando o país atingia 10.627 mortes; o desemprego, a fome e a miséria serão o futuro daqueles que apoiam a tirania do isolamento total, no dia em que o número de mortes chegava a 15.662; quem é de direita toma cloroquina; quem é de esquerda, tubaína, debochando dos críticos à sua campanha de flexibilizar o uso da cloroquina, quando o país superou 1.100 óbitos num dia, alcançando o total de 17.971 mortes.
O tom discursivo é emocional, apelativo, incisivo e até agressivo em muitos contextos. As performances procuram desqualificar as medidas de priorização da saúde: circular sem proteção de máscaras, aperto de mãos sem luvas, incentivo a aglomerações como manifestações, carreatas e cultos.
As soluções propostas ao enfrentamento da pandemia passam pela priorização da sustentabilidade econômica. No caso do presidente dos Estados Unidos, vemos uma recuperação de seus lemas de campanha: America First e Keep America Great. Para tratar a Covid-19, destaca-se o uso da hidroxicloroquina, mas também a aplicação de injeção de desinfetante ou colocar a luz solar dentro do corpo. No caso do presidente do Brasil, propostas de relaxamento do isolamento social horizontal: o Brasil não pode parar; cada familiar deve cuidar dos mais idosos; não pode deixar na conta do Estado. E, seguindo Trump, propõe também a hidroxicloroquina. As lideranças pentecostais locais, por sua vez, defendem a força da fé para curar a Covid-19 e, reforçadas pelo presidente, convocaram juntos o jejum religioso para ficar livre desse mal. Essas lideranças defendem a reabertura do comércio e dos templos, assim como soluções controversas, como a imunização por meio de óleo ungido ou pela cloroquina de Jesus.
A efetividade desse discurso está em construir identidades políticas apontando seu polo antagônico num “eles” que articula atributos e demandas negativas vinculadas a grupos opositores. Ao mesmo tempo, por contraste, permite articular e conformar politicamente um “nós” positivo, identificado como “o povo”.
No “eles” se articula uma cadeia de significados5 e elementos negativos como anti-Trump, democratas, entreguistas, mídia corporativa, China, OMS. E, no caso brasileiro, os fecha-tudo, antipatriotas, ex-aliados traidores, como os ex-ministros Mandetta e Moro e governadores como Doria e Witzel, líderes do Congresso como Maia e Alcolumbre, juízes do STF, mas também China, a imprensa e a mídia tradicional e os permanentes inimigos de esquerda, compostos por governadores do Nordeste, comunistas e ditadores. O “eles” das lideranças de igrejas pentecostais é análogo ao do presidente do Brasil, agora também identificados como pessoas sem fé , convertidas numa personificação do mal e equiparadas ao coronavírus.
A cadeia do “nós” construída pelo presidente dos Estados Unidos articula aos seus lemas America First Again e Keep America Great, atores e valores como republicanos, conservadores, nacionalistas, fazendeiros, classe média, crescimento econômico, liberdade e trabalho, mídias sociais de diálogo direto, sem manipulação, protecionismo, valorização do indivíduo e livre iniciativa. As práticas discursivas do presidente brasileiro articulam um “nós” que aglutina o Brasil não pode parar, deixa o mito governar, deixa o povo trabalhar, os patriotas, empresários e industriais que garantem os empregos, a economia que é vida, mídia independente, a verdade, a boa ciência, os homens de Deus, os cidadãos de bem. E as lideranças de igrejas pentecostais incluem nessa cadeia o presidente, as igrejas abertas, os defensores da família, os trabalhadores fiéis, abrir tudo porque causa menos danos, os jovens que têm de voltar a trabalhar. O seu “nós” é sintetizado no coronafé.
A análise política do discurso científico
Na prática discursiva dos porta-vozes do discurso científico, a pandemia de Covid-19 é diagnosticada como crise planetária, e não uma guerra: uma crise sanitária e humanitária, multidimensional, que coloca em xeque o modelo civilizatório. Ela agrava problemas de cunho socioeconômico preexistentes, tais como fragilidade dos sistemas de saúde e do modelo econômico, desigualdade social dentro dos países e entre os países ricos e pobres. Neste contexto, defende que o problema se potencializa mais quando a questão da economia vem antes da preservação da vida, o que leva à irresponsabilidade e ao desrespeito às medidas de prevenção. A cultura do descarte de pessoas promovida pelo mundo das finanças, a desarmonia e o egoísmo que, juntos, levam ao desrespeito às orientações da OMS por ganância.
Esse diagnóstico destaca como injustiças as terríveis perdas de vidas humanas, as histórias, sonhos e expectativas frustrados que estão por trás dos números; o impacto da crise na vida dos mais vulneráveis, com mortes, desemprego, falências, miséria e fome; a solidão causada pelo vírus. No Brasil, as práticas discursivas destacam que estamos lutando contra o coronavírus e contra o Bolsonavírus. É o vírus do extremismo, cujo pior efeito é ignorar a ciência e negar a realidade.
O tom é técnico – embasado em relatórios da OMS –, mas eventualmente também assume o tom emocional. Como exemplo internacional, Putin, ao comparar o país a uma grande família. No contexto nacional, Doria, ao se expressar de forma emocional e moralmente negativa: vocês, que defendem a abertura, estão preparados para carregar os caixões com as vítimas do coronavírus?
As soluções e propostas destacam que os governos devem tomar medidas de isolamento social da população, mas também fornecer meios para que a população possa ficar em isolamento. A elaboração de vacina é essencial para sair da pandemia. Para a Igreja Católica, vocalizada pelo papa Francisco, além da fé e da esperança de um mundo melhor, é primordial seguir as orientações de prevenção da OMS, a solidariedade internacional, a remoção das desigualdades. Putin e Xi Jinping destacam a cooperação internacional na economia e nas pesquisas de vacinas e medicamentos. O presidente Fernández, da Argentina, ressalta que é preferível que as fábricas estejam vazias porque seus trabalhadores estão em quarentena e não porque possam ter se contagiado ao irem trabalhar, adoecer ou morrer. A solução da crise passa também por mudar um sistema capitalista que se preocupa muito mais com o financeiro do que com o produtivo, que concentra renda entre poucos e distribui a pobreza entre milhões. Para a Fiocruz, um esforço de todos, regras claras e a colaboração do setor privado, dos empresários e do setor público: aí entra a política com “P” maiúsculo. Os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro procuram buscar o equilíbrio entre salvar vidas e manter a economia, as duas coisas andam juntas. Para o governador do Maranhão, o problema é o desalinhamento entre gestores estaduais e federal: só será possível vencer essa pandemia quando todas as agendas estiverem alinhadas.
O discurso científico articula um “eles” negativo que, no caso dos atores internacionais, aglutina a pandemia da irresponsabilidade; governantes e empresários preocupados apenas com a economia; o charlatanismo dos falsos profetas; os grupos negacionistas que minimizam a Covid-19, desrespeitam e desacreditam as medidas orientadas pela OMS; a cultura do descarte de pessoas promovida no mundo das finanças; cada um por si como resposta à crise; a falta de cooperação internacional; a xenofobia; empresários miseráveis que demitem na crise. No Brasil se somam à cadeia de equivalências do “eles” do discurso científico: a irresponsabilidade; a promoção do ódio e o fazer política em vez de governar; populistas; o presidente e seus filhos, o gabinete de fake news; golpistas; os que atentam contra a Constituição, os semeadores do caos, cavaleiros do apocalipse; manifestantes de carreatas, milicianos ideológicos, aliados da doença; aqueles que ameaçam a imprensa ou que ignoram a ciência e negam a realidade, os insensatos e os indiferentes.
O “nós” dos atores internacionais, como a OMS, destaca a solidariedade global e a responsabilidade dividida; o papa inclui a fraternidade da comunidade humana; os que reconhecem a vulnerabilidade física, cultural e política diante da pandemia; os que alertam para o perigo do vírus da indiferença egoísta. Putin e Xi Jinping destacam o povo unido, a proatividade e a adoção rápida de medidas de contenção da pandemia; empresários comprometidos com a agenda de desenvolvimento nacional; o futuro compartilhado da humanidade. Fernández destaca o acordo construído pelos argentinos de cuidar de todos, de todas e de “todes”. No Brasil, se somam o Estado democrático de direito; o Brasil precisa, a Câmara aprova; os brasileiros que querem paz; gestão eficiente; o núcleo do bom senso que articula Judiciário, Ministério Público, Congresso, governadores, prefeitos e ex-ministros; responsabilidade e senso de humanidade.
A produção de antagonismos
Na disputa entre os discursos negacionista e científico, por meio da identificação do “eles” e do “nós”, são produzidos e ressignificados antagonismos que expressam projetos políticos e visões de sociedade em luta pela hegemonia. Na prática discursiva de Trump, os antagonismos nacionais e internacionais se intensificam. Na dimensão nacional, é marcado pela disputa eleitoral e radicaliza a oposição entre America First Again, republicanos e as mídias sociais sem manipulação vs. anti-Trump, democratas, entreguistas e a mídia corporativa. Na dimensão internacional, o antagonismo reforçado coloca a China e o vírus chinês, a OMS ineficiente que defende os interesses chineses, a globalização que ameaça a soberania, a imigração descontrolada e o terrorismo, em oposição ao Keep America Great, protecionismo a manufaturas nacionais prejudicadas por acordos internacionais, valorização do indivíduo e da livre-iniciativa, defesa nacional e combate ao autoritarismo e ao terrorismo no mundo. No caso do papa, o antagonismo destacado é entre falsos profetas, governantes, empresários e elites preocupadas apenas com lucro e economia, defensores da cultura do descarte, cultores do egoísmo, a segregação, a histeria, a desigualdade social e o preconceito contra migrantes, minoria e mais vulneráveis, em oposição ao povo católico, pobres e excluídos, governantes comprometidos com justiça social, sustentabilidade ambiental e preservação da vida.
Na prática discursiva negacionista do presidente brasileiro, o antagonismo principal se situa entre o Brasil não pode parar, deixa o mito governar, deixa o povo trabalhar, os patriotas, em oposição aos que apoiam a tirania do fecha tudo, os antipatriotas. As lideranças de igrejas pentecostais ressignificam esse antagonismo como coronafé vs. coronavírus. Nas práticas discursivas científicas do presidente da Câmara dos Deputados e dos governadores de São Paulo e Rio de Janeiro, desponta a criação de um novo antagonismo que emerge com força no contexto da Covid-19. Esse antagonismo, que está dividindo a ampla coalizão de direita que permitiu o triunfo eleitoral do atual presidente, se daria entre uma direita gerencial reciclada em oposição à extrema direita fundamentalista (segmento da direita que se radicaliza em extrema direita). Junto a esse novo antagonismo, permanece e se reproduz – ainda que em menor intensidade – o antagonismo advindo da contenda eleitoral, mas reatualizado, agora sob o risco da hegemonia da extrema direita, polarizada entre o presidente e seus aliados em oposição à esquerda (petista ou não) e aos setores liberais unidos numa frente pela democrática.
A divulgação e reprodução dos discursos negacionista e científico no Brasil dividem as mídias. Nas mídias tradicionais, encontramos um alinhamento dos veículos corporativos tradicionais com o discurso científico, mas, nas mídias digitais, esse alinhamento se dissolve e práticas discursivas negacionistas ganham visibilidade, com dominância no WhatsApp, uma rede digital popular e estruturada em grupos privados de compartilhamento. Pesquisas também apontam que a televisão – particularmente a Globo –, volta a ganhar confiabilidade no contexto da Covid-19, do isolamento e do descrédito das fake news.6
Assim como Trump, ao mesmo tempo que hostiliza as mídias tradicionais, o Twitter é o principal meio de comunicação direta do presidente brasileiro com seus apoiadores, com pelo menos uma tag diária relacionada ao seu governo alcançando os trending topics. Em seu canal no YouTube, o presidente mantém lives periódicas onde comenta os assuntos da semana.
A reconfiguração política e a disputa discursiva
Apontamos no início do artigo que a pandemia como acontecimento, ao alterar a normalidade estabelecida pelas relações de poder dominantes, colocaria em suspensão a hegemonia vigente. As disputas discursivas remetem a uma confrontação entre diferentes práticas e projetos antagônicos. Tal confrontação implica escolhas entre visões opostas de sociedade. Num país marcado por antagonismos, ante situações que saem da normalidade como as que envolvem a pandemia de Covid-19, as propostas para enfrentá-la exigem escolhas por parte das lideranças de ações políticas que visam manter suas bases dentro do “nós” e ampliá-las por meio de novos aderentes. Assim, o resultado da disputa entre os discursos negacionista e científico, com seus impactos na reconfiguração das identidades, pode ser acompanhado pelas pesquisas de opinião que avaliam os governos.
Líderes estrangeiros do discurso científico, como Fernández, obtiveram aumento do apoio popular durante a pandemia de Covid-19 em 24% em um mês,7 enquanto Trump perdeu 7% de apoio no mesmo espaço de tempo.8
No Brasil, pesquisas apontam a perda de apoiadores do presidente com seu discurso negacionista. Por exemplo, na pesquisa CNT/MDA entre janeiro e maio, a avaliação positiva caiu de 34,5% para 32%; e a negativa aumentou de 31% para 43,4%.9 Tal tendência ocorre junto com uma radicalização no apoio e na oposição ao presidente: segundo o Datafolha, entre dezembro e abril, o ruim/péssimo passou de 36% para 38%, enquanto o ótimo/bom cresceu de 30% para 33%.
A pesquisa da Vox Populi feita entre 18 e 26 de abril identifica uma mudança na base eleitoral do presidente. Metade dos 30% que avaliam como bom ou ótimo conformariam o núcleo duro de aderentes ao seu discurso negacionista. A outra metade tem mudado: grupos de maior renda e mais escolarizados (parte da classe média) passam a se opor ao negacionismo. Porém, o negacionismo tem ganhado eco nos setores populares de menor renda e escolarização. É bem significativa a queda da rejeição a esse discurso no Nordeste, base do lulismo. Isto é, membros das classes C, D e E, com a deterioração das condições econômicas e a redução de acesso ao emprego e aos serviços públicos (com a emenda constitucional de teto dos gastos sociais), ficariam mais sensíveis às práticas discursivas do presidente com soluções que priorizam a renda (coronavoucher) e a volta ao trabalho, mais que a sustentabilidade, a vida e a saúde.
Politizando a pandemia: uma “sopa de futuros incertos”
E o futuro pós-pandemia? Intelectuais de todo o mundo se debruçam sobre essa reflexão. Num recente livro com o sugestivo título de Sopa de Wuhan,10 Slavoj Žižek considera que a pandemia golpeou de morte o capitalismo e que poderá surgir uma nova era, de um novo tipo de comunismo, baseado na colaboração global, na regulação e no controle da economia. Byung-Chul Han, por sua vez, afirma que o vírus realizará o que o terrorismo não conseguiu, quando o estado de exceção passa a ser a ordem normal; o capitalismo continuará com mais força, e regimes autoritários surgirão ou se consolidarão, pois o vírus potencializou as tecnologias de vigilância digital e o Estado policial, com a aprovação dos cidadãos. Para Ignacio Ramonet, apesar de a velha normalidade ter gerado a pandemia, o mainstream neoliberal procurará recuperar essa velha normalidade pelos efeitos do que Naomi Klein aponta como capitalismo do choque – a nova normalidade permitiria o aprofundamento da dominação neoliberal, financeira e predatória, manipulando a crise para criar mais desigualdades, mais exploração e mais injustiças.11 Já Michel Wieviorka entende que não são as ideias que faltariam, mas as figuras, os líderes e os atores políticos com suficiente legitimidade e credibilidade para levá-las a cabo.12 E Walden Bello considera que haveria demasiada ira, ressentimento e insegurança liberados de forma que tanto a extrema direita como a esquerda teriam condições de aproveitar essa tormenta subjetiva para produzir transformações.13
Qualquer que seja o futuro, será construído por enunciadores e organizadores de ideias como essas. E há iniciativas no âmbito internacional em curso. Pela direita, o grupo The Movement, formado em torno de Steve Bannon, ex-estrategista-chefe da campanha de Trump à presidência em 2016 e assessor “informal” do presidente brasileiro. O grupo, com sede em Bruxelas, procura formar lideranças, promover e articular campanhas de extrema direita na Europa e no mundo – uma internacional conservadora que promove nacionalismos xenófobos, anti-imigrantes e fundamentalistas. A influência da extrema direita populista vem crescendo, paulatinamente ocupa espaços e apoios nos setores empobrecidos e nas classes médias afetados pela globalização, e se mostra posicionada para aproveitar o descontentamento do povo com o acontecimento da Covid-19.
Por outro lado, na esquerda, o movimento pró-democrático e pan-europeísta DiEM25 e o Instituto Sanders, dos Estados Unidos, lançaram no dia 12 de maio de 2020 a Internacional Progressista. Mais de quarenta políticos e intelectuais – entre eles Noam Chomsky, Yanis Varoufakis e Fernando Haddad – assinaram o lançamento. Chomsky destaca a necessidade urgente de promover um Green New Deal: uma proposta para transformar o sistema econômico por meio da redução drástica de emissões de gases de efeito estufa, apostando na eficiência energética.14 Nesse sentido, Ramonet complementa que a resposta pós-pandêmica deveria fundar-se no que Edgar Morin denomina de economia verdadeiramente regenerativa, baseada no cuidado e na reparação.15
A esquerda teria muitas ideias, mas uma grande pobreza de estratégias e lideranças unificadoras eficazes. Como diz Walden Bello, as personalidades carismáticas estão principalmente à direita.16 A paixão e a razão são cada vez mais indissociáveis nas escolhas e na mobilização política.17 E a esquerda tem muito que aprender sobre como operar essa integração entre paixão e razão, principalmente junto aos setores populares, enquanto instrumento de mobilização para a emancipação.
Procurando recuperar os aprendizados e tentando superar os preconceitos do mainstream intelectual dominante no campo progressista, Mouffe, em artigo recentemente publicado pelo Le Monde Diplomatique Brasil, lembra que os movimentos populistas aparecem sempre no contexto de crises do modelo hegemônico. Assim, a estratégia populista de esquerda se apresentaria como pertinente na saída da crise da Covid-19.18 Ao populismo de esquerda caberia expandir a democracia para um maior número de áreas com a inclusão dos atores descartáveis, e também aprofundá-la. Para isso, propõe uma ruptura com a ordem neoliberal e o capitalismo financeiro, que são incompatíveis com a democracia, e procura estabelecer uma nova formação hegemônica que coloque no centro a igualdade, a justiça social e a sustentabilidade. A estratégia é criar uma vontade coletiva, um “nós” que possa transformar as relações de poder e instaurar um novo modelo econômico e social em torno do Green New Deal e que procure democratizar a ordem socioeconômica, criando condições para uma transição ecológica.19
Com a disputa dos discursos negacionista e científico, a crise da pandemia de Covid-19, ao recriar fronteiras políticas com base em velhos e novos antagonismos, assinala a volta do político e oferece uma nova dimensão à estratégia populista. Dependendo das forças que se apropriem dela e da maneira como se construa a oposição “nós/eles”, essa pandemia pode levar a uma radicalização dos valores democráticos ou a soluções autoritárias.20 Estaríamos, assim, numa corrida entre uma desglobalização progressista e uma regressão social e ecológica profunda. Qual será o resultado? Não sabemos. A formação hegemônica está em suspense e o futuro está em aberto. O que podemos intuir é que, num contexto pós-Covid-19, “o pior será pior e o melhor será melhor”.21
Jorge Osvaldo Romano, Thais Ponciano Bittencourt, Paulo Augusto André Balthazar, Liza Uema, Eduardo Britto Santos, Annagesse de Carvalho Feitosa, Renan Alfenas de Mattos, Paulo Petersen, Juanita Cuellar Benavides, Ana Carolina Aguiar Simões Castilho, Caroline Boletta de Oliveira Aguiar, Érika Toth Souza, Larissa Rodrigues Ferreira, Myriam Martinez dos Santos e Vanessa Barroso Barreto são pesquisadores e estudantes do Grupo de Pesquisa “Discurso, Redes Sociais e Identidades Sociopolíticas (Discurso)”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade e ao Curso de Relações Internacionais do DDAS/ICHS, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
1 Byung-Chul Han, Psicopolítica, Ayne, Belo Horizonte, 2018.
2 Os resultados dessa pesquisa mais ampla, que compreende a análise específica das práticas narrativas dos principais porta-vozes dos discursos negacionista e científico em nível nacional e internacional, assim como reflexões sobre o papel das mídias e os debates no campo intelectual, serão publicados em sequência no Le Monde Diplomatique Brasil online.
3 A análise política do discurso se fundamenta no olhar de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, para os quais as disputas de narrativas presentes no contexto democrático remetem a uma confrontação entre diferentes práticas e projetos antagônicos. O discurso político que conforma as narrativas em disputa tem a virtude e o poder de articular as identidades múltiplas e contingentes dos sujeitos (E. Laclau, Los fundamentos retóricos de la sociedad, FCE, Buenos Aires, 2014). A análise dos marcos interpretativos (frame analysis) desenvolvida por autores como Snow, Benford e Galván considera o discurso político um conjunto articulado de marcos de interpretação da realidade que estrutura o pensamento, a fala e as ações individuais e coletivas (D. Snow e R. Benford, “Ideology, Frame Resonance and Participant Mobilization”. In: B. Klandermans, H. Kriesi e S. Tarrow (eds.), From Structure to Action: Comparing Social Movement Research across Cultures [Da estrutura à ação: comparando a pesquisa sobre movimentos sociais em diferentes culturas], JAI Press, Greenwich, 1988).
4 Destacamos em itálico as palavras ou os significados expressos nas práticas discursivas dos porta-vozes.
5 Ou “cadeia de equivalências”, na análise de Laclau e Mouffe (op. cit.).
6 Disponível em: https://anchor.fm/manchetometro/episodes/1-Podcast-do-Manchetmetro-o-comportamento-da-TV-durante-a-crise-do-coronavrus-ecbkk6.
7 Disponível em: https://761b6f02-2853-490f-8ebf-b60e11417c5e.filesusr.com/ugd/1cc2f9_6293eec4dcf7462e83d0dd988b440e2e.pdf?index=true.
8 Disponível em: https://www.ipsos.com/sites/default/files/ct/news/documents/2020-05/2020_reuters_tracking_-_core_political_coronavirus_tracker_05_13_2020_.pdf.
9 Disponível em: https://cdn.cnt.org.br/diretorioVirtualPrd/6b767840-4489-4901-afff-aed024d3c41b.pdf.
10 G. Agamabem et al., Sopa de Wuhan – Pensamiento Contemporaneo en Tiempos de Pandemias, Aspo, 2020.
11 Ignacio Ramonet, “La pandemia y el sistema mundo”, Le Monde Diplomatique (Espanha), 25 abr. 2020
12 Michel Wieviorka, entrevista de Eduardo Febbro em Página 12, 3 maio 2020.
13 Walden Bello, entrevistado por Eduardo Febbro em Página 12, 10 maio 2020.
14 Noam Chomsky, entrevistado por Marta Peirano, El País, 17 maio 2020.
15 Ignacio Ramonet, op. cit.
16 Walter Bello, op. cit.
17 Ver, por exemplo, Jorge O. Romano (org.), Paixão e razão: os discursos políticos na disputa eleitoral de 2018, Veneta, São Paulo, 2018.
18 Para Mouffe, seguindo Laclau, o populismo seria uma estratégia de construção de uma fronteira política, por meio do estabelecimento de uma oposição entre os dominantes (elites) e os dominados (o povo). Tudo depende da maneira como se constrói a oposição nós/eles, do contexto histórico e das estruturas socioeconômicas nas quais se desenvolve (Chantal Mouffe, “Controvérsia sobre o populismo de esquerda”, Le Monde Diplomatique Brasil, maio 2020).
19 Chantal Mouffe, op. cit.
20 Chantal Mouffe, op. cit.
21 Michel Wieviorka, op. cit.