Terceirização e suas consequências no Brasil
Com a generalização da terceirização, o aniquilamento do mercado interno de trabalho poderá ser uma realidade, com o desaparecimento das ocupações de classe média assalariada, salvo na condição de PJ. As consequências são consolidação da situação de economia de baixo salário, elevada instabilidade nas relações de trabalho e ampla polarização social
O esgotamento do modelo fordista de organização da produção e do trabalho a partir da década de 1970 foi acompanhado pelo acirramento da competição intercapitalista e, por consequência, pela experimentação de diferentes iniciativas patronais visando a um novo padrão produtivo e laboral. Com o recente movimento da desglobalização provocado pela crise internacional de 2008, ainda sem solução há quase dez anos, a perspectiva das cadeias globais de valor protagonizada pela grande corporação transnacional ocidental perde força.
Reacendem políticas de defesa do conteúdo nacional, ações de protecionismo comercial e, inclusive, a corrida armamentista. Além do êxito do Brexit, a Inglaterra lançou um programa de recuperação industrial, enquanto nos Estados Unidos o governo Trump busca a reindustrialização com o retorno dos investimentos em infraestrutura e ampliação do gasto militar.
Concomitantemente com a perda de dinamismo do produto mundial e o crescimento do comércio externo abaixo da evolução do PIB global desde 2008, a presença dos importados na produção dos países se reduz, como em casos sintomáticos da China (de 71% para 65%) e dos Estados Unidos (de 44% para 38%) entre 2007 e 2015. No mesmo sentido, a predominância da internacionalização das finanças (investimentos, dívidas e atividades bancárias internacionais) perde fôlego, com recuo de 20,6% do PIB mundial, em 2007, para 2,6%, em 2015.
Isso é importante destacar porque foi a partir da grande corporação transnacional que se difundiu no interior do capitalismo o processo da terceirização de natureza externa e interna, capaz de alterar significativamente as formas de relação entre as empresas no interior da organização do processo produtivo. Com a experimentação inicial do toyotismo, por exemplo, a nova empresa enxuta e tecnologicamente avançada focou a especialização produtiva (core business) como resposta ao aprofundamento da concorrência por meio da busca pela ampliação da produtividade e do corte de custos atinentes ao antigo modelo fordista de produção generalizada.
Assim, a externalização das atividades conexas àquela especializada em cada empresa assumiu a forma da terceirização das tarefas para outras empresas contendo dois objetivos principais.
De um lado, a terceirização externa, que compreendeu tanto a contratação de empresas especializadas em diferentes partes do mundo (international outsourcing) como a realocação de empresas do mesmo grupo econômico para outras nações sem o compromisso de atender ao mercado interno local (offshoring), o que conformou a cadeia global de valor. O eixo estruturador desse impulso reorganizador do capitalismo de dimensão global foi a adoção do receituário neoliberal. Com isso, a desregulamentação das economias (redução de barreiras comerciais, desregulação financeira e cambial, entre outras) permitiu o crescimento mais intenso das trocas externas de natureza intraempresas do que as realizadas entre países, o que fez com que o comércio mundial crescesse cerca de duas vezes mais rápido do que a evolução do produto mundial entre as décadas de 1990 e 2000.
De outro lado, a terceirização interna (subcontracting), associada à contratação de outras firmas especializadas nas atividades que não pertençam à atividade finalística de cada empresa no mesmo espaço nacional. Por conta disso, o funcionamento do mercado de trabalho, assentado até então nos segmentos geral e interno das grandes empresas, foi afetado pela terceirização e pelas modificações no marco de regulação da relação capital e trabalho.
No segmento interno do mercado de trabalho pertencente às grandes empresas, por exemplo, prevalece o estabelecimento das carreiras/funções/posições de progressão (planos de cargos e salários) com a estabilidade contratual e requisitos mais elevados de seleção, bem como a existência da negociação coletiva de trabalho com ação sindical. No mercado geral de trabalho preponderante das micro, pequenas e médias empresas, os postos de trabalho são geralmente de menor qualificação, baixo poder de barganha dos trabalhadores e dependentes de comportamento do salário mínimo diante da ausência de carreiras de progressão funcional e salarial.
Por conta disso, a regulação nacional do trabalho estabelecida até então objetivava homogeneizar as já segmentadas/diferenciadoras condições e relações de trabalho demarcadas pelo funcionamento desigual do mercado de trabalho. Com a terceirização direcionada ao deslocamento de ocupados no segmento interno das grandes empresas para o mercado geral de trabalho, o rebaixamento das condições de trabalho e de remuneração somente não ocorreria sem mudanças na regulação pública do trabalho.
Terceirização nas atividades-meio
Ao contrário de outros países, a terceirização no Brasil se mostra com mais ênfase no rebaixamento do custo do trabalho do que na elevação dos ganhos de produtividade. Isso se deve fundamentalmente às condições não isonômicas de competição intercapitalista geradas desde a década de 1990 pela adoção do receituário neoliberal demarcado por altos custos do dinheiro (taxa de juros), da moeda (taxa de câmbio valorizada) e da tributação numa economia semiestagnada.
Pela terceirização, o Brasil passou a conviver com o esvaziamento dos empregos mais estáveis e com maiores remunerações e benefícios sociais. O declínio do segmento interno dos trabalhadores nas grandes empresas, promovido pela mudança na relação capitalista de trabalho, significou o retorno do funcionamento do mercado de trabalho pré-década de 1950, quando cerca de quatro quintos do emprego formal urbano recebiam remuneração próxima do salário mínimo e predominava a informalidade.
Entre o Plano de Metas (1956) e o Plano Real (1994), por exemplo, a expansão do emprego nas grandes empresas e no setor público constituiu a base pela qual o mercado interno de trabalho avançou no Brasil. Com isso, o crescimento das ocupações especializadas e qualificadas nas empresas urbanas, a classe trabalhadora industrial e os empregos de classe média (white colors) tiveram impulso dinamizador do novo sindicalismo e das negociações coletivas.
Na comparação entre 1960 e 1985, por exemplo, o mercado interno de trabalho cresceu 3,4 vezes, sobretudo com o impulso da industrialização na década de 1970. Em 1985, o mercado interno de trabalho absorvia quase metade de todas as ocupações, enquanto nos Estados Unidos, em 1975, cerca de 80% dos trabalhadores enquadravam-se no segmento interno das unidades empregatícias.
No entanto, com o movimento da abertura comercial e desregulamentação financeira a partir da década de 1990, a terceirização do trabalho ganhou importância, concomitantemente com a estabilidade monetária conivente com a presença de ambiente competitivo desfavorável ao mercado interno de trabalho – isto é, o baixo dinamismo econômico de contida geração de empregos associado à valorização cambial e às altas taxas de juros em termos reais.
Assim, a terceirização terminou por apresentar contratações de trabalhadores com remuneração e condições de trabalho inferiores aos postos de trabalho anteriormente existentes. Em resumo, a concentração de empregos formais na base da pirâmide social brasileira, bem como o avanço das ocupações de maior remuneração na condição de pessoa jurídica (em substituição ao regime salarial), com a redução sensível no mercado interno de trabalho.
A inflexão na trajetória do segmento interno dos trabalhadores nas grandes empresas representou queda de 50,8%, pois passou de 49,4% de todas as ocupações para 24,3% entre 1985 e 2016. A queda mais intensa ocorreu no emprego de supervisão (gerência, supervisão, analistas, mestres, entre outros), cada vez mais contratado como personalidade jurídica (PJ).
Na sequência, registra-se o emprego da mão de obra em atividades de operação, que ficou mais exposto à terceirização, mantido o regime do assalariamento. De certa forma, é o resultado decorrente do deslocamento do segmento interno dos trabalhadores da grande empresa para o mercado geral de trabalho.
Constata-se que, além da estabilização monetária estabelecida pelo Plano Real, com impacto inegável na redefinição da estrutura de preços e competição no interior do setor produtivo, teve importância o Enunciado 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que definiu os setores cabíveis da terceirização da mão de obra e concedeu segurança jurídica às empresas.
Até 1994, a trajetória da ocupação terceirizada da mão de obra no Brasil ocorreu de forma contida. No estado de São Paulo, por exemplo, a terceirização da mão de obra alcançava cerca de 100 mil trabalhadores dispersos por apenas quinhentas empresas.
A partir daí, o uso do trabalho terceirizado ganhou inegável impulso, favorecendo a expansão do ritmo de contratação formal de empregados, concomitantemente ao crescente aparecimento de novas empresas de terceirização de mão de obra. Somente para o estado de São Paulo percebe-se que a quantidade de trabalhadores contratados formais em regime de terceirização passou de 110 mil empregados distribuídos por menos de 1,2 mil empresas, em 1995, para 700 mil trabalhadores agregados em mais de 5,4 mil empresas, em 2010.
Se entre 1985 e 1995 o número de trabalhadores terceirizados cresceu 9% como média anual e a quantidade de empresas aumentou 22,5% ao ano, no período subsequente (1996-2010) a expansão média anual do emprego formal terceirizado foi de 13,1% e de 12,4% ao ano para o crescimento médio anual das empresas. No período como um todo (1985-2010), o universo de trabalhadores terceirizados elevou-se 11,1% em média ao ano, enquanto as empresas aumentaram 16,4% como média anual.
Ao mesmo tempo, pode-se acompanhar como a evolução do valor real do salário médio do trabalhador terceirizado impactou a distribuição do emprego por faixa de remuneração. Em 2010, por exemplo, 76% dos empregos terceirizados no estado de São Paulo recebiam como remuneração mensal o equivalente a até dois salários mínimos mensais.
Em 1985, 81% dos terceirizados percebiam mensalmente quantia que equivalia a dois salários mínimos mensais. Em 2000, contudo, somente 39% dos empregados das empresas de terceirização recebiam até dois salários mínimos mensais.
Apenas para registro, a taxa de rotatividade dos empregados terceirizados foi 76,2% maior que a dos ocupados não terceirizados em 2010. Enquanto a taxa de rotatividade dos empregados formais não terceirizados chega a 36,1%, a rotatividade dos empregados formais terceirizados alcança 63,9%.
Terceirização generalizada
A segmentação dos contratos da mão de obra entre mercado interno e geral de trabalho indica não apenas as diferenças de condições e relações laborais, como também o sentido das ações públicas com vistas ao enfrentamento das desigualdades e das baixas remunerações. Este, pelo menos, se mostrou ser o caminho civilizatório e do desenvolvimento com justiça social.
Desde os anos 1990, com o avanço da terceirização em atividades-meio, o comportamento do mercado de trabalho acusou alterações importantes, como a inflexão do segmento interno de contratação de mão de obra. A queda na participação relativa do segmento interno do mercado de trabalho no conjunto da mão de obra contratada indicou o deslocamento dos postos de trabalho mais bem remunerados e mais protegidos para a situação exposta pela terceirização (maior rotatividade, menor salário e baixa proteção social e trabalhista).
Isso parece inegável. Para tanto, basta simplesmente contrastar o perfil do emprego praticado no mercado interno de trabalho com o funcionamento geral no Brasil, que absorve trabalhadores com mais escolaridade, mantém maior remuneração e estabilidade empregatícia.
Ao tornar a terceirização generalizada, ampliando das atividades-meio para as finalísticas, o deslocamento dos empregos do segmento interno tende a ser ainda mais poderoso. Com isso, o mercado geral de trabalho torna-se superlativo, rebaixando as condições e relações de trabalho que desde a década de 1950 foram sendo desenvolvidas no país pela expansão do segmento interno de contratação de mão de obra.
No limite, o funcionamento do mercado de trabalho no Brasil retrocede aos anos anteriores à década de 1950 – não apenas a possibilidade da regressão ao assalariamento como também a difusão da condição de emprego da pessoa jurídica, numa espécie de uberização do mercado de trabalho.
Ao mesmo tempo, há a desestruturação do emprego público pela possibilidade da generalização da terceirização das ocupações diante do corte de recursos públicos e, em virtude disso, a volta do setor público protagonizado pelo Estado mínimo da República Velha (1889-1930), com postos de trabalho ocupados sem concurso e reocupados a cada mudança de governo.
O resultado é a queda profunda na arrecadação pública, especialmente na Previdência Social, no FGTS e no financiamento do sistema S (Senai, Senac, Sesi e outros) e dos sindicatos (contribuição sindical). A generalização da terceirização deverá seguir o mesmo destino do regime de desoneração fiscal, cuja economia de custos com impostos não levou à redução dos preços e à ampliação do nível de emprego, mas ao crescimento da margem de lucro das empresas.
Considerações gerais
A experiência brasileira da terceirização em atividades-meio adotada desde os anos 1990 impactou o funcionamento do mercado de trabalho, com a contenção de 24,5% na capacidade de emprego no segmento interno de contratação de mão de obra no Brasil. Em contrapartida, ampliou o emprego no mercado geral de trabalho, cujas condições e relações de trabalho são inferiores às anteriormente existentes no segmento interno.
Com a generalização da terceirização para as atividades-fim, o aniquilamento do mercado interno de trabalho poderá ser uma realidade, com o desaparecimento das ocupações de classe média assalariada, salvo na condição de PJ. As consequências são consolidação da situação de economia de baixo salário, elevada instabilidade nas relações de trabalho e ampla polarização social.
Atualmente, o custo do trabalho industrial na China se tornou quase 15% superior ao do Brasil. Antes da terceirização, o custo do trabalho chinês equivalia a apenas um quinto do brasileiro.
*Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017}