Território submerso
Assim como não havia um plano de fuga, não há um plano de mitigação, quiçá, um plano de adaptação climática. A verdade é que poucas pessoas naquele bairro pensavam nessa questão, o clima
Nasci e cresci num bairro da periferia de Porto Alegre. Um bairro que surgiu pequeno, nas margens de um riacho, lá nos anos 50, quando famílias vindas do interior do Rio Grande do Sul migraram da agricultura familiar para trabalhar na construção civil da capital que não parava de crescer.
Na minha infância, na década de 1990, o riacho já havia se tornado o conhecido “valão”, os netos desses agricultores já não sabiam mais plantar, e o futuro era um caminho entre as facções criminosas que já dominavam o território, o sonho de um dia jogar no Grêmio ou no Inter, talvez ser uma Paquita (caso o cabelo fosse loiro) ou ainda ser um CDF e fazer os cursos de informática extra-turno que eram oferecidos pela associação de moradores.
Esse era o panorama do bairro Sarandi, um lugar sem destaque algum, a não ser pela fama crescente de ser um lugar perigoso de se andar à noite. A casa da minha família ficava na rua da associação dos moradores, o point das festas de aniversário e também o lugar onde uma vez por mês se distribuía o ticket do leite para comunidade. Dona Elza, a presidenta da associação, uma semana antes da entrega dos tickets, passava nas casas da rua para distribuir as senhas e reforçava o convite para a reunião comunitária. Muitas vezes estive nessas reuniões, e me lembro do espanto, quando numa delas, Dona Elza, ao lado de um pessoal de fora do bairro, apresentava num quadro negro uma cifra bem significativa e perguntava aos moradores onde e como eles queriam gastar aquele dinheiro no bairro? Lembro da cara de espanto da minha tia (quem me levava a essas reuniões): “eles estão perguntando o que a gente acha?” Foi a primeira vez que sentimos – eu e minha tia – que nossa opinião importava, e isso trouxe uma sensação de grandeza, de dignidade.
Os anos passaram, eu fui a primeira pessoa na minha rua que conseguiu cursar o terceiro grau. O dia da minha formatura foi uma festa coletiva, do jeito que sempre foi, cada um traz alguma coisa, e o sorriso no rosto, pois finalmente alguém vai ter “futuro” por aqui. Uma frase que me doía, embora o sentido fosse lisonjeiro.
Fui embora do bairro, como previa o destino, mas lá ficaram minha família, minhas raízes e minhas memórias. O bairro Sarandi continuou obscuro, esquecido, até o começo de maio deste ano, quando foi submerso, assim como a metade de todo o Estado do Rio Grande do Sul, numa tragédia socioambiental sem precedentes. Minha família se dissipou, cada um correu prum lado, levando suas vidas. As memórias materiais se perderam. Possivelmente as casas se perderam também (pois nesse momento as casas continuam submersas). E o elo territorial que havia entre aquelas pessoas? Será que está rompido?
Na ação emergencial, todos procuraram abrigo e formas de proteger suas famílias. A expectativa é voltar para casa e reconstruir suas vidas. Doações chegaram de muitas formas. Marmitas, águas, roupas, colchões. Foi um Deus nos acuda. Onde eu pego? Com quem eu pego? Milhares de mensagens no Whatsapp no grupo de vizinhos, e entre boas intenções, desinformação coletiva. “E Dona Elza?”, perguntei à minha mãe. “Ih faz anos que não vejo, a associação agora é só pra festa.” Que pena, eu senti. A única líder comunitária que eu conheci naquele lugar exauriu, provavelmente cansou de passar de casa em casa, depois do expediente duro de faxina, e ainda levar esperança pra aquela gente que “poderíamos todos” ter um futuro melhor.
O que vai ser do Sarandi, aquele bairro obscuro da zona norte de Porto Alegre? Ainda não sabemos se haverá novamente um bairro ali. E como as pessoas vão se organizar mediante esse cenário de caos coletivo? Estão todos divididos, o grupo do Whatsapp não para, são milhares de mensagens de positividade e Jesus que vêm pra te salvar. Mas ninguém sabe o link do cadastro para beneficiados. Ninguém sabe ao certo se tem que ligar pra Defesa Civil ou pra Prefeitura, ou se tem que passar no Centro Vida – que parece que não foi alagado ainda. Vai ter muito dinheiro para reconstruir, dizem as boas línguas do grupo. “Mas quando? Pra quem? Onde? Como” O fato é que ninguém sabe por onde começar. Assim como não havia um plano de fuga, não há um plano de mitigação, quiçá, um plano de adaptação climática. A verdade é que poucas pessoas naquele bairro pensavam nessa questão: clima.
Infelizmente a Dona Elza não estava mais lá. E não havia mais uma associação comunitária em que as pessoas eram convidadas a darem suas opiniões. A solidariedade e a ajuda vieram de todos os lados, mas é preciso mais do que isso. Há uma necessidade evidente de organização popular, de informações seguras, de planos comuns, de escuta, de lideranças fortalecidas, que possam mobilizar e engajar seus territórios. Mesmo alagados, esses territórios ainda existem – eles estão nas pessoas que continuam existindo – e mesmo a distância, seguem se comunicando, dando alento umas às outras; esperança que a água vai baixar e que dias melhores virão.
Grace Luzzi é Jornalista e realizadora audiovisual, mestre em Processos Audiovisuais pela ECA-USP, coordenadora de comunicação no Fundo Brasileiro de Educação Ambiental – FunBEA, que trabalha com o financiamento de movimentos socioambientais e educação ambiental em todo o Brasil.