Terrorismo, genocídio e uma escolha muito difícil
Mesmo nesta inusitada situação, de um governo entrando como vítima de agressões criminosas perpetradas, direta ou indiretamente, pelos derrotados, foi o próprio presidente Lula que acabou no centro das maiores críticas do Estado de S. Paulo
Na história recente do país, poucos inícios de governo foram tão perturbadores como o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, em um janeiro que mais pareceu o semestre inteiro. O presente artigo procura analisar como essas asperezas e violências acabaram reproduzidas nas páginas dos editoriais do tradicional jornal O Estado de S. Paulo e em relação a quem o diário endereçou suas mais agudas críticas.
Recordando o contexto, as investidas contra a vitória de Lula começam pela renitência do ex-presidente, candidato à reeleição, em aceitar a derrota, fruto de um movimento há tempo estruturado que insinuava supostas fragilidades nas urnas antes mesmo da eleição. Proclamada a vitória de Lula, os apoiadores de Jair Bolsonaro interditaram rodovias, impediram a circulação de pessoas e produtos, e, em seguida, se instalaram diante de quartéis, em movimento que postulava uma intervenção militar para sufocar a democracia.
Se tudo isso ainda fosse pouco, depredaram as cercanias da Polícia Federal em Brasília no dia da diplomação e chegaram a instalar uma bomba perto do aeroporto da cidade, para explodir – e matar – um número indeterminado de pessoas na véspera do Natal. O ex-presidente, ele mesmo, jamais dissuadiu seus apoiadores de questionar o resultado das urnas e viajou, às vésperas da posse, e à custa do erário, para estar no exterior e não tomar parte na transmissão do governo.
Portanto, quando janeiro chegou, e com ele a posse de Lula, abrilhantada por extenso público, e uma comovente estratégia de transmissão de faixa, tudo parecia uma grande descompressão. Entretanto, esta não durou mais do que uma semana. Em 8 de janeiro, um movimento com tintas terroristas e com pretensões golpistas, depredou, agrediu e destruiu o centro do poder em Brasília, na esperança de provocar ainda mais caos e produzir intervenções militares.
O que a pesquisa a seguir demonstra é que, mesmo nesta inusitada situação, de um governo entrando como vítima de agressões criminosas perpetradas, direta ou indiretamente, pelos derrotados, foi o próprio presidente Lula que acabou no centro das maiores críticas do Estado de S. Paulo, que buscou, de certa forma, reproduzir, a par de todas as gravíssimas demonstrações de desapreço à democracia, a tese de “Uma Escolha Muito Difícil”, álibi da tranquila convivência com a extrema-direita desde 2018.
Com dois editoriais por dia, foram 62 textos no período. Em pelo menos 21 deles, críticas contundentes a Lula, seja pelos primeiros passos pouco esperançosos, seja pelo passado fortemente reprovável. Mais até do que os dezessete no qual Bolsonaro e bolsonaristas são criticados, com um reconhecimento excessivamente tardio do extremismo exibido desde a campanha anterior.
Elogios, para o governo, praticamente em causa própria, a quem tivesse condições de levar adiante os estandartes do jornal, como o incensar do ministro e vice Geraldo Alckmin (um político com visão moderna e razão para nutrir otimismo, em 07/01), a adulação explícita à ministra Simone Tebet (o toque de lucidez no governo, a compreensão dos desafios e a trajetória surpreendente, a 09/01), e, moderadamente, a Jean Paul Prates, pela experiência em relação ao mercado de petróleo (11/01). Elogiar os parceiros, no caso, é quase sempre uma forma oblíqua de criticar outros integrantes do governo, como na referência indicada a Tebet: “a voz racional a suplantar o pensamento mágico” dos setores petistas da economia.
Mesmo quando o jornal atribui a Lula atitudes positivas (como as ponderações sobre o episódio de 8 de janeiro terem sido razoáveis, 22/01), isso apenas aprofunda a série de recomendações que trazem outras críticas embutidas: “doravante deve ter outro comportamento”, “não basta ter esperteza política”, deve “abdicar de interferências populistas”, e “que o velho ranço ideológico fique no passado”.
Os títulos dos editoriais do período dão uma ideia do matiz das críticas: “O velho Lula está de volta (02/01); “Haddad, o ministro decorativo” (04/01); “O monopólio lulopetista da verdade” (05/01); “Delírios no primeiro escalão” (06/01); “Marcos republicanos sob ameaça” (06/01); “Bobagem de Lula sobre o BC” (20/01); “Carinho com ditadores” (25/01); “Falta grandeza a Lula” (27/01), entre outros.
Curiosamente, o presidente quando em ambiente de considerações razoáveis, ou críticas moderadas, é chamado de Luiz Inácio Lula da Silva, ou pela forma usual norte-americana, Lula da Silva. Quando as críticas aumentam o tom, já se sabe que pelo menos um lulopetista vai estar presente no texto.
As críticas não são lá muito diversificadas. Quando o Estadão abre o ano, pregando um “tempo de esperança e responsabilidade”, afirma que Lula só será bem recebido se “abandonar velhos dogmas que atrasaram o desenvolvimento do país” (01/01). O discurso de posse esteve marcado pela reafirmação “de sua agenda retrógrada”, e mostra que o presidente segue tendo “a mesma visão ultrapassada de Estado” (02/01). Quando aponta o esvaziamento do ministro da Fazenda (com três dias de gestão), o jornal vaticina que as demandas eleitoreiras vão prevalecer sobre a racionalidade econômica e que, enfim, na verdade, “não se esperava algo muito diferente” (04/01).
Ao criticar proposta do ministro-chefe da AGU, aponta que o governo mal esconde sua vocação autoritária e levou apenas um par de dias “para que o cacoete autoritário do governo lulopetista se manifestasse” (05/01). Na crítica a movimentos que interferiram na Agência de Águas, a exposição da “ojeriza à iniciativa privada” que marcaria o partido como um todo (06/01). Com a proposta de rever acordos de leniência, a lembrança de que “o PT sempre criticou a punição das empreiteiras envolvidas em corrupção nos governos lulopetistas”, portanto, não surpreendeu que o tema tenha voltado à pauta (17/01). Ao criticar o Banco Central, Lula estaria fiel ao “primitivismo petista”, já que “para o lulopetismo clássico, o governo deve mandar na autoridade monetária” (20/01), sem esquecer a velha crítica, nada fundamentada em informações de especialistas, de que o “PT torrou dinheiro em pagamentos sem relevância ao interesse nacional”, nos investimentos do BNDES no exterior. Evoca, como comprovação do atávico carinho aos ditadores, uma frase de Lula de vinte anos atrás, e em outro contexto, de que “tem excesso de democracia na Venezuela” (25/01). Por fim, na repetição dos chavões de ordem, com a ideia de que “Durante o mandarinato lulopetista, Lula alimentou a cizânia nacional, o ‘nós’ contra ‘eles’ (26/01).”
Ainda em constância menor do que Lula, Bolsonaro é também fortemente criticado nos editoriais, sobretudo a partir dos atos de 8 de janeiro. No dia 09/01, o jornal conclama para que “um a um os golpistas que insurgiram contra a ordem constitucional, assim como os que lhe dão apoio político, material e financeiro” sejam punidos de forma exemplar, “a começar pelo ex-presidente, o maior responsável pela intentona”. Bolsonaro foi acusado de ter abusado de “meias palavras e insinuações para açular seus camisas pardas” (09/01). Em 10/01, o jornal volta a dizer que, na cadeia de responsabilidades, “o principal é Bolsonaro” e que o movimento escancarou a contradição bolsonarista (Em nome da liberdade, a barbárie, 11/01). Aduz, enfim que a maioria dos brasileiros não compactua com o golpismo insuflado pelo ex-presidente (12/01), e conclui que é preciso investigá-lo (15/01).
As críticas ao bolsonarismo abrem a oportunidade de uma correspondente elegia à direita democrática (A oposição que o Brasil precisa, 18/01), da qual estaria se afastando o governador Romeu Zema (PL-MG), pela insinuação de vitimismo atribuído ao governo no episódio (20/01). A ironia é que o jornal, justamente no dia 8 de janeiro, publica editorial em homenagem à “direita civilizada”, louvando como “boa notícia”, o fato de que o extremismo bolsonarista estava perdendo espaço na direita – um wishfull thinking que não resistiu por 24 horas. O recente reagrupamento na candidatura de Rogério Marinho, à presidência do Senado, mostraria que isso não viria a acontecer nem mesmo depois da péssima repercussão social daquela tarde de terror.
Bolsonaro foi criticado ainda no editorial “O país não sabe lidar com seus indígenas” (24/01), porque “sob seu governo as condições de vida deles se deterioraram substancialmente” e uma vez mais em 30/01, com “A dimensão dos crimes contra os yanomami” (“Surgem indícios de que a catástrofe não foi causada apenas por descaso ou incompetência do governo, mas por omissões criminosas, fraudes, obstrução e corrupção”). Contudo, a despeito do contumaz linguajar agressivo e contundente dos editoriais, assim como não mencionou “terrorismo” para falar sobre o 8 de Janeiro, tampouco usou “genocídio” para falar sobre a tragédia que se instaurou sobre o povo yanomami. É de se lembrar que ambas as expressões foram mencionadas em decisões judiciais do próprio Supremo Tribunal Federal.
A resposta aos atos de 8 de janeiro ensejaram um dos raros cumprimentos ao presidente, quando da demissão do comandante do Exército (“O presidente exerce sua autoridade”, 22/01). Mas logo em seguida o jornal pontuou que as “forças democráticas precisam se desvencilhar de quaisquer ânimos retaliatórios”, que o presidente tem que saber “ter tolerância, pois uma retaliação generalizada gera radicalização” (em 25/01, emulando palestra do ex-ministro Nelson Jobim, na Fundação FHC) e que é dever de todos preservar o bom histórico das Forças Armadas, que “tem mostrado firme compromisso com a Constituição Federal e com boas políticas públicas” (26/01). Sem contar a inusitada menção a que o governo, vítima de atos de terror antes e depois da posse, estaria remoendo ressentimentos, o que não seria atitude de um estadista (22/01).
A Lula, a quem notadamente “falta grandeza”, porque “enxovalha as instituições perante audiências estrangeiras”, cabe, a bem da verdade, basear-se “em uma perspectiva muito mais ampla do que a habitualmente demonstrada” (22/01) e entender que a gravidade do momento “exige ampliar em seu governo a presença de forças políticas genuinamente comprometidas com o regime democrático”, já que o começo da gestão “não produziu boas expectativas” (10/01).
A linha dos editoriais reflete uma continuação de 2018 – “na retórica ideológica Lula e Bolsonaro se dizem antagonistas entre si”, mas, evidentemente, são muito mais convergentes (23/01). O jornal supostamente ignora ou despreza o fato de que o atiçar frenético do antipetismo foi determinante para o sucesso eleitoral da antipolítica, no mesmo sentido que a insistência nas falsas simetrias normalizaram a extrema-direita, contributos indispensáveis à chegada da intolerância ao poder. Não à toa, quatro anos e um longo mês depois, aos olhos do Estadão, o autoritarismo continua sendo mais atribuído a Lula que a Bolsonaro.
Lula não tem outra opção, a não ser abrir mão de sua trajetória, abdicar do ranço ideológico, fugir do primitivismo petista e agrupar uma equipe ainda mais ampla em seu governo, enfim, transformar-se na “direita civilizada”, que o jornal tanto defende e que, indiretamente, ajudou a sepultar com a conivência com os extremistas supostamente comprometidos com o neoliberalismo. Mostra disso são os seguidos elogios ao marco do saneamento e as respectivas concessões à iniciativa privada, de longe a questão econômica mais lembrada pelos editoriais, indicando que, no essencial mesmo, a saudade do governo que se foi ainda bate forte naquelas rotativas.
Marcelo Semer é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mestre em Direito Penal e doutor em Criminologia pela USP e autor, entre outros livros, de Os paradoxos da Justiça: Judiciário e política no Brasil (Contracorrente, 2022).