‘The White Lotus’ e a masculinidade tóxica como tragédia contemporânea
A masculinidade, mesmo em suas versões mais brandas, parece aprisionada em uma lógica estrutural que reproduz a desigualdade e o sofrimento
A série The White Lotus, criação de Mike White, tem sido uma das obras mais mordazes da televisão contemporânea na tarefa de expor os mecanismos de poder, o desejo e a dominação que estrutura a vida social – especialmente entre os mais ricos. Embora desde a primeira temporada já se insinuassem tensões de gênero, é na segunda que a crítica à masculinidade tóxica assume maior nitidez, com a história da família Grasso. Três gerações de homens viajam juntos à Sicília em busca de uma suposta reconexão com suas raízes italianas. No entanto, o que encontram é um espelho distorcido de si mesmos: todos, do avô ao neto, demonstram uma relação profundamente problemática com as mulheres, tratadas ora como fantasias sexuais, ora como ameaças à sua autonomia masculina.
As aventuras com prostitutas, tratadas com uma mistura de fetichismo, culpa e desprezo, revelam uma masculinidade estruturada pelo consumo e pelo controle do corpo feminino. A tentativa de reviver uma virilidade supostamente autêntica se desdobra em fracassos afetivos e vexames morais. Mesmo o neto, Albie, que se julga mais progressista e sensível, acaba repetindo o padrão paternalista e manipulador que tanto critica em seu pai e avô. A lição é clara: a masculinidade, mesmo em suas versões mais brandas, parece aprisionada em uma lógica estrutural que reproduz a desigualdade e o sofrimento.
Essa crítica, que já ganhava densidade na segunda temporada, se aprofunda e se radicaliza na terceira. Agora, os homens não apenas falham em lidar com as mulheres; eles falham entre si, consigo mesmos e com o mundo. O império da masculinidade viril, mesmo em ruínas, ainda dita as regras de um jogo brutal. Mas o que antes era apenas sugerido em subtextos ou nos cantos sombreados do luxo e da decadência, agora assume o centro da narrativa. A série, ambientada mais uma vez num resort de alto padrão, escancara a tragédia contemporânea que é ser homem em um mundo onde performar o macho ideal continua sendo uma exigência inescapável – mesmo que isso custe vidas, vínculos e qualquer possibilidade de afeto genuíno.

Rick Hatcett é o personagem que talvez melhor simbolize essa lógica mortífera. Viciado em maconha e atormentado por um passado mal resolvido, ele deseja encontrar redenção na violência. Rick acredita que apenas um ato brutal será capaz de reescrever sua história. Ao assassinar um homem sem saber que era seu pai, o personagem resgata, sem querer, a mais famosa cena da tragédia grega: Édipo matando Laio na estrada. O paralelo é mais do que simbólico, é estrutural. No mito, o herói se vê enredado numa profecia que o leva ao parricídio e ao incesto. Na série, Rick não é vítima do destino divino, mas de uma ideologia que naturaliza o poder masculino como algo a ser reafirmado pela dominação e pela eliminação do outro, ainda que esse outro seja seu próprio pai. Ele não apenas mata o pai, mas é possuído por esse gesto: o personagem repete, sem saber, a lógica da virilidade como aniquilação.
Esse ciclo de violência que atravessa a masculinidade não é um fenômeno individual, mas estrutural. Como afirma Pierre Bourdieu, em A dominação masculina, “a virilidade é, antes de tudo, uma relação com os outros homens, uma forma de competição, um desafio permanente no qual o valor do homem está em jogo” (1998, p. 75). É isso que vemos também em Timothy Ratliff, que diante da iminente falência e prisão, considera assassinar a própria família. Sua masculinidade está ancorada em dois pilares: controle financeiro e controle simbólico. Quando o primeiro vacila, o segundo apresenta a violência da morte como saída. Não se trata de psicopatia, mas de um padrão que associa o fracasso à castração simbólica e, portanto, à morte.
O filho de Timothy, Saxon Ratliff, representa outro tipo de abalo: o da identidade sexual construída sob o signo da heteronormatividade. Após vivenciar uma cena incestuosa e homossexual com o irmão mais novo, Saxon se vê em choque, incapaz de integrar o acontecimento a uma identidade heterossexual fossilizada. A masculinidade que o formou não oferece linguagem nem espaço para o desejo ambíguo, tampouco para a fragilidade emocional. “Os homens são educados para calar e esconder seus sentimentos mais íntimos”, escreve Ivan Jablonka em Homens Justos. E acrescenta: “O preço dessa repressão é a solidão emocional e, muitas vezes, a violência.” Saxon não agride, mas adoece; não ataca, mas silencia. E isso justamente porque foi ensinado a se proteger do mundo evitando qualquer afeto que o tornasse vulnerável.
Gaitok, o porteiro, é talvez o mais trágico dos personagens. Incapaz de se ver como alguém violento ou armado, vive o dilema de não conseguir encarnar o ideal do macho viril. Seu drama está em perceber que só é desejado por Mook – a colega de trabalho por quem se apaixona – quando simula atos de coragem e brutalidade. A mentira do herói que enfrenta o perigo armado se torna sua única chance de conquistar o amor de Mook. A masculinidade, nesse caso, é uma farsa encenada para sobreviver à indiferença do mundo. Mas que, como toda fantasia, exige um alto custo psíquico. Judith Butler no clássico Problemas de Gênero, oferece uma chave importante para compreender essa dinâmica com o conceito de performatividade de gênero: “o gênero é uma identidade tenuemente construída no tempo, institucionalizada por meio de estilos corporalizados repetidos”. Gaitok performa aquilo que se espera dele como homem, mesmo que isso viole sua experiência subjetiva mais autêntica, afinal, como Buda, ele diz zelar pela não violência. Assim é que sua virilidade não é apenas um papel, mas frágil como o papel. É uma máscara, uma repetição de signos que garantem a ele o acesso ao próprio desejo.
Também bell hooks se torna indispensável para pensar esse aspecto. Em sua obra, O feminismo é para todo mundo políticas arrebatadoras, a autora denuncia como o patriarcado “não apenas submete as mulheres, mas também desumaniza os homens ao forçá-los a negar seu lado afetivo, sua vulnerabilidade e sua capacidade de cuidado”. A masculinidade tóxica, portanto, não é apenas opressora: ela é uma prisão. Homens como Rick, Timothy, Saxon e Gaitok não estão exatamente livres; eles estão encenando a masculinidade como um script que exige violência, controle e silenciamento afetivo. The White Lotus nos mostra que, quando esse script é seguido à risca, o que se revela é uma masculinidade exaurida, solitária e em colapso
Greg Hunt sintetiza a dimensão mais cínica dessa masculinidade em crise: a do homem que acredita que tudo, inclusive o silêncio, pode ser comprado. Após assassinar sua companheira, Greg negocia o silêncio de Belinda com uma frieza corporativa. Ele não é um monstro descontrolado, mas um gestor da violência, alguém que entende o crime como custo e a impunidade como investimento. Sua masculinidade não precisa mais provar-se pela força física: ela opera nos bastidores, na lógica do capital, nos acordos silenciosos que fazem o mundo continuar girando mesmo depois da morte.
The White Lotus não é apenas uma crítica à elite decadente. É uma lente sofisticada sobre como a masculinidade tóxica se reinventa e se perpetua, mesmo sob as ruínas de seus próprios excessos. Os homens da série não são caricaturas, mas sujeitos profundamente atravessados por uma cultura que insiste em impor à masculinidade o imperativo da violência, da dominação e do silêncio afetivo.
No final, esses homens, mesmo quando tentam escapar, acabam recriando os mesmos gestos trágicos de seus antecessores. Como Édipo, caminham para a destruição achando que estão fugindo do destino. Como Greg, acreditam que o dinheiro os absolverá. Como Gaitok, mentem para amar. E, como Timothy, são capazes de destruir tudo por medo de perder o pouco que lhes resta. O que The White Lotus nos pergunta — talvez sem responder — é se existe uma forma de ser homem que não passe pelo abismo.
Paulo Ferrareze Filho é psicanalista, professor e pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Psicologia da USP.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 8. ed. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1998.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2018.
JABLONKA, Ivan. Homens justos: do patriarcado às novas masculinidades. Trad. Julia Rosa Simões. São Paulo: Todavia, 2021.