Tirano de fachada: Bolsonaro e a paralaxe zizekiana
Como pode um ditador ser o líder de uma democracia liberal? É evidente que as tecnologias de dominação do século XXI dispensam a necessidade de uma ditadura. Contudo, a aparência ditatorial vem se mostrando muito útil para fortalecer a democracia burguesa. Ela cria o esporro, um absurdo atrativo, enquanto a Câmara dos Deputados aprova os projetos que alavancam a economia liberal que, como um monstro munido de diversos tentáculos, devora o setor público.
Muitos criticam a veia ditatorial do presidente, principalmente suas atitudes que desprezam a opinião pública, como nomear seu filho embaixador dos EUA. Tentando justificar tal atitude, Bolsonaro usou palavras dignas de um tirano que dispensa o processo eleitoral: “Não vai votar mais em mim? Paciência.”
Contudo, em seu governo, medidas ultraliberais, que agradam grandes setores empresariais, estão sendo aprovadas. Os direitos conquistados décadas atrás estão sendo subtraídos, projetos para a venda das estatais sendo traçados, as universidades federais vendidas para o setor privado, facilita-se, por seu turno, a autorização para o garimpo, libera-se novas marcas de agrotóxicos, perdoa-se dívidas de grandes empresas, extingue-se reservas ambientais em prol da especulação imobiliária, além de abrir as pernas para o imperialismo norte-americano. A mídia reporta alguns destes elementos, mas não os escandaliza, como faz com as declarações polêmicas do presidente.
Como pode um ditador ser o líder de uma democracia liberal? É evidente que as tecnologias de dominação do século XXI dispensam a necessidade de uma ditadura. Contudo, a aparência ditatorial vem se mostrando muito útil para fortalecer a democracia burguesa. Ela cria o esporro, um absurdo atrativo, enquanto a Câmara dos Deputados aprova os projetos que alavancam a economia liberal que, como um monstro munido de diversos tentáculos, devora o setor público.
Para o filósofo Slavoj Zizek, seguindo as sugestões de Wendy Brown, o arcabouço igualitário liberal-democrático possui uma retórica universalista que “não cumpre o que promete, mascara a exclusão e a exploração contínuas”. A democracia é ateórica, vazia, vive apenas da ideia de que nenhuma forma de organização social é melhor que ela. Ela é um paradoxo: ao mesmo tempo que não cumpre o que promete, se apresenta como o melhor meio para se cumprir o que promete. Assim, Bolsonaro se apresenta como um idiota fascista para que continuemos a defender a democracia liberal (em vez de uma democracia direta ou outros modelos) que, por trás da farsa apresentada pelo presidente, funciona normalmente.
Esse é um fenômeno que só pode ser compreendido “a partir de uma espécie de visão em paralaxe, de um ponto de vista sempre mutável entre dois pontos entre os quais não há síntese nem mediação possível”. Embora não haja (em teoria) nenhuma relação entre os dois níveis (politicamente, um ditador liberal é algo ilógico), eles estão intimamente ligados.
São dois lados do mesmo momento histórico (a extrema direita e o liberalismo), que não podem se encontrar diretamente. Deste modo, Bolsonaro usa de suas polêmicas pessoais com seus filhos, sobre sua religião, sua ideologia anti esquerdista etc., para impedir o nosso acesso ao real propriamente dito, a política econômica de terror que começou no governo Temer.
Michel Temer não tinha essa capacidade paraláctica, e o próprio PT, desgastado pela erosão do tempo, também a perdeu. Bolsonaro, contudo, consegue ser o obstáculo entre nós e o real, sendo contraditoriamente, a essência desse real, pois sem ele esse real não seria possível. Ou seja, Bolsonaro seria, ao mesmo tempo, a coisa em si e o que nos impede de ter acesso a essa mesma coisa. Ele é a perfeição da máscara política.
Bolsonaro age de forma a nos poupar do real, por este ter efeitos traumáticos (um modelo econômico que amplia as desigualdades sociais). O acesso ao real (que aqui seria o projeto econômico do governo) prejudicaria todo o plano da burguesia que quer pôr o país à venda. Desta forma, o presidente atrai os holofotes para si, despertando amor e ódio no público, para que o real permaneça inacessível, impossível.
A própria esquerda cai nessa armadilha devido ao “desaparecimento da economia como locus fundamental da luta”, como destaca Zizek. Em seguida, o filósofo esloveno explica sua posição: “Para evitar mal-entendidos, não me oponho ao multiculturalismo como tal; aquilo a que me oponho é a ideia de que ele constitui a luta fundamental de hoje.”
A esquerda de outrora sabia falar sobre economia, aliás, suas ideias eram extremamente populares. Mas, ao abandonar essa matriz geradora dos conflitos sociais, a visão da direita sobre a economia vem se popularizando cada vez mais, embora chegue até as massas por meio de todo um espetáculo populista armado pelas polêmicas dos ideólogos e políticos reacionários.
Esse ponto é chave. Zizek mostra que “através do Simbólico é possível intervir no Real”. E Bolsonaro sabe muito bem trabalhar com os símbolos, usa a religião, demoniza a esquerda, condena o “politicamente correto”, etc. para dar sentido ao seu modelo econômico que pretende empobrecer ainda mais a classe trabalhadora.
Portanto, creio que não devemos criticar Bolsonaro diretamente, mas o que ele esconde. Precisamos arriscar o impossível. A esquerda precisa recuperar o simbólico capaz de permitir o nosso acesso ao real, contar sua versão sobre ele, isto é, sobre a matriz econômica fundadora das lutas de classes. Talvez essa seja uma questão importante para repensar a esquerda brasileira.
ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Rio de Janeiro: Boitempo, 2011.
ZIZEK, Slavoj. Visão em paralaxe. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
ZIZEK, Slavoj. Arriscar o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 2006.