Totalitarismo neoliberal
Pensar que a reforma da Previdência contou com marchas de rua com milhares de pessoas em seu apoio chega a ser bizarro. Como explicar esse tipo de conduta?
Muito já foi escrito e pesquisado sobre a fase neoliberal do capitalismo atual, que se caracteriza como um conjunto de práticas econômicas, sociais e políticas, as quais visam emular em todos os aspectos da sociedade uma dinâmica concorrencial, como se os indivíduos e o Estado fossem empresas, competindo uns com os outros pelo melhor desempenho. Esse “cada um por si” neoliberal, na visão de seus defensores, resultaria em uma sociedade empreendedora, onde os sujeitos procurariam inovar, sem as amarras de um Estado provedor; e, como consequência, a sociedade como um todo se tornaria mais próspera.
Essa lógica pautou a pressão pelas “reformas liberais” desde o golpe contra a presidenta Dilma e levou muitos economistas e “especialistas” do mercado a apoiar a eleição de um fascista como Bolsonaro, tendo a figura de Paulo Guedes como fiador do projeto neoliberal. Verdade seja dita, Michel Temer já havia colocado em marcha esse processo, com sua “ponte para o futuro”, a reforma trabalhista e o teto de gastos. Tudo em nome da austeridade fiscal, da diminuição dos gastos públicos e do “custo Brasil”.
Ora, pensar que a reforma da Previdência, por exemplo – que na prática acabou com os direitos de aposentadoria –, contou com marchas de rua com milhares de pessoas em seu apoio chega a ser bizarro, especialmente em um país desigual e pobre como o Brasil, onde as pensões são um dos poucos elementos que tinham uma natureza distributiva. Como explicar esse tipo de conduta da sociedade?
Muitos elementos devem ser levados em consideração. O caráter reacionário e autoritário da nossa burguesia e da classe média estão, com certeza, entre eles. É uma herança importante da própria natureza do desenvolvimento do capitalismo dependente escravocrata brasileiro. Ainda assim, a proposta aqui é discutir a função do neoliberalismo nessa conjuntura.
Perry Anderson, já nos anos 1980, havia chamado a atenção para o fato de que o neoliberalismo não alcançara seus objetivos nos países capitalistas centrais, os quais não apresentaram a dinamização econômica esperada pelos neoliberais, pois “a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva” (1995, p.7). No entanto, o neoliberalismo conseguiu cumprir uma função ainda mais fundamental para a instauração da nova fase do capitalismo, impondo ao Estado e à sociedade uma nova racionalidade, uma nova “razão do mundo”, como colocam Dardot e Laval (2017), em que o pressuposto a ser seguido é o da concorrência, tanto entre Estados como entre indivíduos.
O neoliberalismo deve ser entendido enquanto uma alternativa ao Estado de bem–estar que foi instalado em diversos países depois da Segunda Guerra. Assim, após as crises capitalistas dos anos de 1970, nomes como Hayek, Friedman e Mises passaram a atacar radicalmente os gastos públicos como responsáveis pela diminuição das taxas de lucro e pela contração econômica. Para eles, o Estado de proteção social oferecido pelo Estado de bem-estar, com serviços públicos e sociais, fortalecia sindicatos e movimentos sociais que inviabilizavam o livre mercado.
Além disso, para os neoliberais, a existência de garantias sociais, como seguro-desemprego e previdência, criava um problema de ordem moral, uma “cultura da pobreza” na sociedade, uma vez que, segundo eles, tais medidas acabavam com a função do desemprego, pois os trabalhadores não teriam medo da demissão, facilitando o engajamento em sindicatos e partidos políticos.
A função que o desemprego cumpre em uma sociedade capitalista, como elemento de disciplina e de manutenção da correlação de forças e de produção, já foi analisada por outros autores, entre eles Kalecki (1977), que demonstrou como a burguesia se nega a aceitar políticas de pleno emprego – mesmo que comprometa seus lucros – para conservar uma taxa “natural de desemprego”, o que manteria o medo da demissão e a ordem nas fábricas. Chamayou (2020) também retoma esse ponto na construção do pensamento neoliberal, acenando para o fato de que “enquanto existirem dispositivos de proteção social, a ameaça do desemprego não pode desempenhar plenamente seu papel, uma vez que a existência de seguro-desemprego reduz sua penalidade”.
Além dos sindicatos, outros grupos de pressão também entram na alça de mira dos neoliberais, em particular as minorias que conquistaram espaço durante a década de 1960, pois, de acordo com o pensamento neoliberal, as democracias ocidentais permitiam que esses grupos defendessem os direitos de negros, mulheres, imigrantes, homossexuais etc. Isso porque os neoliberais associam o aumento dos direitos das minorias à piora das condições gerais decorrentes das próprias contradições do capitalismo, ou seja, o Estado de bem-estar, democrático, passa a ser o responsável pela crise, e não as relações de exploração tipicamente capitalistas. Nesse cenário, também se cria uma condição teórica para justificar a junção entre movimentos de extrema-direita (que são obviamente machistas, xenófobos, nacionalistas e racistas) com o neoliberalismo, uma vez que a liberdade neoliberal não é a liberdade política e social, mas sim a do mercado.
Wendy Brown (2019) coloca de maneira muito pertinente a incompatibilidade do neoliberalismo com a democracia, pois regimes democráticos pressupõem a existência de um espaço social, onde as tensões de classe possam ser resolvidas de maneira política, ainda que não se alterem as relações de produção, garantindo a hegemonia burguesa. No caso neoliberal, esse espaço social não pode existir, o que causa o tensionamento mesmo com a democracia liberal. Isso também explica a proximidade de neoliberais com regimes autoritários e ditaduras, como foi o caso chileno. Sobre isso, o neoliberal Hayek afirma, em entrevista, a respeito da ditadura de Pinochet:
“Em 1981, quando lhe perguntaram sobre sua posição diante dos regimes totalitários na América do Sul, Hayek retruca que isso não existe. Não confundamos totalitarismo e autoritarismo. E esclarece que o único governo ‘totalitário’ que existira até recentemente na América Latina havia sido o Chile de Allende. Sem dúvida, um caso extremo de ‘democracia totalitária’. Totalitária? Mas em que sentido? É ‘totalitário’, Hayek responde, um sistema que, diferentemente do liberalismo e do individualismo, ‘pretende organizar o conjunto da sociedade e de todos os seus recursos’, tendo em mira um ‘fim unitário’” (CHAMAYOU, 2020, p.331)
Como se percebe, para Hayek o governo democrático de Allende era inaceitável e considerado uma “democracia totalitária”, enquanto a ditadura sanguinária de Pinochet era entendida como um regime liberal, já que defendia a liberdade dos mercados. Essa é a moralidade neoliberal. Ele ainda acusa a democracia e a via chilena ao socialismo de pretender “organizar o conjunto da sociedade e de seus recursos”, como se o neoliberalismo não fizesse exatamente o mesmo, mas com uma diferença: enquanto o governo democrático de Allende queria organizar a sociedade por meio da ação coletiva, de forma democrática, procurando romper os laços de subordinação e dependência que marcam o Chile, o neoliberalismo tenta reproduzir e aprofundar essas mesmas características, mesmo que para isso tenha que apoiar golpes de Estado, tortura e assassinato.
Sobre a teoria liberal do totalitarismo: como sabemos, sua principal expoente, Hannah Arendt,[1] selecionou características políticas específicas do nazismo e do comunismo soviético, em particular a fase stalinista, para enquadrá-los como regimes totalitários. Assim, ao mesmo tempo em que condenou o comunismo, eternizou a liberal democracia como única alternativa às sociedades modernas. Além das muitas críticas a essa leitura,[2] cabe aqui uma indagação: se o neoliberalismo se propõe a ser um governo da vida privada, muito mais invasivo que o Estado, não seria o neoliberalismo uma forma de totalitarismo? Tal postura teórica inverteria a teoria liberal do totalitarismo, que foi utilizada de maneira politicista para condenar as experiências comunistas, e passaria a ser uma categoria capaz de analisar criticamente não apenas os autoritarismos, mas também as formas econômicas e ideológicas pelas quais o capitalismo se efetiva e exercita sua dominação e constrói hegemonias.[3]
As aproximações entre o neoliberalismo e as experiências fascistas, por exemplo, podem ser verificadas com a leitura de autores como o pensador alemão Carl Schmitt. Esses trabalhos, posteriormente, foram reapropriados pelos paladinos neoliberais, particularmente Hayek, os quais utilizaram da análise de Schmitt sobre a conjuntura pré-nazista nos anos de 1920 e sua crítica à democracia. Para o pensador alemão, o conceito chave era o de “Estado total”, fazendo referência à possibilidade de a democracia parlamentar construir práticas tidas como totalitárias. Essa tese, então, é apropriada por Hayek por meio da equação: “Estado neutro”, liberal do século XIX, transformando-se em “Estado total”, ou seja, as contradições da expansão democrática estariam acabando com a neutralidade do Estado e prejudicando seu pleno funcionamento.
Dessa maneira, os neoliberais acreditam que para acabar com o “Estado total”, típico de democracias excessivas, como a do Estado de bem-estar social, seria necessário um Estado ainda mais forte, mas que atuasse no sentido de destruir as relações inerentes à democracia por meio de forte repressão e atividades propagandistas, mobilizando o que existe de mais moderno para controlar corpos e mentes. A liberdade, portanto, ficaria restrita às atividades do mercado.
Ora, fica claro nesse ponto, o que significa a afirmação de Mises de que o “fascismo e todos os impulsos similares salvaram a civilização europeia”. Para os neoliberais, o fascismo foi a solução para desemaranhar as contradições e as pressões sociais resultantes da democracia. Nesse sentido, segundo Hayek, foi a República de Weimar a responsável pelo nazismo na Alemanha, uma vez que a democracia do bem-estar “alimenta um socialismo que conduz diretamente ao fascismo”. Portanto, exime-se os próprios nazistas da responsabilidade e culpabiliza aqueles que foram as vítimas. Como aponta Chamayou, é um “continuísmo grosseiro que só pode ser enunciado à custa da negação das relações políticas e sociais” (2020, p.346).
Assim, o liberalismo autoritário defendido pelos neoliberais, além de atacar a democracia, também é composto de um profundo anticomunismo, o que justifica, em casos particulares, a instalação de ditaduras, contanto que se adote a liberdade para o capital. Desse modo, ao apoiar ditaduras, abre-se uma outra contradição, dessa vez no que diz respeito ao conceito de liberdade, ou seja, como ser liberal e defender um regime autoritário que nega os direitos civis, prende, censura, tortura e mata?
Para os neoliberais, essa engenharia é possível pois a liberdade se relacionaria exclusivamente à liberdade de mercado, que se sobrepõe à liberdade individual. Portanto, é possível, para os neoliberais, existir regimes autoritários muito mais liberais do que democracias, pois estas estariam sujeitas a pressões de grupos específicos que inviabilizariam o livre mercado.
A disputa, então, se coloca como um campo de guerra, de acordo com os neoliberais, onde é necessário buscar alternativas para derrotar seus inimigos (trabalhadores e movimentos sociais) a todo custo. Diante disso, para que o projeto neoliberal fosse colocado em prática, se elaborou um conjunto de ações, teóricas e práticas. Tal projeto passa pelo financiamento de intelectuais e formadores de opinião, que atuariam nas universidades e em meios de comunicação; posteriormente, o Estado estaria cada vez mais dependente da capital privado e, finalmente, adotaria políticas públicas em consonância com o capital e o mercado.
Nesse sentido, quando ficou claro para os teóricos neoliberais a incompatibilidade do neoliberalismo e da democracia, pois, ao defender que a sociedade se organize como uma empresa, os indivíduos passam a ser subordinados a autoridades privadas e não mais ao poder público ou ao bem comum. “Em suma, a empresa começa a parecer um imenso e proliferativo governo da vida privada, muito mais hábil e invasivo que o poder de Estado” (CHAMAYOU, 2020).
Assim, como colocam Dardot e Laval, a construção de uma “razão de mundo” neoliberal passava, nas palavras de Chamayou (2020), pela adoção de uma micropolítica. Quer dizer, como as tentativas de colocar em prática a agenda neoliberal de uma vez fracassaram em função da pressão de sindicatos e movimentos sociais, a solução seria a adoção da micropolítica, a qual tornaria possível a construção de situações específicas que levassem o próprio indivíduo a escolher uma opção que, no futuro, se mostrasse prejudicial aos seus interesses e benéficas aos mercados.
Nesse cenário, as políticas de privatização ganham importância e a questão aqui fica evidente: a privatização tem como objetivo diminuir as atribuições do poder público, repassando-as para a iniciativa privada. As políticas de privatização resultam na precarização da classe trabalhadora, que, naturalmente, tende a se opor a tais medidas, portanto, a solução seria realizar as privatizações aos poucos, buscando uma passagem suave do Estado de bem-estar para o Estado privatizado, mas ajustando os custos da privatização para o futuro.
As reformas previdenciárias, por exemplo, não incidem sobre os já aposentados, mas sobre os que ainda vão se aposentar, jogando o custo social para as gerações futuras, o que torna essas medidas mais palatáveis no presente. A ideia é que “privatizando a oferta, busca despolitizar a demanda”, ou seja, “uma vez protocolada a liberalização, são os próprios indivíduos por meio de suas microescolhas de consumidores que se tornam os motores da mudança”. (CHAMAYOU, 2020, p.377)
Aqui, é importante perguntar novamente: se o neoliberalismo busca controlar todos os aspectos da vida social, construindo uma sociedade baseada em aspectos concorrenciais e empresariais, que são mais efetivos que os instrumentos de Estado, não caberia chamá-lo de totalitário? Os adeptos da teoria liberal do totalitarismo podem argumentar que não, uma vez que os totalitarismos pressupõem o controle do Estado sobre a sociedade, e o neoliberalismo prega a diminuição da função estatal. Entretanto, cabe lembrar que, na verdade, o neoliberalismo não nega a função do Estado, mas sim realiza uma ambiguidade: Estado mínimo para os capitalistas, Estado máximo para a repressão, vide o apoio de Hayek à ditadura chilena. Os neoliberais poderiam ainda argumentar que o totalitarismo pressupõe a existência de um líder, que subordina a sociedade à sua autoridade. Pois bem, o neoliberalismo também não nega esse líder, principalmente se considerarmos que, para os neoliberais, a liderança deve vir do mercado, grande arquiteto de toda dinâmica social.
Na sociedade neoliberal, os indivíduos são controlados por aplicativos de celular que os classificam de acordo com suas produtividades, onde grandes empresas de tecnologia conseguem acesso a nossos dados e decidem que tipo de informação e mercadorias vamos consumir, uma sociedade na qual não existem direitos trabalhistas ou sociais, e a meritocracia escamoteia e impede o combate às desigualdades, em que os preconceitos são justificados por uma visão autoritária de liberdade de expressão e qualquer manifestação contrária ao mercado é suficiente para que aconteça uma série de perseguições de adversários políticos do projeto neoliberal, seja pela justiça e/ou pelas forças de repressão.
No Brasil atual, é possível identificar todas as características citadas nos parágrafos anteriores, acrescentando um presidente fascista que adotou políticas com objetivo claro de aumentar a liberdade dos mercados por meio de seu “superministro” da economia − um sujeito oriundo do mercado financeiro e radicalmente comprometido com as reformas neoliberais. Em um contexto de pandemia, em que o presidente adota uma política negacionista, defende tratamentos obscurantistas, espalha fake news, nega as únicas alternativas contra a peste − ou seja, o lockdown, a vacina e uso de máscara − e ataca a democracia todos os dias… nada disso é o suficiente para o desembarque completo da burguesia e dos “especialistas” do mercado, nem mesmo a retração econômica, o aumento do desemprego, da renda, da miséria e da fome.
A morte (ou assassinato?) de 400 mil brasileiros (e contando) em função recusa do poder público em adotar medidas protetivas não são suficientes para se interromper um governo claramente genocida. Vivemos em uma sociedade na qual prefeitos e governadores cedem à pressão de organizações patronais que se recusam a manter seus negócios fechados durante a pandemia, forçando os empregados a enfrentarem o risco de adoecer, mesmo com colapso do sistema de saúde. Vale tudo para salvar a economia, menos o aumento do gasto público e desrespeitar os dogmas neoliberais. A vida vale menos que a economia, como disse o prefeito de São José dos Campos (SP), Felício Ramuth (PSDB):[4] “a falência de um negócio é muito mais traumática do que a morte de um ente querido.” Para os neoliberais é assim.
Uma sociedade assim pode ser chamada de tudo, menos de democrática. Já de totalitária, me parece bem razoável.
Tiago Santos Salgado é doutor em História pela PUC-SP e pesquisador do Centro de Estudos de História da América Latina (Cehal-PUC/SP)
Referências bibliográficas
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável: Uma genealogia do liberalismo autoritário. Ubu Editora, 2020.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Boitempo Editorial, 2017.
KALECKI, Michal. Crescimento e ciclo das economias capitalistas. Hucitec, São Paulo, 1977.
[1] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Editora Companhia das Letras, 2013.
[2] Ver: CHASIN, José. Ensaios Ad Hominem, Tomo III-Política. São Paulo: Ensaio, 2000; COTRIM, Lívia. O ideário de Getúlio Vargas no Estado Novo. 1999. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado)–IFCH-Unicamp, Campinas, 1999. Mimeografado
[3] Chamayou, por exemplo, não chega a fazer tal operação, mas indica a existência de um “capitalismo fascista”, que se caracterizaria como um capitalismo desenfreado, como o desejado pelos neoliberais, mantido por um regime político de força brutal, como aconteceu durante a ditadura de Pinochet no Chile (2020,p.325).
[4] A fala aconteceu durante uma coletiva de imprensa no início de março e pode ser conferida no seguinte link: https://www.facebook.com/jornalovale/videos/2888835908051693