Trabalhar mais, para ganhar menos
Um balanço da políticas neoliberais “de emprego” na França revela: além de rebaixarem salários, elas ampliaram as diferenças de rendimento entre homens e mulheres, a precariedade e a necessidade de trabalhos complementares. Que mais será preciso para uma mudança de rumos?Michel Husson
A cada três pessoas sem domicílio fixo, apenas uma dispõe de emprego em Paris [1]. Essa estatística chocante evidenciou a existência de uma nova categoria de indivíduos: os trabalhadores pobres. Tal fenômeno não se restringe apenas à França, já que os salários baixos [2] correspondem aproximadamente a um assalariado dentre seis na Europa. Pode ser visto como resultante de um processo de degradação desencadeado há mais de 25 anos.
É impossível dissociar a amplitude de salários baixos da evolução da partilha do valor agregado. Durante os anos 1960 e 1970, os salários representavam por volta de três quartos do Produto Interno Bruto (PIB), na Europa. Desde os anos 1980, essa fatia praticamente não parou de diminuir, chegando a atingir 66,2% em 2006 [3]. Em relação a 1993, a perda equivale, em média, a sete pontos do PIB.
Tal redução reflete uma verdadeira mudança do sistema: até a crise de meados dos anos 1970, o poder de compra do salário era fixado sobre sua produtividade. A participação dos salários sobre na nacional mantinha-se aproximadamente constante e as desigualdades tendiam a se reduzir. Sob a pressão do desemprego, essa dinâmica foi interrompida. Ao mesmo tempo, desenvolveram-se diversas formas de instabilidade associadas aos salários baixos. Na França, os rendimentos do trabalho não representavam mais do que 53% da renda disponível das famílias em 2003 (contra 67% em 1978); enquanto isso, a proporção de assalariados aumentou de 83,6% da população ativa ocupada para 91,4%.
Desmontar um falso mito: baixos salários não reduzem o desemprego
“A tendência quase ininterrupta à diminuição das desigualdades salariais parou a partir de meados dos anos 1980. O leque salarial voltou a se abrir na segunda metade da década [4]”, destaca o economista Pierre Concialdi. A proporção dos salários baixos passou de 11,4% em 1983 para 16,6% em 2001. No plano europeu, o mesmo movimento se repete. Há uma relativa estabilização das desigualdades salariais ao longo dos anos 1990. Entretanto, ela se dá num nível elevado de desigualdade e os indicadores disponíveis têm dificuldade em determinar o aumento das formas de empregos instáveis e pouco remunerados. Em 1996 – isto é, de acordo com as últimas estatísticas conhecidas, o que mostra o quanto de interesse está voltado a essa questão – os salários baixos eram, em média, 15% do total, na Europa [5], indo de 6% em Portugal a 21% no Reino Unido. A posição da França está um pouco abaixo da média.
Na lógica liberal, as desigualdades de remuneração são explicadas, e até mesmo justificadas, pelo leque de qualificações que, supostamente, refletiria a diversidade das produtividades individuais. Toda política pública – inclusive a bem intencionada – voltada para a correção da hierarquia de salários acabaria por se tornar uma fonte de desemprego. Essa pseudo-racionalidade, postulado fundamental da economia dominante, equipara o trabalho a uma mercadoria como outra qualquer e funda uma filosofia social que legitima as desigualdades em nome da eficiência.
Mas nenhum estudo sustenta essa hipótese. As comparações internacionais mostram que não há correlação entre a variação das qualificações e a das remunerações, se excluídos os países anglo-saxões. Também não se encontra uma relação inversa entre desigualdades de remuneração e taxa de desemprego, conforme ressaltam os pesquisadores Howell e Friedrich Huebler [6]. Até mesmo a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE) ressalta que “é muito difícil relacionar o número de empregos perdidos com os níveis dos salários mínimos em diferentes países; alguns estudos revelam efeitos significativos, enquanto que outros não confirmam nenhum deles [7]”. Portanto, não existem leis econômicas universais que fixem uma amplitude “ótima” do leque de salários, mas sim modelos sociais que atribuem uma importância variável a uma certa “eqüidade” salarial.
Aumento de prestação de serviços… perpetuação do baixo salário
As desigualdades salariais dependem simultaneamente da remuneração por hora e do tempo de trabalho, combinados diferentemente pelos países. No Reino Unido, há mais trabalhadores ganhando pouco por hora que na Holanda. Mas os empregos de curta duração são tão freqüentes nesses dois países, e envolvem tantos trabalhadores, que no cômputo final a proporção dos salários baixos em ambos os países aparece muito mais elevada do que na média. Esse exemplo mostra que a revalorização das remunerações passa, também, pela luta contra o tempo de trabalho parcial e, de maneira geral, contra a instabilidade. Em todos os países, o risco de baixa remuneração é maior para os assalariados cujo contrato é de duração determinada.
Esse problema foi especialmente evidenciado pelo último relatório do Conselho do Emprego, das Rendas e da Coesão Social (CERS) [8]. Analisando o salário anual (e, mais precisamente, apenas a remuneração por hora), o estudo indica que “o principal fator de desigualdade é a duração do emprego no ano”. Ela depende do recurso ao tempo parcial e do número de semanas trabalhadas. Os salários baixos são, primeiramente, os empregos instáveis. E, na França, eles são inúmeros (ver nessa edição).
Da forma como funciona, o mercado de trabalho tende a reproduzir um “pipocar” de empregos pouco remunerados. É o que acaba de mostrar um relatório oficial sobre a previsão de trabalhos para o período de 2005 a 2015 [9]. Sobre as criações líquidas de empregos previstas, mais de um quarto (400 mil) seriam no setor de serviços particulares (o auxílio a pessoas idosas ou dependentes, cuidado de crianças etc.), chamados “serviços às pessoas”. Destes, 80 mil são postos de empregados domésticos. De acordo com Michèle Debonneuil [10], conselheira do ministro do emprego, da coesão social e da habitação Jean Louis Borloo, o desenvolvimento desse tipo de emprego constituiria, para alguns, uma solução elegante ao problema do desemprego. Bastaria que “cada família francesa consumisse, em média, três horas desses serviços por semana, para criar dois milhões de empregos”.
A tendência não é inédita: os empregos de babás e de empregados domésticos aumentaram em mais de 80% entre 1990 e 2002. São postos ocupados, principalmente, por mulheres cuja qualificação não é reconhecida e que trabalham, majoritariamente, em tempo parcial. Sua “remuneração mensal é, em mais 90% dos casos, inferior ou igual a 1,3 salário-mínimo (SMIC) [11]”. Assim, esse “reservatório de empregos” é também um “reservatório de salários baixos”: o mínimo bruto pago às babás, por exemplo, é de 2,32 euros por hora.
Em vez de substituir as tarefas domésticas, mercantilizá-las
Há mais de vinte anos, André Gorz já criticava o caráter fundamentalmente desigual dessa “contra-economia terciária que busca antes criar empregos sub-remunerados do que desenvolver os serviços sociais. Segundo ele, “não se trata mais de socializar as tarefas domésticas, para que elas absorvam menos tempo social; trata-se, ao contrário, de fazer com que essas tarefas ocupem o máximo de pessoas e que absorvam o máximo de tempo de trabalho possível, mas agora sob a forma de serviços comerciais. Logo, o desenvolvimento de serviços pessoais só é possível num contexto de desigualdade social crescente, no qual uma parte da população monopoliza as atividades bem remuneradas e restringe uma outra parte ao papel de servente [12]”.
Diante da amplitude das baixas remunerações, acentua-se a diferença entre o salário recebido pelo empregado e o custo para o empregador – intervalo batizado como “cunha fiscal”. Com o intuito de conciliar a exigência de um salário justo e a de um custo do trabalho dito competitivo, a Comissão Européia e a OCDE pleiteiam uma redução das contribuições sociais, principalmente para os menos qualificados, e “redes de segurança” sob a responsabilidade do poder público. A França foi, sem dúvida, o paísonde essas receitas foram aplicadas de forma mais fiel. Desde 1993, os sucessivos governos diminuiram as contribuições sobre os salários baixos. Atualmente, essa redução se estende até 1,6 vezes o SMIC.
Se o impacto dessas medidas sobre o emprego é controverso, seus efeitos sobre a estrutura salarial são facilmente percebidos. O principal deles é acumulação na parte inferior da escala salarial: a porcentagem dos salários inferiores o 1,3 SMIC passou de 30%, no início dos anos 1990, para 39% em 2002. As reestruturações do smic, que concerniam 8 a 9 % dos trabalhadores no início dos anos 1990, atingiram 17% em 2005 [13]. Ao mesmo tempo, as reestruturações repercutem menos do que antes sobre o conjunto dos salários, diminuindo a progressão salarial no interior das empresas. Assim, as políticas de contribuições sociais reduzidas contribuíram para a formação de um “núcleo resistente” de salários baixos.
Entre os assalariados pobres, 80% mulheres
No plano da luta contra a pobreza, os liberais insistem que a revalorização do salário mínimo não é precisamente a medida mais adequada, já que os salários baixos (individuais) e a pobreza (das famílias) não se correspondem. De fato, conforme a definição oficial, é possível que um trabalhador pouco remunerado não seja considerado como pobre, se ele pertencer a uma família cuja renda excede o limite de pobreza. As duas categorias se distinguem: 19% da população ativa recebe uma renda inferior a 75% do smic, mas somente um quarto dessas pessoas se encontra em situação de pobreza monetária [14]. Segundo Pierre Concialdi, “se a população dos trabalhadores pobres é majoritariamente masculina (mais de 60%), a dos trabalhadores com salário baixo é aproximadamente 80% feminina [15]”. Para tanto, seria legítimo pensar no nível da família? Dessa forma, corre-se o risco de “minimizar a inferioridade na qual as mulheres se mantêm no mercado de trabalho [16]”, de confirmar o esquema do salário da esposa como “salário de apoio” e de ocultar a situação das mulheres sozinhas em tempo parcial.
Tais desigualdades não parecem preocupar os liberais. Esses propõem compensar os baixos salários com prestações sociais melhor focalizadas ou com dispositivos como a gratificação pelo emprego na França, pressuposta como incentivadora do trabalho. É oferecida às pessoas que tenham retomado uma atividade profissional, sob certas condições de recurso.
De fato, essas medidas constituem verdadeiras “armadilhas”: acabam por ratificar os salários baixos, enquanto que as baixas de contribuições sociais determinadas sobre esse tipo de remuneração funcionam como uma incitação à aglomeração em pontos da escala salarial. Sob pretexto de ajudar os mais desprovidos, tais medidas alimentam um processo generalizado de degradação salarial.
A importância de um salário mínimo europeu
O mesmo acontece com a flexibilidade do mercado de trabalho: “a constatação estatística não apresenta nenhuma ambigüidade, mas também não traz nenhuma grande surpresa: quanto mais se distancia do emprego estável para se reaproximar das zonas de emprego instável e flexível ou das alternâncias entre desemprego, emprego e inatividade, maior é o risco da pobreza aumentar [17]”. Assim, o CERC se esforça para evidenciar a conclusão óbvia: “o emprego de qualidade continua sendo a principal proteção contra a pobreza”.
Para inverter a tendência, seria necessário restabelecer a participação dos salários na renda nacional e impedir o avanço das formas de empregos instáveis. A revalorização dos salários baixos constitui, com efeito, o único meio de chegar à raiz do problema da pobreza, sem prejulgamento do sexo do assalariado e da configuração da sua família. A garantia de um salário justo é a melhor maneira de “fazer com que o trabalho pague”.
Nessa via, a criação de um salário mínimo europeu seria uma etapa importante; tal perspectiva é a da atualidade. Após ter sido instituído pelo Reino Unido, em 1999, e pela Irlanda, em 2000, o debate sobre o salário mínimo está aberto na Alemanha, na Áustria e até na Suíça [18]. A entrada, na UE, de países cujo nível salarial é inferior ao da média torna esse debate ainda mais indispensável. No momento, parece que, em vários desses países, a revalorização do salário mínimo contribui para um movimento de recuperação salarial. Mas essa evolução poderia ser reforçada pela implantação de um sistema europeu de salários mínimos.
Levando em conta as disparidades, não se poderia fixar um nível único para todos. Porém, é possível conceber uma norma geral, adaptada às realidades de cada país. Fixar, por exemplo, o salário mínimo em 60% do salário médio de cada país, como é o caso da França [19]. Nesse contexto, a Alemanha ocupa um lugar central, pois lá a idéia de um salário mínimo nasceu justamente dos estragos sociais provocados pelas reformas do mercado de trabalho. A porcentagem dos trabalhadores com salários baixos passou de 14,3% a 15,7% entre 1995 e 2000, para atingir o mesmo nível que o da França [20]. Se um salário mínimo legal foi adotado nesse país, seria possível discutir a sua extensão em escala européia. Seria “na esfera social o que o euro é na esfera monetária [21]”.
Nova política salarial: limite da “economia competitiva”
Na verdade, a maneira mais simples de defender o “valor trabalho”, tão corrente nesses últimos tempos, não seria aumentar os salários? Objetamos que uma tal medida conduziria diretamente ao aumento do desemprego: nossos produtos perderiam em competitividade; os assalariados pouco qualificados parariam de ser empregados, pois custariam mais caro, às empresas, do que aquilo que pudessem lhes render de produtividade.
A observação dos fatos mostra que essa série de argumentos não apresenta fundamento: não são os países que têm o mais “moderado” dos salários que geraram o máximo de empregos. A redução das contribuições também não permitira criá-los. Deveríamos refletir sobre o contra-exemplo da Alemanha: o congelamento dos salários certamente contribuiu para estimular as exportações, mas também freou o consumo dos assalariados. Desses dois efeitos, foi o segundo que prevaleceu, conduzindo a um aumento de três pontos da taxa de desemprego, entre 1995 e 2005.
A versão liberal se apóia sobre dois postulados discutíveis. O primeiro é o da concorrência geral espalhada pela Europa. Se for verdade que um país que limita a progressão dos salários pode ganhar partes do mercado em detrimento de seus vizinhos, a generalização dessa falsa boa idéia conduz a um fraco dinamismo do emprego, quando todos os países seguem a mesma política. É exatamente o que ocorre na União Européia.
O segundo postulado consiste em dizer que não se pode mexer na distribuição das rendas. Ora, assim como os salários, os dividendos são um elemento da determinação dos preços: um aumento dos salários pode, perfeitamente, ser compensado por uma baixa dos benefícios financeiros, de tal forma que a competitividade permaneceria imutável. Portanto, uma outra política salarial é possível. Essa deve ser coordenada no nível europeu e acompanhar o repasse dos rendimentos financeiros para os salários – contrariamente ao que ocorre há mais de duas décadas.
Quanto a trabalhar por longo tempo para ganhar mais, isso também não é nada coerente. O prolongamento da jornada de trabalho vai de encontro a novas criações de empregos e não pode engendrar por si só um aumento da atividade se a distribuição de renda continua a mesma. Inúmeros acordos de empresas mostram que, sob pretexto de “livre escolha”, trata-se, na realidade, de reduzir o pagamento por hora e não de o revalorizar. Essa orientação, que invoca a pressão dos países emergentes, é um impasse. Para se adaptar a seus custos salariais, seriam necessárias diminuições de salário tamanhas que a economia européia ficaria competitiva, mas morta.
Enfim, a proposta – comum a Nicolas Sarkozy e a François Bayrou – de aumentar as horas suplementares, de forma a exonerá-las das contribuições sociais, acabaria por liquidar a noção da duração legal do trabalho e por reduzir um pouco mais os recursos da garantia social.
Tradução: Leonardo Teixeira da Rocha
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