Transe e vertigem: sair de si para retomar o movimento
Confira resenha do livro Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição, escrito pelo filósofo Rodrigo Nunes e lançado neste ano pela Ubu Editora
1.El fuego es incapaz de ser mentira
(Gorka Lasa)
No começo dos anos 1980, Antonio Negri, militante e pensador italiano, escreve uma carta ao seu companheiro Félix Guattari na qual ele sentencia: “fomos derrotados, devemos reconhecer”. Depois de anos de ritmos insurrecionais, um ciclo vigoroso de greves, ocupações, experimentações coletivas de novas linguagens vividos pelos dois amigos durante os anos 1960 e 1970, os anos 1980 mostrariam os impasses evidentes ligados ao refluxo dos movimentos contestatórios. De um lado, a derrota definitiva da imaginação soviética, do outro, a reorganização do capitalismo em espaços expansivos de controle e mobilização. No interior da prisão, Negri ainda escrevia que: “Deve haver um modo de reconhecer uma derrota sem ser derrotado, deve haver um modo de aceitar o limite da vontade sem negar a força construtiva do entendimento”.
Pode parecer estranho falar sobre derrota depois da tão esperada e celebrada vitória eleitoral de Lula contra Bolsonaro. No entanto, Do transe à vertigem nos convida a pensar o Brasil contemporâneo para além dos marcadores eleitorais e sua temporalidade. Sua coreografia desliza em movimentos multiescalares: do esgotamento ecológico planetário, passando pela crise de legitimidade e reacomodação predatória do neoliberalismo, as transformações sociotécnicas e sensíveis do regime informacional e comunicacional, chegando no plano dos desejos e afetos que nos fazem enxergar as novas formas de subjetivação em curso. É um corte mais profundo, tal qual aquele que realizaram Gilles Deleuze e Félix Guattari quando, ainda refletindo sobre a experiência nazifascista na Europa, desviaram das considerações confortáveis de que as pessoas haviam sido enganadas para então lançar a constatação fatal: o problema reside no fato de que as pessoas desejaram o fascismo.
Do mesmo modo, Nunes se (nos) pergunta sobre esse mundo (afetivo, material, relacional) que corresponde ao regime de verdade enunciado pelas forças que compõem o bolsonarismo e a extrema direita, no geral. Quer dizer, não é que Bolsonaro ou Trump tenham enganado ou confundido as pessoas, mas é que, em muitos casos, “a história que a extrema direita conta faz mais sentido para um grande número de pessoas do que qualquer coisa que a esquerda esteja dizendo” (p.63). Tecendo uma cartografia dos estados anímicos que suscitam nosso presente, ao modo Pasolini, Nunes está interessado em uma espécie de cartografia da mutação antropológica que conforma territórios existenciais bastante propícios para corresponder aos enunciados da extrema direita.
Como logrou fazer com tanto êxito Glauber Rocha em Terra em transe, quando recriava na tela a “verdade desagradável” da derrota das esquerdas nos anos 1960 no Brasil, Nunes nos provoca a pensar sobre o porquê das esquerdas fracassarem no sentido de reconhecer a gravidade do abismo em que vivemos, quando a extrema direita soube o fazer, ainda que oferecendo uma gestão de resignação para tal constatação compartilhada. Tal fracasso, muito reside na ficção pragmatista das esquerdas progressistas que se compreenderam como responsáveis gestoras da ordem quando o tecido social colapsava em largas ondas de frustração, revolta e desconfiança em relação às instituições estabelecidas. Glauber Rocha traduzia na alegoria barroca cinemanovista nada melancólica a debilidade existencial de uma esquerda que havia desaprendido a compreender os sinais, enquanto o Democracia em vertigem, da cineasta Petra Costa, inebriado de sua própria ficção autobiográfica, se mostra incapaz de implicar a esquerda em seu próprio ocaso. Glauber enxergava nela uma crise de presença, uma obstrução dos poros que permitem habitar e sentir o mundo. Seu cinema implodia, por excessos, os consensos pacificadores. Tais estilhaços seguiram cortando a carne daqueles que, mesmo diante da celebração progressista de uma “democracia finalmente consolidada”, puderam sentir e testemunhar os limites das políticas pacificadoras: movimentos de favelas; de familiares de pessoas executadas pelas polícias; movimentos indígenas na luta contra grandes obras de infraestrutura e seus impactos devastadores e irreparáveis, lideranças camponesas, ambientalistas, ameaçadas cotidianamente pela expansão do agro e seu próprio império da lei.
Do transe à vertigem acende uma fogueira em meio à neblina e nos convida a contar melhores histórias sobre o mundo convulsionado. Rodrigo Nunes propicia em seus textos uma transformação da percepção sobre o que nos cerca, abrindo uma conversa (sem dúvida a conversa que mais me anima) sobre o próprio estatuto do político. Franco Berardi, o Bifo, sugere que a sensibilidade é a faculdade de tornar visível uma certa configuração de mundo, é o que torna possível a interpretação de signos que não se definem precisamente em identidades ou enunciados bem consolidados. Talvez o gesto fundador do livro, e que passa por todos os seus capítulos, seja esse: é preciso um novo regime de sensibilidade para que possamos ampliar os limites do possível.
Muito além de uma vitória eleitoral, o autor nos pergunta sobre as possibilidades de retomarmos a iniciativa de uma perspectiva de transformação que seja capaz de perfurar as sólidas certezas das tradições revolucionárias ou reformistas do século XX e que nos faça, assim, criar garras para poder escapar do sonho da repetição permanente e da “servidão passional” em relação ao atual estado das coisas. Como Negri e Guattari concluíram juntos naquele momento de incertezas: “Frustrar a catástrofe é realizar uma ação coletiva de liberdade”. O fascínio que ainda nos provoca o fogo vem da sensação de que, diante de um mundo instável e contingente, ainda assim: o fogo reúne, transforma e é incapaz de ser mentira.
![](https://diplomatique.org.br/wp-content/uploads/2022/12/Do-transe-a-vertigem.jpg)
2- Como um milhão de minhocas escavando sob esta estrutura prestes a cair
(Diane Di Prima)
O livro do Rodrigo Nunes nos chega também como uma carta. Bem mais firme do que o lugar transcendente da “crítica” (o fascismo nunca temeu a crítica!); mais efetivo do que a “autocrítica oficial” (que aplaca a consciência e despolitiza os impasses históricos como aqueles que levaram Dilma à aposta da austeridade; ou à realpolitik petista apostar na recomposição da ordem quando as ruas inflamaram); mais magnético do que o esclarecimento (como lembrava James Baldwin: é preciso resistir sempre à tentação de fazer política “educando” ou “salvando” os outros; ou o próprio Glauber Rocha quando retrata em Terra em transe um povo que só pode “participar” da cena pública pela mediação de um líder), os textos reunidos no livro nos oferecem um lugar pelo qual torna-se possível, outra vez, retomarmos uma perspectiva.
Uma carta aberta aos nossos amigos, amigas, amigues (e aos filhos dos nossos amigos a quem Rodrigo dedica o livro, herdeiros da coragem que saibamos ter) ,aqueles que, como ele, como eu, compartilhamos as muitas e vertiginosas derrotas políticas de nossa geração: os impasses do ciclo altermundista e das lutas anti-neoliberais das décadas de 1990; a ascensão e enfraquecimento dos governos progressistas na América Latina; a história de massacres continuados (uma democracia feita de Carandirus e Eldorados dos Carajás, Pinheirinhos, Belos Montes e Caveirões; e tantas outras barbáries cometidas contra os povos indígenas nesse país), os limites e obsolescências das nossas formas organizativas, as encruzilhadas expostas pelas massivas jornadas de junho de 2013 e a contra-ofensiva autoritária de restauração da ordem que a sucedeu e vem bloqueando, desde então, espaços de pensamento e lutas (nas esquerdas) e avançando contra a vida digna (nas velhas e novas direitas). Nós estávamos lá, estamos aqui.
Cartas são sempre endereçadas, elas comunicam ao mesmo tempo que vinculam em uma poética relacional e imanente cujo único compromisso é com uma espécie de verdade ética que se relaciona com situações concretas: “são verdades que nos ligam, a nós mesmos, ao que nos rodeia e uns aos outros” (Comitê Invisível, 2015). Como as “Cartas Revolucionárias” de Diane Di Prima que nos lembram que, apesar da polícia, dos tribunais, do cansaço e da realpolitik, nós “voltamos com o mar, as marés, voltamos tantas vezes quanto as folhas, numerosos como a relva, gentis, insistentes”. Mas esse “nós” talvez não esteja mais dado. Entre transes e vertigens vamos ter que recriar, recosturar e cultivar aquilo que nos vincula, novas tecnologias de pertencimento radicalmente relacionais, como fala Rodrigo – tarefa que feministas, pessoas racializadas; mulheres periféricas; comunidades de dissidentes do regime de sexo-gênero tem realizado há tempos como prática de sobrevivência em regimes de diferenças e inéditas cumplicidades diante da precarização da vida e do necroempoderamento militarizado que administram a extração neoliberal no terreno da vida.
As cartas também dilatam o imperativo da urgência e abrem uma outra temporalidade. Esse tempo, possibilitado por Do transe à vertigem, é também um convite a uma investigação coletiva mais ousada sobre a natureza do bolsonarismo, suas tecnologias de mobilização, gramática moral e modos de existência. Ousada porque Rodrigo Nunes resiste em sentenciar sobre o que “é” o bolsonarismo – um deslocamento necessário de uma sociologia apressada e pouco imaginativa – para nos apresentar o fenômeno do bolsonarismo como um campo de forças dinâmicas, moventes, que pode se estabilizar em uma miríade de formas políticas, inclusive para além da figura de Bolsonaro. No livro, o bolsonarismo aparece menos como uma forma discursiva-ideológica homogênea e encerrada, mais um campo de convergência de forças, mal-entendidos; inéditas alianças interclasse, vetores vindos tanto “de cima” quanto “de baixo”.
Tais como as imagens do transe e da vertigem sugerem, compreender uma situação e comunicar-se melhor com seus agentes e forças significa sair de si (como formula o antropólogo Renato Sztutman sobre o transe xamânico entre povos ameríndios). Abrir os olhos e ouvidos para o presente, diz Rodrigo, é ter a coragem de reconhecer os limites das “soluções realistas” de vinte anos atrás e assim interromper a caixa de ressonância de dogmas confortáveis que se dirigem a uma realidade que já não existe mais, a um “centro” que há tempos foi esvaziado por um novo diagrama de conflitualidades. Tal diagrama, ao menos desde a grande crise financeira de 2008, vem tornando ainda mais explícita essa era da gestão por meio de crises que hoje acelera a destruição do planeta e a catástrofe ancestral iniciada pela violência total do colonialismo.
O capitalismo de catástrofe agora opera condições inimagináveis de humilhações cotidianas, administrando uma alta intensidade de descartabilidade, exigindo das pessoas mais e mais sacrifícios. Nesse sentido, como vêm formulando muitas feministas latino-americanas, não é possível compreender a expansão da extrema direita sem atentar para essa dimensão que pretende reordenar corpos, afetos, as noções de êxito e fracasso; a natureza das relações que nos constituem, a disseminação, no tecido social, de muitas pedagogias da crueldade. O conflito se instaura, decididamente, no mundo da vida. O historiador E. P. Thompson alertava para o fato de que uma análise social que privilegiava referências de quantidades tais como o consumo per capita, número de trabalhadores assalariados, taxas de emprego/desemprego e renda falharam no entendimento sobre as formas de revoltas e motins dos mais pobres na Inglaterra do século XVIII. Em vez disso, Thompson apontou para a tarefa de pensar o movimento da classe pelas experiências, suas histórias, sonhos. E é também no terreno da vida, sugere Rodrigo, que devemos encontrar os desejos de dissidências; aprender a atuar como minhocas escavando sob esta estrutura prestes a cair.
3- Pensar é aprender de novo a ver e a prestar atenção
(Albert Camus)
Do transe à vertigem abre o caminho para uma investigação difícil sobre a última década de crise de legitimidade do programa neoliberal e suas recomposições mais conservadoras e assombrosas; sobre as verdades incômodas pelas quais torna-se possível enxergar alguns fios de conexão entre bolsonarismo e as apostas do progressismo realista (fios não simétricos e equivalentes, vale dizer) como aquelas ligadas ao fortalecimento do agronegócio e suas elites ou à expansão da militarização da vida cotidiana nas cidades ou fora delas, a intensificação dos modos de existência empreendedores que despolitizam a desigualdade suscitando paixões securitárias e interrompem as formas coletivas e solidárias de sustentação da vida. Tal tarefa inclui nos defrontar com os muitos “núcleos traumáticos” da última década que nos fazem ainda permanecer em negação sobre as verdades incômodas e procurar grandes conspirações para poder seguir sempre desconfiando da revolta.
Do transe à vertigem é também um programa de investigação que, ao instaurar uma perspectiva, nos convida também a pensar sobre como habitar o nosso presente. Como lembra Lapoujade: “Não temos uma perspectiva sobre o mundo, pelo contrário, é o mundo que nos faz entrar em uma de suas perspectivas”. Uma perspectiva que não perde de vista que a hipótese da transformação radical não funda um ponto de vista por si só, mas emerge por uma prática de conhecimento sobre uma experiência coletiva em suas diferenças, ela só pode ser sustentada, como sugere Rodrigo, por uma ecologia de práticas sem comando unificado e centralizado; sem dispositivos de homogeneização que estabelecem em nome do “real”, do “universal”, o que todos devem fazer; o grito de ordem que todos devem gritar. Essa ecologia de práticas é sempre profundamente relacional e está menos preocupada em definir aquilo que temos que ser e mais sobre como fabricar juntos, juntes, tecnologias do comum, aprendizagens, infraestruturas e melhores histórias que desacelerem a máquina de engolir mundos e possam suscitar territórios de liberdade para que possamos realizar o que ainda desejamos ser.
Por isso mesmo, Do transe à vertigem pretende desestruturar elegantemente a solidez de posições antagonistas discursivas para nos fazer voltar a acreditar no movimento. O livro não deve ser tomado como um mapa de uma rota, mas, em vez disso, nos oferece “matrizes de movimentos” capazes de nos deslocar em novas direções e assim também formular coletivamente melhores perguntas com os outros, graças aos outros. Essa não é uma tarefa teórica qualquer em um momento saturado por palavras de ordem, fixações discursivas, afirmação abstratas de princípios e a “dinâmica cismogênica” propiciada pelas plataformas digitais que fagocitaram parte importante da atuação política na última década, como bem sinaliza Rodrigo.
É urgente que recuperemos a agilidade do corpo em transe de Muhammad Ali, que, ainda encurralado, se esquiva de 21 socos em menos de 30 segundos; ou a coragem do realismo radical de Abdias do Nascimento que nos convocava à voltar a pensar em “uma democracia autêntica fundada pelos destituídos e os deserdados deste país, aos quais não interessa a simples restauração de tipos e formas caducas de instituições políticas”. Se existe um “nós” ainda a ser composto, talvez ele possa ser orientado por aqueles que, como escrevia Aimé Césaire, mesmo diante da vertigem, são “possuídos pelo movimento de todas as coisas, indiferentes ao mando, mas jogando o jogo do mundo”.
Alana Moraes é doutora em antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ), integra o Pimentalab-UNIFESP (Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento) e a Lavits (Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade). Atualmente realiza pós-doc no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) da UFRJ.