“Transparência Internacional” ou cortina de fumaça?
Duas estranhas características marcam a atividade desta ONG norte-americana, que se diz disposta a combater a corrupção. Ela protege os corruptores e cala diante dos “ajustes estruturais”, que promovem transferência brutal de renda em favor das grandes empresasBernard Cassen
Se o número de artigos que se acessa nos bancos de dado da imprensa a partir da palavra-chave “corrupção” fosse um termômetro confiável, qualquer um concluiria que, nos últimos anos, essa praga vem evoluindo de forma exponencial. E seria tentado a estabelecer um vínculo de causa e efeito entre a publicidade dada a essas práticas delituosas e a multiplicação do número de instrumentos jurídicos internacionais criados para combatê-las. Essa correlação não resiste à mais leve avaliação: entre uma dúzia de instrumentos que se podem enumerar a partir de 1995, apenas sete têm poder restritivo (veja matéria a respeito); e entre estes últimos, somente dois — os da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — foram ratificados.
No Hemisfério Norte, o que mais cresce não é o número de escândalos, mas o dos que “saem” nos jornais e na TV — e isso, por boas (e, às vezes, não tão boas) razões. Outra explicação: a entrada de novos “atores”, após ter sido retirada a placa de chumbo que pairava sobre os países do bloco soviético e fazia deles, oficialmente, uma zona de “tolerância zero” da corrupção. No processo de euforia da passagem à economia de mercado, assistiu-se à proliferação de predadores, nacionais e estrangeiros, dos recursos e das empresas estatais da Europa Oriental — que, por sinal, remuneravam regiamente seus cúmplices de alto escalão. A Rússia de Boris Ieltsin é um caso exemplar. Mas, a partir do momento em que o modelo ultraliberal foi imposto por meio das “terapias de choque” ocidentais, os abusos passariam a ser tratados como meros excessos de juventude, merecendo apenas um franzir de sobrancelha. Nos países do Hemisfério Sul, os mesmos tipos de falcatrua são considerados fenômenos parasitários, que nunca devem questionar a validade dos planos de ajuste estrutural.
Estranha cruzada contra a corrupção
Aceitar um suborno seria mais revoltante que governar a favor dos lobbies? Isso é o que discutem os diplomatas do Hemisfério Sul
Nesse contexto, é válido questionar o alcance real das múltiplas iniciativas internacionais contra a corrupção e, conseqüentemente, os verdadeiros motivos de seus inspiradores — na vanguarda dos quais se encontram os Estados Unidos. Eis aí um país onde a elite das empresas multinacionais da indústria e das finanças, assim como fundações criadas por empresas e uma agência governamental financiam generosamente — após se terem empenhado na sua criação, em 1993 — a Organização Não Governamental (ONG) anti-corrupção Transparency International1; e eis aí, também, um país que, em 1997, liderou a aprovação da convenção “sobre a luta contra a corrupção de agentes públicos estrangeiros nas transações comerciais internacionais” proposta pela OCDE.
E a cruzada continua: de 28 a 31 de maio próximo, os Estados Unidos e o governo holandês co-organizam, em Haia, um “Fórum global sobre a luta contra a corrupção e pela preservação da integridade” — cujas despesas serão patrocinadas, em um terço, pelos norte-americanos. Na reunião de Okinawa, em julho de 2000, eles conseguiram convencer seus parceiros do G-8 a apoiarem o citado Fórum, onde será elaborado um rascunho da futura convenção das Nações Unidas contra a corrupção. A minuta será discutida de 8 a 17 de maio, durante a próxima reunião anual, em Viena, da Comissão das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e para a Justiça Penal.
Que tal começar a faxina em casa?
O discurso moralizador não passa de uma cortina de fumaça para disfarçar a defesa dos interesses da indústria e das finanças norte- americanas
Tal ativismo é surpreendente, vindo de um país onde a política é subordinada ao poder ilimitado do dinheiro. Grupos de pressão gastam oficialmente bilhões de dólares em lobbies junto a parlamentares ou em apoio às suas campanhas eleitorais. O novo presidente, George W. Bush, e seu vice, Richard Cheney, não fazem qualquer mistério a respeito de seus íntimos vínculos com os grandes grupos petrolíferos — que, por sinal, mostraram ser generosos patrocinadores. Aliás, Bush retribuiu imediatamente, revogando as medidas adotadas por seu antecessor com relação ao meio ambiente e recusando-se a assinar o protocolo de Kyoto, que obrigaria os Estados Unidos a reduzirem a emissão de gazes com efeito-estufa.
Seria mais revoltante aceitar um suborno que tomar medidas excessivamente favoráveis aos lobbies? Esse é o discurso que fazem, entre si, os diplomatas do hemisfério Sul, cujos países são considerados pelo Ocidente como particularmente corruptos e a quem são impostas convenções elaboradas em salões para os quais nunca são convidados. Alguns deles chegam a acrescentar que, se os países do hemisfério Norte realmente se preocupassem com a integridade tanto quanto proclamam, poderiam então começar fazendo a faxina em sua própria casa, restituindo, por exemplo, as fortunas — depositadas em bancos de países-membros da OCDE (Estados Unidos, Suíça e Luxemburgo, entre outros) ou em suas sucursais em paraísos fiscais — desviadas por seus ex-dirigentes, inclusive os que foram eleitos por processos democráticos.
A convenção da OCDE
Os outros países organizam-se, para os EUA, em duas categorias: os que são parceiros e concorrentes e os que são meros alvos financeiros e comerciais
Para os Estados Unidos e as instituições multilaterais cujas políticas são ditadas por Washington (OCDE, Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, entre outros), há uma diferença entre a fantasia difundida junto aos meios de comunicação e a realidade. O discurso moralizador — destinado à opinião pública nacional e internacional — não passa de uma cortina de fumaça disfarçando a defesa fria e deliberada dos interesses da indústria e das finanças norte-americanos, que passa, por exemplo, pela imposição de uma crescente “liberalização” e de abertura dos mercados nos países em desenvolvimento ou em “transição”. Diante da coerência desse objetivo, os outros países podem se organizar em duas categorias: os que são, simultaneamente, parceiros e concorrentes e os que são meros alvos financeiros e comerciais. É verdade que os primeiros — basicamente, os outros países membros do G-7 — enfrentam os Estados Unidos nos mercados mundiais, mas fecham questão com eles na negociação do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS, em inglês), na Organização Mundial do Comércio (OMC). Os segundos praticamente não têm direito a voz quando se discute um tema — a corrupção — onde se encontram permanentemente na defensiva.
A convenção da OCDE de 1997 visa fundamentalmente ao “desarmamento” dos concorrentes das empresas norte-americanas,2 através da proibição de dar propinas a funcionários estrangeiros para obter grandes contratos (armas, energia, transporte, telecomunicações, obras públicas etc.). Na França, por exemplo, essas comissões eram perfeitamente legais e dedutíveis do valor a ser taxado pelo imposto. No entanto, a partir de 29 de setembro de 2000, data em que entraram em vigor a convenção e a lei de transposição, as coisas mudaram e qualquer cidadão ou empresa estrangeira pode entrar com uma ação na justiça francesa. Essa mesma convenção foi ratificada em 10 de novembro de 1998 pelo Congresso norte-americano, em alteração a um texto já existente: a lei federal sobre práticas de corrupção no exterior (Foreign Corrupt Practices Act, ou FCPA). No que se refere à sua aplicação, entretanto, a diferença é grande com relação à França: nos termos do FCPA, cabe única e exclusivamente ao Ministério Federal da Justiça a competência para encaminhar uma ação, eventualmente arquivá-la ou negociar um acordo (plea bargaining).
A impunidade garantida
Em Haia, Washington e seus parceiros poderiam impor ao resto do mundo sua concepção de luta contra a corrupção, enquanto peça importante do kit neoliberal
Industriais não-americanos insistem em denunciar esse tipo de assimetria que dá o direito de apreciação a um poder político que, eventualmente, pode evocar exigências de “segurança nacional”. E acrescentam que o sistema global de espionagem Echelon3 permite a seus concorrentes norte-americanos saberem o ponto em que se encontram as negociações comerciais com seus clientes, e que, além do mais, a existência de empresas de vendas para o exterior (foreign sales corporations) inviabiliza qualquer possibilidade de controle sobre o pagamento de propinas. Essas empresas-fantasmas, filiais de grandes grupos norte-americanos, criadas para atividades de exportação e com sede em paraísos fiscais (Barbados, Ilhas Virgens, Guam), permitem a esses grandes grupos depositar uma parte de seus lucros para, posteriormente, repatriá-los sem pagar impostos.
A União Européia apresentou queixa perante a OMC contra esses subsídios disfarçados às exportações e — por uma vez! — conseguiu um parecer favorável, o que lhe valeu o direito de impor sanções da ordem de 4 bilhões de dólares aos Estados Unidos. No entanto — assim como no caso do caso Echelon — essas sanções nem sempre são aplicadas, já que a Comissão Européia tem medo da própria sombra. O representante francês na Comissão, Pascal Lamy (ex-diretor da seção francesa da Transparency International), gosta de proclamar alto e em bom som a amizade que o une ao representante do presidente norte-americano para o comércio internacional, Robert Zoellick. Seria assim tão indelicado falar de dinheiro entre “amigos”?, é a pergunta que se fazem os representantes dos grandes grupos europeus, com a nítida impressão de serem eles quem vai pagar o pato da farsa de convenção da OCDE. A ponto de sonharem em criar suas próprias foreign sales corporations, onde poderiam depositar, numa impunidade garantida, o dinheiro da corrupção e restabelecer uma certa paridade. Paridade que, na verdade, jamais será alcançada, pois Washington dispõe, para os mercados públicos, de trunfos fortes para uma ação direta ou indireta sobre os governos — através, por exemplo, de “condições” impostas por um FMI que nada tem a recusar ao Departamento do Tesouro.
“Em proveito da influência”
Deverá ser aprovado “por aclamação” um texto que visa lançar os alicerces de uma futura convenção da ONU
Nenhum governo ousou defender oficialmente o pagamento de propinas por “suas” empresas. Ficaria exposto à maldição da opinião pública e a uma violenta campanha moralizadora por parte de Washington, que se encarregaria de localizar os contatos — pelo menos parcialmente, essas propinas acabam envolvendo os países de origem e alimentando escândalos de corrupção como o financiamento ilegal de partidos políticos. Além de ficarem em posição de fazer a festa, os Estados Unidos ainda poderiam contar com seus parceiros para impor conjuntamente ao resto do mundo a sua concepção da luta contra a corrupção, enquanto peça importante do kit neoliberal. E é precisamente esse o objetivo do Fórum Global de Haia.
Este é o segundo nome do mesmo Fórum. O primeiro (Fórum Al Gore) foi pessoalmente convocado pelo então vice-presidente em fevereiro de 1999. Com a campanha presidencial pela frente e desejoso de se distanciar das trapalhadas de William Clinton, Albert Gore matava dois coelhos de uma cajadada só: evocando a sabedoria de Moisés e Confúcio, e fazendo desfilar perante a tribuna um monge budista, um rabino, um pastor e um arcebispo — para explicarem que o Mal está na origem da corrupção — ele cuidava de sua imagem moral e, paralelamente, ungia com o Bem as “reformas estruturais nos mercados emergentes, de forma a eliminar a incitação à corrupção e criar um clima favorável aos investimentos, ao comércio e ao crescimento econômico” (discurso de Stuart Eizenstat, então subsecretário para Assuntos Econômicos e Agrícolas). Em Haia, deverá ser aprovada “por aclamação” uma declaração final com o objetivo confesso de lançar os alicerces (building blocks) da futura convenção das Nações Unidas. Mais uma maneira de transformar a ONU num cartório de registro das vontades norte-americanas.
Haverá alguma voz capaz de denunciar a fraude política dessa luta “contra a corrupção’ e pelo neoliberalismo?
A iniciativa é idêntica à da organização — também por convite dos Estados Unidos — da Conferência sobre a Democracia e suas Perspectivas, realizada em Varsóvia, em junho de 2000. Tratava-se de criar uma “comunidade das democracias”, todas elas adeptas da “boa governança” e cuja composição seria ratificada por Washington. A declaração final foi aprovada pela unanimidade dos países representados (entre os quais, modelos democráticos inquestionáveis, como os da Albânia, do Catar, da Rússia e da Tunísia), à exceção de uma voz — a da França. Hubert Védrine, ministro das Relações Exteriores, recusou-se a participar daquela palhaçada, lamentando que os ocidentais, por vezes, dêem a impressão de usar “a aspiração universal à democracia e aos direitos humanos (…) em proveito da influência ou do domínio político, econômico e cultural”.4 Haverá alguma voz, em Haia, para denunciar a fraude política dessa luta “interativa” contra a corrupção/pelo neoliberalismo que os Estados Unidos querem impor ao resto do mundo — sem que eles próprios o façam?
(Trad.: Jô Amado)
1 – Ler, de Pierre Abramovici, “Uma ONG contestada”, Le Monde Diplomatique, novembro de 2000.
Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.