Três memórias da ditadura e a escalada subhumanista
A memória é uma das capacidades cognitivas mais fascinantes de que dispomos. Nessa chave, a psicanálise nos fala do princípio de prazer, do princípio de realidade e do retorno do reprimido. Contudo, nós, no “divã” militar dos nossos dias, enclausurados na fantasmagoria real dessa sociedade de controle, somos levados a detectar o “princípio do sofrimento”, o “princípio do terror” e o “retorno do repressor”, que emergem de sociedades perpassadas pela herança ditatorial, como é o Brasil bolsonarista dos dias de hoje.
A dramática situação política do Brasil atual, em especial com o (des)governo da extrema direita subhumanista no poder, personificado na figura de Jair Bolsonaro, tem um ponto de explicação na relação como foi administrado o vínculo entre política e memória do “jovem passado” ditatorial brasileiro. A leitura do presente caótico é inseparável do diálogo com a história, o qual permite efetuar reflexões sobre as cicatrizes da ditadura militar em nosso país, armazenadas: 1) na memória das vítimas; 2) na memória dos torturadores; e 3) numa suposta “memória coletiva”.
Encontramos nessas subjetividades não somente formas de resistência, mas, paradoxalmente também, tentativas de “epificação” de torturadores, continuidades de produções de “verdades” enquanto dispositivos de controle do passado, que fabricam consensos, orientam caminhos, disputam e administram politicamente o (des)governável porvir político do país. O debate em torno dos três tipos de memória implica uma análise sobre a política de convivência entre torturadores e torturados, e traz em si uma conflituosa relação.
Sabemos que não existe uma práxis da verdade ou exercício de direitos de reconhecer a história de violações aos direitos humanos que não tenha como ponto de partida um chamado, um apelo, um pedido, seja ele negativo ou positivo. Há, portanto, uma dupla determinação entre a memória e a práxis da verdade. Ao recorrermos à categoria da memória como conceito explicativo, conceito-chave da “transição” política, não pretendemos exclusivamente escavar a subjetividade histórica de um povo, como se buscássemos ascender à história real e tentássemos apresentar a última fotografia da pura ontologia da história social por excelência, enquanto narrativa de um fato imutável ocorrido em outrora.
Talvez, para entendermos com mais profundidade para onde estamos indo, seja mais interessante perceber quais são os efeitos dessa relação com o nosso pretérito de horrores. Dito de outra forma, no cenário político brasileiro atual, sob o (des)governo bolsonarista, provavelmente seria mais cativante buscar as formas pelas quais os indivíduos (53% do eleitorado; 57 milhões de brasileiros) observam e deixam-se influenciar por determinada narrativa do progresso. Pois, no fim das contas, os poderosos sabem que a memória tem efeitos perigosos e que o tempo insiste porque existe um tempo que ainda há de vir…
Memória e políticas de memória
A memória é uma das capacidades cognitivas mais fascinantes de que dispomos. Nessa chave, a psicanálise nos fala do princípio de prazer, do princípio de realidade e do retorno do reprimido. Contudo, nós, no “divã” militar dos nossos dias, enclausurados na fantasmagoria real dessa sociedade de controle, somos levados a detectar o “princípio do sofrimento”, o “princípio do terror” e o “retorno do repressor”, que emergem de sociedades perpassadas pela herança ditatorial, como é o Brasil bolsonarista dos dias de hoje.
A forma pela qual existimos e resistimos no capitalismo de choque, em que nos encontramos submersos, é uma superfície para a análise de situações nas quais as memórias estão inseridas em experiências traumáticas. Nesse contexto, a memória das vítimas manifestou-se e ainda se manifesta através de uma política que reduz a dor ao espaço privado ao longo de uma produção de lembranças presas apenas nas subjetividades individuais. E, também, por via da publicidade dos traumas, que tem a meta de aperfeiçoar as relações sociais.
No Brasil essa contradição entre o indivíduo e o coletivo também se manifesta por via de uma memória objetiva, através de placas comemorativas, livros, filmes e algumas leis de reparação. O “término” do Estado de exceção e o “início de um regime democrático de direito” não significam absolutamente o aniquilamento das determinações fundamentais desse estado autoritário.
Nesse insuficiente limiar, na tentativa de lidar com imagens da herança autoritária, criou-se a Comissão da Verdade, em 18 de novembro de 2011, com sete membros nomeados pela então presidente Dilma Rousseff (PT). Insuficiente, por: a) o recorte histórico de análise dos fatos, de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988; b) o caráter não punitivo, apenas contemplativo da comissão; c) pela permanência da lei de anistia do final da década de 70.
As atrocidades dos militares no contexto da ditadura e a política do absurdo que a contempla, após mais de duas décadas, ainda são preservadas por uma política fenomênica que torna públicos os fatos, reconhece os torturados e, no entanto, limita-se a lançar sob o tapete da história qualquer sinal de punição. Não podemos deixar de observar que a potência minguada da Comissão da Verdade serviu apenas para acordar os monstros.

A memória das vítimas direta e dos ativistas individuais ou de movimentos sociais que lutam pelos direitos humanos, compreende que o período sombrio da ditadura se configurou como uma série de crimes contra a humanidade. E, portanto, deveriam ser investigados, julgados e punidos todos os envolvidos.
Sobre os envolvidos há também uma questão intrigante: a polêmica em torno da totalidade dos potencialmente culpados. Abre-se um amplo guarda-chuva da tortura: médicos, escrivães, empresários, veículos de imprensa, artistas, delatores etc. Com a ascensão do bolsonarismo aquilo que foi constituído como Comissão da Verdade e todos os envolvidos, em que pese a memória das vítimas, sofreu uma derrota histórica que até o momento, pelo andar da carruagem, é incalculável.
Ademais, na batalha pelo estabelecimento da verdade, o objetivo da memória das vítimas é elucidar as mortes e prisões, encontrar os restos mortais, revelar os culpados e requisitar a punição judicial dos torturadores. O sentimento de luto que atravessa décadas e o diálogo entre lembranças e tentativas de esquecimento é bem latente nessa memória. Para muitas subjetividades diretamente envolvidas, é praticamente impossível esquecer o ocorrido, como para os familiares dos mortos, desaparecidos e torturados.
Da mesma forma,também é constante a lembrança por parte daqueles que são próximos aos torturados. Pois a tortura não atinge apenas o indivíduo torturado, mas
atinge, de forma indireta, os amigos e familiares; e mais, ela não fica restrita tão somente a um sofrimento físico de outrora, mas se constitui como uma sequela psicológica permanente.O tempo presente conjuga-se como pretérito de indagações perturbadoras do sofrimento. A denúncia e a solicitação pela responsabilização judicial é uma opção acatada por esse tipo de memória.
Por sua vez, também temos a existência daqueles entre as vítimas que não suportam as lembranças e que optam pelo esquecimento solapado ao absoluto. Um caso emblemático em que o incômodo da lembrança foi levado ao extremo do esquecimento pode ser exemplificado com o suicídio de Frei Tito.
De modo inverso, a construção da memória dos militares teve como pressuposto o caráter vitorioso da sua política, embasada, acima de tudo, no aspecto de defesa da pátria dos supostos “terroristas” ligados aos comunistas internacionais. Essa memória foi patrocinada pela poder financeiro e pela inteligência ianque. No caso do nosso país, é singular o quanto o Exército brasileiro se relacionou de maneira tão efetiva com a política de Estado. E isso não somente no período de 1964 a 1985, mas desde o final do século 19. Com a derrubada da monarquia em novembro de 1889, criou-se no Brasil algo bem típico: a constituição dos militares como autores políticos do país.
Quando os brasileiros conceberam a embrionária República Velha como uma farsa, mais uma vez brotou dos quartéis o movimento que propunha impulsionar uma nova república. Os tenentistas, liderados por Carlos Prestes. E hoje, um pouco mais de três décadas após o “fim da ditadura”. Para o bem ou para o mal, até aqui a continuidade da presença militarista se faz ativamente presente na política. Atualmente,mais de cem militares ocupam cargos políticos no governo.
Não podemos esquecer que a história é uma construção humana sempre aberta e que tem seus rumos decididos em disputas constantes entre diferentes frações do poder, que colocam e recolocam seus rumos conforme suas vontades e metas.Assim, a batalha da memória perdida configurou-se como um degrau indispensável à escalada do subhumanismo bolsonarista e nos impeliu a uma derrota política.
Até o momento, a esquerda se presta a ocupar o lugar de uma defensiva política vergonhosa, apostando todas as suas fichas no desgaste do bolsonarismo até as próximas eleições. A luta de classes na história muitas vezes nos surpreende; o poder dos movimentos de massa, das rebeliões, da classe trabalhadora e dos estudantes pode contagiar a força política de reação com o espontaneísmo das lutas em grande velocidade.Nossa curiosidade, buscas e análises são colocadas em movimento pelo desejo de reafirmarmos a esperança política. Acreditamos que o impossível existe e que o futuro nos pertence.E que esse futuro é filho da luta.
Nessa reunião de família, as insurreições não parecem estar tão distantes da realidade social brasileira, diga-se de passagem, de um país tão importante na América Latina. América Latina que se encontra em ebulição insurrecional, seja no Chile, Equador,Colômbia, Bolívia, Haiti ou Honduras.Portanto, a derrota política engendrada com o (des)governo de Bolsonaro ainda pode ser revertida. Até lá, até a esquerda e os setores progressistas acordarem do sono dogmático constituído por recuos e descaminhos que substituíram a luta de classes por políticas públicas, contribuiremos.
No Brasil, a esquerda vestiu-se com os trajes da dialética do avesso. Isto é, por um lado, os conservadores tornaram-se “revolucionários”,e, por outro, os“revolucionários” se transformaram em conservadores/reformistas.
Nessa brecha histórica composta por recuos e descaminhos, Jair Bolsonaro e o seu clã ganharam espaço para reverenciar publicamente torturadores. Ao “epificar”torturadores, o bolsonarismo não só reatualiza aquilo para que Hannah Arendt chamava atenção: a banalização do mal. Mais que isso, ao reverenciar torturadores, reconhecendo-os como heróis, Bolsonaro extrapola a política da banalização do mal, sendo, pois, as declarações do atual presidente do Brasil formas da banalização da violência, formas de banalização da morte. Seja com a proposta da legalização das armas de fogo. Seja com declarações como: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. E tantas outras declarações similares.
O atual presidente do Brasil extrapola o limite da política, pelo menos no nível do discurso, entendida enquanto um projeto de autonomia e a realização de acordos em uma diversidade mediante o discurso saudável forjado pela dialética do reconhecimento.E é isso que torna a política diferente da guerra. A presença de um nível profundo de “exituspolitics” e relações de inimizade nas declarações de Jair Bolsonaro denotam uma forma de fazer política que extrapola o limite da própria política.
A escalada subhumanista
Tornou-se improdutivo esconder o retrovisor do passado, que não se cansa de lançar luz na história presente. Assim como parece não funcionar mais almejar o futuro com um vislumbre inocente e cortês, como fosse possível desligar a chave da matrix, apagar a memória de nosso “passado transversal”, marcado pelos horrores da ditadura, como se o que houve não fosse tão grave assim, ou como se nada tivesse ocorrido. Ou como se o que ocorreu no pretérito de pesadelos não pudesse transformar nosso presente num festival de horrores com cultos evangélicos em vigília constante rezando pela tortura em nome de Deus e com o espelho do AI-5 refletindo o nosso amanhã que se põe a cada dia.
Mais do que uma simples rememoração da ditadura militar brasileira, o subhumanismo bolsonarista revive o passado, transformando-o em “passado transversal”–como uma práxis efetivadora no presente ‒de sua fantasia de horror e tortura. E isso denota o indício que uma ditadura militar prescreve sobre uma democracia. E mais, na forma como se usa a “coisa pública”, como se fosse algo íntimo, privado, miliciano-familiar. O distanciamento de grande parcela da população do espaço público e a percepção de impunidade no cotidiano possibilitam que os crimes políticos não sejam julgados.
Cumpre questionar acerca do significado de nosso jovem passado comum olhar atento ao futuro, isto é, como se tornou uma possibilidade real que as mais de duas décadas dos anos de chumbo se ampliassem, num (des)governo rumo ao caos. O exército miliciano virtual bolsonarista, com sua aletheia-fake, inviabiliza que as pessoas reais possam receber a mensagem da barbárie com um mínimo de empatia, endossando a tese da história como uma narrativa dos vencedores, em oposição à narrativa dos oprimidos.Esse fato corriqueiro é um sintoma da patologia do presente.
As três formas de memória tipificam não apenas perspectivas diferentes, mas visões antagônicas e conflituosas. Ao se reportar ao curto período do governo Bolsonaro, a memória desponta aqui, necessariamente, com o seu Outro inverso. Isto é, a memória(dos militares e da conciliação) traz inserida em si mesma o seu negativo, a saber, o esquecimento e o silêncio. Proposital, consciente e direto,o negativo da memória vestido de perdão, silêncio e esquecimento se posta como um norteador e se difunde como um sujeito político.
No sentido forte do termo “sujeito”,entendido aqui como aquele que faz. O sujeito como remodelador, aquele que apaga fatos históricos criando novas narrativas sobre o ocorrido.Apaga o passado,incendeia museus e, paralelamente, desenha novos caminhos. Destrói memórias e constrói novos simulacros no imaginário cultural do povo a partir de narrativas que trazem à luz os grandes “consensos morais” e fazem mover a roda-vivada fábrica da morte subhumanista no tempo do agora.
Vivemos como se estivessem diariamente nos impelindo à naturalização do insuportável, eis a idiossincrasia do nosso tempo. Como pensou Walter Benjamin, a problemática da memória é configurada pelo esquecimento da dimensão ética. O narrador corre o risco de desaparecimento. Para nós há o pressentimento, no porvir próximo, de uma guerra civil em escalada neofacista.
Na batalha das ideias, notícias vão ao encontro do agora com a intenção de destruir criativamente os freios da barbárie, construindo o negacionismo para tornar permissiva a perversidade do mal. Com suas fábricas de esquecimento e com a repetição viciante da violência, na qual se fundamenta a cessação do tempo, conjugada à cessação da vida.
A pobreza proposital da experiência com o jovem passado brasileiro está umbilicalmente entrelaçada ao esquecimento, à ausência de memórias e ao silêncio que nos infligem obstáculos para reconhecer a esperança política, e, em última instância, inviabilizam o projeto de transformação social, pois sem memórias somos impedidos de refletir sobre um amanhã promissor.
O controle do passado através do domínio das narrativas e o controle dos fatos históricos são cruciais no cerne da estratégia política que simboliza a ontologia do ontem e lança dispositivos de poder. Isso é visível nos dias de hoje, com as corriqueiras ameaças de restauração de um novo AI-5. Seja lá o que for que eles queiram dizer comas ameaças, é inegável que o mundo político brasileiro hoje é o mais conturbado do Brasil pós-“queda” do regime ditatorial.
Obviamente, há uma explicação para isso. Primeiro, acontece no calor de uma crise econômica profunda. Segundo, e não menos importante, é o fato de que a “passagem da ditadura para o regime democrático” no Brasil teve uma particularidade sem tamanho, que a diferencia da de outros países que vivenciaram regimes ditatoriais. “A transição para a democracia” brasileira preservou personagens, partidos, estruturas, instituições que eram ativas e cumpriram um papel central na época ditatorial, resultando assim numa conciliação entre os inconciliáveis.
Os crimes cometidos na época da ditadura nunca foram julgados, punidos, ou sequer reconhecidos como crimes. Esse desacerto com o passado trouxe nos dias atuais a política neofascista para os espaços do presente. Hoje, o neofascismo dispõe de mais cartas na manga. Ele tem ligações estreitas com frações do aparelho jurídico-político, conchavos e espaços propícios para a propaganda em setores estratégicos da grande mídia, e até grupos organizados, movimentos de rua e base social.
Um golpe de Estado não se constrói do dia para a noite. Ele é gestado aos poucos. Com a construção de suportes políticos, financeiros, militares e para-militares (a Aliança pelo Brasil, o novo partido de Bolsonaro, é uma ilustração real do que estamos falando). O que até agora não o levou a usar a forma clássica de golpe, com tanques, bombas e a repressão militar nas ruas.Lamentavelmente, hoje, parece ser só uma questão de se perguntar: quando?
Virgínio Gouveia é doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com estadia (em andamento) no Instituto de Filosofia de Moscou – Rússia. virginiomgouveia@gmail.com
Referências ARENDT H. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso; 2008. BENJAMIN, Walter. O Narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. GOUVEIA, Virgínio e CAMÊLO, Antônio (Ensaio). O bolsonarismo é um subhumanismo. 2019, in https://www.alainet.org/pt/articulo/201196 (24/07/2019)