Trudeau, “progressismo” do século XXI
Charmoso e comunicativo, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, seduz sindicalistas e patrões. Advogando pela abertura econômica e cultural, ele alega encarnar a renovação do campo progressista e aparece como antítese de Donald Trump. Contudo, como seu homólogo norte-americano, ele faz parte de uma modificação das divisões políticas tradicionais
“Novo superman da política”, de acordo com o semanário Le Point (2 maio 2016); “homem do ano”, para a revista Courrier International (19 out. 2016); “face amável da América”, na opinião do jornal El País (27 nov. 2016); e “exemplo para o mundo”, aos olhos da revista The Economist (29 out. 2016). A imprensa está apaixonada por Justin Trudeau, líder do Partido Liberal do Canadá (PLC), que se tornou primeiro-ministro após vencer as eleições federais de outubro de 2015.
Jovem, elegante, com uma tatuagem tribal no bíceps esquerdo, o homem com 3,5 milhões de seguidores no Facebook tem sido descrito pela mídia norte-americana, conforme o site E! Online (20 out. 2015), como “uma gostosura com xarope de bordo, que daria um belo lanche”. Combinando o poder de sedução de um George Clooney com o distinto carisma de Barack Obama, Trudeau exibe ainda uma convivialidade tipicamente canadense, como seu pai, o bon-vivant Pierre Elliott Trudeau, primeiro-ministro entre 1968 e 1979, e depois entre 1980 e 1984. Ele posa com refugiados sírios no aeroporto de Toronto, destaca as “inestimáveis contribuições de nossa próspera comunidade muçulmana” em discurso numa mesquita de Ottawa, menciona sempre que pode suas convicções feministas e seu engajamento na causa indígena. Um primeiro-ministro cool, comprometido com a legalização da maconha e cujo rosto estampa as embalagens de seda para cigarro da marca Zig-Zag. Como Matteo Renzi e Emmanuel Macron, ele encarna, para seus admiradores, uma “esquerda moderna”, um progressismo do século XXI. Em suma, a antítese do antecessor conservador Stephen Harper, de Theresa May, no Reino Unido, ou do novo presidente norte-americano, Donald Trump.
Assim, enquanto uma onda xenófoba engole a Europa e os Estados Unidos, Trudeau não se cansa de proclamar seu amor ao multiculturalismo e à diversidade. Na mídia e nas redes sociais, muita gente se mostra deslumbrada com seu gabinete ministerial, que tem a mesma quantidade de homens e mulheres, quatro sikhs, dois indígenas, um muçulmano, um judeu… e 45% de políticos de carreira, 19% de administradores privados ou públicos, 13% de advogados.1 Muito orgulhoso de sua equipe, o chefe de governo apresentou seu ministro da Defesa, o sikh Harjit Sajjan, como um “exemplo da magnífica diversidade do Canadá”. Os observadores têm aderido a essa retórica, mas conhecem a trajetória desse ex-policial de Vancouver e agente da inteligência canadense que inventou uma máscara de gás especial para homens com barba, patenteada por ele mesmo em 1996. Durante a década de 2000, Sajjan trabalhou para o serviço secreto no Afeganistão – entre suas ações, entregou prisioneiros de guerra às autoridades afegãs, que os submeteram à tortura. Ele também ajudou os Estados Unidos em operações, fora de qualquer âmbito legal, de sequestro e transferência de prisioneiros.2 É possível usar turbante, barba, bigode, e ainda servir aos interesses do Pentágono…
Precariedade, um “fato da vida”
Além de estar comprometido com o multiculturalismo, Trudeau foi eleito por denunciar a austeridade, a desigualdade econômica, a devastação ambiental. Ele defende o que chama de “política positiva”, rompendo com a morosidade reinante. “Vencemos o medo com a esperança; o cinismo com trabalho duro; a política negativa com uma visão unificadora e positiva […]. Caminhos ensolarados, meus amigos, caminhos ensolarados: é isso que uma política positiva pode abrir”, lançou na noite de sua vitória. Seus projetos de investimento público em infraestrutura e ruptura com a austeridade colocaram-no à esquerda do Novo Partido Democrático (NDP), partido tradicional da classe trabalhadora, que ficou mais moderado após a morte de seu carismático líder Jack Layton em 2011, substituído então por um ex-membro do Partido Liberal do Quebec (PLQ), Thomas Mulcair. Assim, o PLC de Trudeau ganhou o apoio de inúmeros sindicalistas, que antes apoiavam o NDP.
“Há um sentimento de otimismo no movimento sindical”, declarou, em setembro de 2016, Hassan Yussuff, presidente da principal central sindical do país, o Congresso do Trabalho do Canadá, e membro da Unifor Canada.3 Pronunciada alguns dias após a resolução (temporária) do conflito entre o correio (Postes Canada) e o poderoso e combativo sindicato dos trabalhadores dos postais, a declaração revela mais as baixas expectativas da liderança sindical do que o compromisso de Trudeau com os funcionários. Para obter essa declaração de satisfação, o governo liberal apenas se comprometeu a permitir o desenvolvimento das negociações da convenção coletiva e a não obrigar eventuais grevistas a retornarem a seu posto – ao contrário do que fez Harper. Mas, enquanto Yussuff elogiava o primeiro-ministro, a Unifor Canada assinava com as “três grandes” do setor automobilístico (General Motors, Ford, Chrysler-Fiat) um novo acordo coletivo que, em troca de promessas vagas de investimento, estabeleceu concessões em termos de salários e pensões.
Profundamente ligados ao conceito de “competitividade progressista”, os principais líderes sindicais apoiam Trudeau, convencidos de que ele é o melhor inclusive para atrair investidores. “Com estabilidade econômica, fiscal, política e social, o Canadá é um país muito atraente para fazer negócio”, declarou recentemente o primeiro-ministro.4 Muitos militantes, porém, opõem-se à sua política. Em 25 de outubro de 2016, ele foi convidado para um fórum de jovens trabalhadores; na plateia, alguns criticavam seu apoio ao Acordo de Parceria Transpacífica (TPP) e depois o vaiaram quando ele declarou que a precariedade era um “fato da vida”.
Para ele, ser competitivo é, em primeiro lugar, comprometer-se com a promoção do TPP e do Acordo Econômico e Comercial Global (Ceta) entre a União Europeia e o Canadá, aprovado pelo Parlamento Europeu no dia 15 de fevereiro. Enquanto muitos líderes políticos e economistas têm se convertido a uma forma de protecionismo, ele se mantém um apologista do livre-comércio, com argumentos diretamente saídos da década de 1990: a liberdade de comércio seria capaz de produzir abertura e fraternidade entre os povos, explica incansavelmente o queridinho da The Economist.
Nunca hesitando em separar palavra e gesto, Trudeau posa de defensor dos direitos humanos, enquanto seu governo vende armas como nunca a diversas ditaduras. Classificado em 2014 como sexto maior exportador de armas para o Oriente Médio, o Canadá ocupa agora o segundo lugar, graças a contratos colossais com a Arábia Saudita. Essa melhoria dos “laços comerciais” com o regime wahabita, que o ministro das Relações Exteriores, Stéphane Dion, apresentou como uma maneira de exercer sobre ele uma influência benéfica, é resultado de uma mudança na legislação. Antes, as exportações de armas estavam condicionadas à organização de “amplas consultas” pelas autoridades federais a fim de avaliar as implicações em termos de segurança internacional e direitos humanos. Essas consultas não são mais necessárias.
Durante a Guerra Fria, Pierre Elliott Trudeau lançou uma diplomacia original, administrando certo equilíbrio com as duas potências – seu país, vizinho dos Estados Unidos, mantinha boas relações com Cuba e China –, construindo um Estado social forte e não hesitando em intervir na economia, por exemplo, para nacionalizar a produção de petróleo. Seu filho também se dedicou a uma aproximação com a China, eliminando as tensões que reinavam desde Harper, o qual, entre outras coisas, recusou-se a assistir aos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008. Em agosto de 2016, Trudeau foi recebido com honras na China, onde o bilionário Jack Ma, dono do site de vendas on-line Alibaba.com, celebrou-o como “o futuro do Canadá”. Três semanas após essa viagem, que gerou US$ 1,2 bilhão em contratos, o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, foi para Ottawa. Em uma coletiva de imprensa, os dois chefes de governo anunciaram a intenção de abrir negociações para um acordo de livre-comércio. Essa perspectiva empolgou as multinacionais canadenses de mineração, agronegócio e finanças, mas também a comunidade empresarial sino-canadense, grande financiadora do Partido Liberal.
Se essa aproximação com a China preocupa Trump num momento em que ele promete iniciar uma guerra comercial contra Pequim, o novo presidente dos Estados Unidos ainda encontra pontos de convergência com o governo canadense. Trudeau também aprova a exploração intensiva da areia betuminosa e o projeto de oleoduto Keystone XL, combatido por militantes ambientalistas e comunidades indígenas. Ele também se vangloria de sua amizade com o presidente conservador argentino Mauricio Macri, cujo pai fazia negócios com Trump na década de 1980.
Além disso, apesar de suas promessas de campanha, Trudeau não rompeu com a política pró-Israel, mantida por Harper durante uma década. Na verdade, reforçou-a em fevereiro de 2016, alinhando-se a uma moção dos conservadores que condenava qualquer promoção do movimento Boicote-Desinvestimento-Sanções (BDS), alegando que “a demonização e a deslegitimação” do Estado de Israel reforçariam o antissemitismo. Em agosto, uma professora de Mississauga (Ontário) foi suspensa de suas funções por ter se manifestado, em uma assembleia, em favor dos direitos dos palestinos.
Trudeau, porém, mostra-se preocupado com a “colonização”, especialmente no Canadá: “Sempre marginalizamos [os povos indígenas], tivemos atitudes coloniais, atitudes destrutivas, atitudes assimilacionistas que ainda causam problemas a uma grande parte das pessoas que vivem no Canadá e são indígenas”, afirmou em um encontro com estudantes da Universidade de Nova York, em abril de 2016. Embora essa declaração contraste com a negação da era Harper, ela também não deixa de recorrer a uma formulação ambígua. Porque os indígenas não são “pessoas que vivem no Canadá” ou “minorias” (como os judeus ou os coreanos): desde os primeiros tratados com os colonizadores europeus no século XVII, eles são reconhecidos como “nações”, que como tais discutem com o Estado canadense. Da mesma forma, depois de aborrecer muitos francófonos no feriado nacional, em 1º de julho, apresentando o Canadá como “uma só nação”, o primeiro-ministro teve de reconhecer que o povo do Quebec constitui uma nação, de acordo com a resolução aprovada na Câmara dos Comuns em 2006.
Semáforo aberto para os oleodutos
Para além dessa questão de vocabulário – que contradiz a promessa de estabelecer uma “relação renovada de nação para nação” com os indígenas –, Trudeau importa-se tão pouco quanto Harper com o destino dos indígenas. Poucos dias antes das eleições, em outubro de 2015, durante um programa transmitido pela Rede de Televisão dos Povos Indígenas, ele afirmou que as comunidades indígenas deveriam ter poder de veto sobre projetos de desenvolvimento de mineração que passem por suas terras. Um compromisso consistente com a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas (2007), a qual dispõe que “os Estados consultem os povos indígenas implicados […] a fim de obter seu consentimento, livre e informado, antes da aprovação de qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos”.
No entanto, ele acabou liberando projetos de oleodutos e de prospecção sísmica nefastos ao meio ambiente e combatidos tanto pela nação Tsleil-Waututh, dos arredores de Vancouver (Colúmbia Britânica), como pelos inuítes de Clyde River (Nunavut). Para justificar a virada de casaca, o ministro dos Recursos Naturais, Jim Carr, explicou, em uma pirueta de extraordinária audácia, que o governo estava tentando desenvolver uma “versão canadense” da Declaração das Nações Unidas, que nem Harper nem Trudeau assinaram…
É verdade, porém, que o primeiro-ministro canadense é um dos poucos líderes a defender os migrantes, os direitos das minorias, a abertura. Observando Trump, Vladimir Putin, Viktor Orbán (Hungria), Narendra Modi (Índia) e Theresa May, seus cidadãos têm o direito de respirar aliviados. Mas talvez seja justamente aí que more o perigo. O novo “progressismo” de Trudeau faz parte da transformação das divisões políticas. O clássico confronto entre esquerda, direita e centro foi substituído por uma nova oposição, entre os defensores de um nacionalismo econômico e identitário, e os defensores da globalização econômica e cultural. Trump e Trudeau são dois lados da mesma moeda. Não seria hora de trocar de moeda?
*Jordy Cummings é doutorando e professor de Ciência Política da Universidade de York, em Toronto (Canadá).
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 116 – março de 2017}