Trump, o retorno
Se é verdade que os argumentos econômicos parecem convincentes para explicar ao menos parte da vitória de Trump, eles também são insuficientes
A crônica política mundo afora tem proporcionado momentos surpreendentes. A eleição ocorrida em 5 de novembro de 2024 nos Estados Unidos foi um evento dessa natureza. A vitória de Donald Trump em si não foi exatamente um raio em céu azul, uma vez que institutos de pesquisa, a partir da segunda quinzena de outubro, indicavam empate ou até mesmo uma ligeira liderança do republicano contra Kamala Harris. O que impressiona é o roteiro estabelecido nos últimos anos.
Para não voltar muito ao passado, vale começar pelo 6 de janeiro de 2021, quando apoiadores de Trump invadiram o Capitólio em uma tentativa de impedir a certificação do então vitorioso Joe Biden. Uma das democracias mais longevas e regulares do mundo sofreu uma tentativa de golpe. A intentona logrou suspender as sessões do Congresso, a evacuação do prédio, incluindo o vice-presidente Mike Pence, cinco mortos e dezenas de feridos. O plano de subverter o resultado das urnas falhou. Trump sofreu um segundo impeachment na Câmara dos Representantes, sendo absolvido pelo Senado.
O republicano foi acusado judicialmente de conspiração por tentar alterar o resultado da eleição. Essa não é a única acusação que pesa contra o novo presidente eleito. Em maio, um júri popular o condenou por falsificar documentos empresariais para encobrir um escândalo sexual. Ele também é acusado de reter documentos oficiais da Presidência em sua residência na Flórida, e a Trump Organization enfrenta acusações de fraude financeira.
Essa breve digressão serve para lançar luz sobre esse “comeback movement” de um ator político aparentemente derrotado. A pergunta inevitável é: como foi possível, após contínuos descalabros, que Trump se tornasse viável jurídica e politicamente a ponto de vencer a eleição? Diferentemente, por exemplo, da Constituição Brasileira, que, por meio do Artigo 14, abriu espaço para leis que regulam a participação de condenados, como a Lei da Ficha Limpa, não existe algo equivalente nos Estados Unidos. Restrições a condenados, quando ocorrem, são estabelecidas no nível estadual.
Sem que as barreiras legais fossem impeditivas, Trump obteve uma vitória eleitoral inequívoca. O republicano superou os 270 delegados necessários para vencer no Colégio Eleitoral. Nos swing states, ele levou a melhor na Pensilvânia, Geórgia, Michigan, Carolina do Norte e Wisconsin; e mantém a liderança em Nevada e Arizona, estados que costumam demorar mais para concluir a apuração.
A Pensilvânia foi considerada o estado-chave das eleições. Não por outra razão, Trump e Harris terminaram suas campanhas em comícios pelo estado. Ambos os candidatos estiveram em Pittsburgh na segunda-feira à noite antes do pleito. Presente no comício de Kamala, pude observar um sentimento ambíguo: o clima era de festa, com a participação de artistas como Katy Perry, embora o otimismo não fosse a tônica. Com quem pude conversar sobre a expectativa para a eleição, as respostas foram hesitantes – compreensível diante da incerteza do resultado.
Vale destacar que Trump venceu tanto no Colégio Eleitoral como no voto popular, diferentemente de outras vitórias republicanas. Em 2000, Al Gore teve 500 mil votos a mais que George W. Bush e, em 2016, Hillary Clinton recebeu aproximadamente 2,9 milhões de votos a mais que Trump. Os republicanos também ultrapassaram as 51 cadeiras necessárias para controlar o Senado.
Como entender a vitória de Trump? Essa pergunta é, sem dúvida, complexa e difícil de responder. Apenas com o tempo e diversas pesquisas será possível ter uma compreensão mais segura. No entanto, vários analistas têm repetido a frase de James Carville, estrategista de Bill Clinton em 1992: “é a economia” ou, em uma versão atualizada, “é a inflação, estúpido”.
David Goldman, da CNN, argumenta que, embora alguns indicadores macroeconômicos sejam positivos, como o baixo desemprego (4,1%) e crescimento constante (2,8% no 3º trimestre, indicando crescimento sustentável), a percepção da população não reflete esses números. Goldman destaca especialmente o aumento dos preços das casas por 15 meses consecutivos e as hipotecas persistentemente altas, atualmente pouco abaixo dos 7%. A situação dos inquilinos também é difícil, pois metade deles gasta mais de 30% da renda com aluguel. A inflação, por sua vez, é vista por Goldman como vilã, pois, embora esteja sob controle, os preços não caíram, permanecendo em média 20% mais altos do que no início do governo Biden.
Um estudo realizado pelos economistas Ryan Cummings, Ben Harris e Neale Mahoney, intitulado “The Paradox between Macroeconomics and Household Sentiments” [O paradoxo entre macroeconomia e o sentimento das famílias], mostra que há um descompasso entre o sentimento do consumidor e os fundamentos econômicos que surgiram após a pandemia. Os autores afirmam, com base em surveys, que a percepção individual sobre a economia é negativa, explicada por três fatores: o impacto da inflação; o partidarismo – pois a percepção econômica dos eleitores republicanos é muito pior do que entre democratas; e outros aspectos que os autores admitem não saber explicar.
Se é verdade que esses argumentos econômicos parecem convincentes para explicar ao menos parte da vitória de Trump, eles também são insuficientes. Vejamos os dados demográficos comparando as eleições de 2020 e 2024.
As divisões por raça e gênero são evidentes. Homens brancos continuaram a votar em Trump. Mulheres brancas dividiram o voto. Mulheres negras votam esmagadoramente nos democratas, e a maioria dos homens negros também. O que chama atenção é a mudança no voto dos homens latinos, que votaram majoritariamente nos democratas em 2020 e em Trump em 2024. Como explicar essas divisões e, em especial, a mudança no voto dos homens latinos?
Observando a distribuição por idade, vemos uma migração significativa de votos jovens dos democratas para os republicanos. A diferença, que era de 14 pontos em 2020, caiu para 7 pontos em 2024. Houve uma mudança a favor do republicano também na faixa etária entre 45-64 anos. As poucas linhas deste ensaio não permitem muita reflexão sobre o papel desempenhado por temas como imigração, direitos reprodutivos e o massacre em Gaza e no Líbano. Todas essas questões tiveram impacto e explicam, em parte, a dinâmica dos votos.
Sem dúvida, há muito a ser investigado. Resta compreender outros aspectos, como a resiliência da extrema-direita, sua capacidade de articulação e comunicação, além do potencial de assimilação de seu discurso por amplos segmentos da sociedade.
Muitas perguntas ficam no ar. Por exemplo, qual será o impacto da vitória de Trump para a extrema-direita ao redor do mundo, a começar pelo Brasil? Outro aspecto fundamental é refletir sobre os riscos que a democracia enfrentará nesse segundo mandato. Durante a campanha, Trump afirmou que usaria as Forças Armadas para reprimir protestos, utilizaria o Departamento de Justiça para perseguir adversários e até mencionou, em entrevista à Fox News em dezembro de 2023, que não abusaria do poder, “exceto no primeiro dia”. A democracia nos Estados Unidos resistirá aos seus intentos?
Vinicius Moraes da Cunha é doutorando em Administração Pública e Governo (EAESP/FGV) e pesquisador visitante do Center for Latin American Studies da Universidade de Pittsburgh.