Último salto rumo à seleção humana
Recentemente, assistiu-se ao surgimento de tecnologias genéticas complexas, cujos poderes fascinantes e temíveis foram popularizados pelos meios de comunicação: o CRISPR-Cas9, “tesoura genética”, e o gene drive, ou “forçagem genética”. Um primeiro teste chinês que usou a tecnologia CRISPR em 2015 para reparar embriões humanos anormais acelerou a autorização de projetos de pesquisa em vários outros países, entre os quais Reino Unido e Estados Unidos
O termo “eugenia” foi inventado no final do século XIX por Francis Galton, antropólogo primo de Charles Darwin, para definir a “ciência da melhora das raças”. O infanticídio, a gestão dos casamentos, a esterilização, o extermínio e o aborto correm o risco de em breve aparecerem como meios muito medíocres para melhorar a qualidade humana, tendo em vista as contribuições da genética molecular, aliada à informática e à biologia celular.
Recentemente, assistiu-se ao surgimento de tecnologias genéticas complexas, cujos poderes fascinantes e temíveis foram popularizados pelos meios de comunicação: o CRISPR-Cas9, “tesoura genética”, e o gene drive, ou “forçagem genética”. Um primeiro teste chinês que usou a tecnologia CRISPR em 2015 para reparar embriões humanos anormais acelerou a autorização de projetos de pesquisa em vários outros países, entre os quais Reino Unido e Estados Unidos. A perspectiva eugênica é amplamente mencionada, como se já fosse certo que essa “edição do genoma” possa ser perfeitamente controlada, condição imperativamente prévia para qualquer aplicação humana. No entanto, um especialista explica: “As técnicas de edição provocam danos colaterais. Outras porções do genoma além daquelas que se têm em vista são assim modificadas, sem que se compreenda por que nem que se possa prever sempre a existência delas. [Além disso], os vetores utilizados, quer se trate de bactérias, partículas ou mesmo uma microinjeção, são destrutivos como um trator que tentasse fazer um bordado em sua cozinha: o estresse induzido deixa traços descontrolados, sob a forma de mutações e epimutações…”.1 Outras raras críticas moderam os anúncios de uma melhora próxima do genoma humano.
No outono de 2016 [no Hemisfério Norte], surgiu um resultado científico que nos parece igualmente importante, mas que foi amplamente ignorado. Tal artigo2 demonstra que é possível produzir gametas em grande número graças à reorientação funcional de células coletadas na cauda de um rato, ou seja, produzir embriões em quantidade ilimitada. Tudo começou em 2005, quando o japonês Yamanaka Shinia descobriu que células normalmente encarregadas pelo organismo de uma função específica (células da pele, do sangue…) podiam ser “recicladas”, sendo transformadas em células capazes de cumprir uma função diferente (cardíaca, renal, nervosa etc.). O ácido desoxirribonucleico (DNA), que é o mesmo em todas as células do indivíduo, pode se ativar de forma diferente ao longo de toda a vida para mobilizar competências especializadas, as quais são apagadas por não serem necessárias no órgão onde a célula se encontra. Para isso, é preciso fazer que essas células diferenciadas se tornem células de potencial múltiplo, ou células pluripotentes, antes de rediferenciá-las na função desejada. Essa descoberta, que valeu o Prêmio Nobel de Medicina para Yamanaka em 2012, mostra que as células somáticas (células que constituem o corpo) podem adquirir competências comparáveis àquelas das células embrionárias para recompor órgãos com problemas, e já dá origem a vários testes terapêuticos.
Rapidamente, colocou-se a questão da possibilidade de transformar essas mesmas células somáticas em células “reprodutoras”, ou seja, em gametas, hipótese condenada a priori pelo antigo postulado que separa absolutamente o soma (linhagem de todas as células para o funcionamento do corpo) e o germe (linhagem dos gametas para a procriação). Em alguns anos, uma série de trabalhos desenvolvidos com ratos marcou avanços importantes na transformação in vitro de células somáticas em células reprodutoras, mas sem chegar à produção de recém-nascidos, até a última publicação japonesa, que demonstra a viabilidade dessa estratégia. Tal passarela induzida entre o soma e o germe constitui uma conquista considerável para o conhecimento fundamental e a pesquisa, mas traz também promessas de intervenção no animal ou no homem. Os cientistas envolvidos nessa produção de gametas se mostram pouco dispostos a falar a respeito de eventuais aplicações humanas, referindo-se apenas a possíveis aberturas para a conservação das espécies animais ameaçadas e à perspectiva de evitar a esterilidade de pessoas que não produzem gametas. Uma das raras publicações em francês que ecoaram o artigo dos japoneses faz referência a aplicações humanas “em dez a vinte anos”, que poderiam ter a ver com a procriação de pessoas estéreis ou homossexuais, ou, ainda, com a autoprocriação.3
A importante questão ética está ausente: quais serão as consequências eugênicas se chegarmos a produzir gametas humanos em abundância? Parece que a seleção dos humanos no ovo que poderia decorrer disso escapa aos jornalistas, assim como aos políticos eleitos, às comissões de ética e mesmo aos defensores do transumanismo. Todos vislumbram a modificação da espécie, para condená-la ou para desejá-la, apenas pela modificação ativa do genoma embrionário – daí a mobilização midiática e ética em torno das técnicas de edição do genoma.
No entanto, uma “simples” seleção, rigorosa e estendida, teria condições de conduzir à modelagem da espécie, sem ser acompanhada dos riscos inerentes às manipulações para modificar o genoma, riscos que acabam de ser mostrados pelo CRISPR.4 Foi pela seleção que o homem obteve animais e plantas conforme suas necessidades. E, se muitas gerações foram necessárias para uma “melhora” realizada empiricamente com base em desempenhos de adultos vivos, a ferramenta genética hoje disponível, assim como a profusão previsível de alvos embrionários, permitiria a modificação da espécie humana em algumas gerações.
Atualmente, o diagnóstico pré-implantatório (DPI) permite uma triagem entre alguns embriões originários de uma fertilização in vitro (FIV) a fim de conservar um (ou mais) que não possui um caráter genético temido e transportá-lo para o útero da futura mãe. Essa prática é limitada por considerações éticas (sobretudo na França), mas principalmente pelos sofrimentos causados pelos atos médicos necessários para a FIV, por um lado, e, por outro, pelo pequeno número de embriões disponíveis. Desde 1994, a lei francesa de bioética reservou o DPI para os casos de casais “suscetíveis de transmitir uma doença particularmente grave e incurável no momento do diagnóstico”. Na realidade, as comissões locais de ética ampliaram progressivamente as indicações médicas, desde as doenças monogênicas (fibrose cística, miopatia), as quais permitem também a interrupção da gravidez, até as doenças menos graves, como a hemofilia, ou mesmo situações de risco genético (em particular os riscos de câncer) de determinismo complexo e largamente imprevisível, pelo fato de envolverem vários genes e fatores ambientais. É sobretudo o temor motivado pela transmissão de uma doença grave que leva atualmente os casais a recorrer à FIV-DPI: pouca gente aceitaria esses constrangimentos médicos para escolher o sexo de uma criança, como é possível fazer nos Estados Unidos, ou para evitar seu estrabismo, como já aconteceu no Reino Unido. É preciso imaginar a agitação que se seguiria se a realização da FIV não impusesse atos médicos dolorosos para as mulheres (a não ser uma remoção de tecido cutâneo) e se ela permitisse simultaneamente a eliminação de vários traços genéticos considerados indesejados, ou mesmo a seleção de traços desejados. Há todas as razões para crer que o que foi possível com os ratos o será em nossa espécie, e o desafio imediato da pesquisa vai ser otimizar as condições experimentais a fim de tornar possível a aplicação biomédica da fabricação dos gametas – de início, aumentar o rendimento celular, que atualmente está em torno de um óvulo obtido com mil células de pele, uma relação muito baixa, porém clássica nas experiências pioneiras. Assim, se há vinte anos foram necessárias inúmeras células para clonar a primeira ovelha Dolly, esse desempenho foi depois reproduzido em dezenas de milhares de exemplares, em numerosas espécies. Em seguida, e o mais importante, verificar que as reconversões impostas às células e as manipulações necessárias não possuem efeitos que possam se manifestar na saúde da criança que vai nascer.
Lembremos que, se todas as células manipuladas de um indivíduo (simples células de pele) possuem o mesmo genoma, os gametas que delas se originariam são todos diferentes por terem sofrido os mecanismos da meiose (divisão celular): os cromossomos provenientes delas são distribuídos aleatoriamente em cada gameta, se bem que seja impossível que a mesma composição se encontre em dois óvulos ou em dois espermatozoides vindos da mesma pessoa. Assim, os embriões “falsos gêmeos” que seriam abundantes constituiriam uma população heterogênea propícia a uma abordagem seletiva. A ferramenta informática detecta situações cada vez mais numerosas, em que a descrição do DNA está correlacionada com probabilidades: constata-se que tal configuração de um gene ou de um conjunto de genes corresponde mais ou menos frequentemente a tal característica da personalidade, sem que seja conhecida a causalidade biológica entre esses elementos. É nesse campo que o DPI pode encontrar desenvolvimentos sem limites, contanto que os embriões testados sejam abundantes.
Pode-se imaginar que, se uma metodologia eficaz, indolor e segura fosse proposta para escolher uma criança entre todas aquelas que poderiam ser possíveis, o afluxo de casais iria saturar os serviços bioclínicos. Estando os pacientes dispensados dos constrangimentos atuais (estimulações hormonais, exames de sangue, ecografias, punções ovarianas), uma verdadeira peneira dos genomas embrionários se tornaria possível, a fim de comparar cada aspecto ao do “genoma normal” – o qual não existe naturalmente, já que todo indivíduo é portador de vários genes potencialmente patológicos –, e os critérios escolhidos deveriam largamente convergir para um padrão médico ou social. Essa nova seleção difere da antiga pelo fato de ser solicitada pelos futuros pais em vez de ser imposta. Mas esses critérios de escolha podem ser comuns a todos os casais, como observa o Conselho de Estado ao notar que uma certa eugenia pode resultar da convergência de decisões individuais. A economia da saúde se beneficiaria da redução esperada da frequência de doenças graves pela pré-seleção dos nascimentos, mas a apreciação estatística de predisposições genéticas de determinismo complexo poderia levar a desilusões, sobretudo individuais. Nesse processo de normalidade produzida visando ao “melhor” do patrimônio biológico da humanidade, as diferenças ou desvios em relação ao padrão, aí incluídas a norma comportamental e as doenças mentais, deveriam se mostrar intoleráveis. Os excessos autoritários em nome do bem coletivo não estão excluídos, enquanto o nivelamento “pelo alto” dos genomas poderia nos afastar, em algumas gerações, do Homo sapiens, segundo os desejos dos transumanistas e com o risco de uma redução drástica.
Todas as etapas para a seleção humana são agora realizadas ou estão em via de realização:
• dispor de óvulos em grande número fora do corpo feminino graças à reconversão de células somáticas (é o que acaba de se mostrar viável);
• saber fecundá-los, cultivar por alguns dias os embriões e separar duas células de cada um (é o que fazem já a FIV e o DPI);
• comparar o genoma dessas células com um genoma “normal” graças a algoritmos (o sequenciamento do genoma inteiro está prometido a curto prazo por 1.000 euros);
• identificar os genomas indesejados e eliminar esses embriões com o “consentimento esclarecido” dos genitores;
• transplantar para o útero o “melhor” embrião e conservar (criopreservação) os outros embriões aceitáveis para usos posteriores (nova chance de gravidez, doação para um outro casal ou para pesquisa).
O conceito de eugenia é hoje alvo de duas caricaturas opostas: as esterilizações obrigatórias do primeiro terço do século XX e sobretudo os crimes do período nazista provocaram uma “repulsa democrática” que reduziu a eugenia a uma política autoritária e negou assim o caráter potencialmente eugênico de qualquer prática voluntária. Além disso, a exigência de proteção de toda vida humana, feita principalmente pela Igreja Católica, leva a qualificar de eugenia todo ato que elimine um embrião ou um feto. Assim se encontra negligenciada uma característica essencial da eugenia: seu potencial de modificação da espécie. Esse é o potencial que poderia alimentar a triagem embrionária, sem medida comum com o aborto seletivo após o diagnóstico pré-natal, o qual não pode avaliar mais que um feto por ano e somente ao preço de sofrimentos morais e físicos. Como resoluções éticas ou legislativas seriam capazes de se opor à reivindicação de procriar crianças “de melhor qualidade” a partir do momento em que essa proposta for feita?
Ainda assim, é com indiferença que se prepara a seleção dos humanos nas provetas dos biogeneticistas.
Agir sobre o genoma
Como reconhecer uma sequência específica na vastidão das moléculas de DNA? Sua cadeia dupla helicoidal apresenta uma estrutura de zíper cujos dentes, em vez de serem todos idênticos, seriam de quatro tipos: os quatro nucleotídeos. Sua sucessão ao longo das cadeias forma a mensagem genética, aquela que transmite a informação de uma geração para a seguinte. Um genoma humano contém cerca de 3 bilhões de nucleotídeos.1 O número de combinações possíveis é tão alto que basta reconhecer uma sequência de cerca de vinte nucleotídeos para identificar um lócus (ler o artigo na pág. 30) único num genoma. Para fazer isso, os pesquisadores utilizam ferramentas moleculares chamadas nucleases, que reconhecem a sequência buscada e cortam as duas cadeias do DNA no local exato.
Esse modo de operação tornou-se possível há mais de trinta anos com a descoberta das meganucleases das leveduras e depois com a construção de nucleases artificiais chamadas “dedo de zinco”, em meados dos anos 1990, e daquelas derivadas de ativadores bacterianos em 2010. O desenvolvimento há alguns anos das nucleases bacterianas “Cas”, cujo reconhecimento das sequências de nucleotídeos é guiado por um pequeno RNA complementar a uma cadeia de DNA, facilita grandemente a engenharia genética, a ponto de os jornalistas compararem com frequência esse sistema, hoje conhecido pelo nome de CRISPR-Cas, a um canivete suíço. CRISPR é o acrônimo de Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, uma perífrase enigmática cujo equivalente francês – courtes répétitions palindromiques groupées et régulièrement intercalées [curtas repetições palindrômicas agrupadas e regularmente intercaladas] – talvez evoque mais as experiências literárias de Georges Perec que a genética molecular.
Essas nucleases são injetadas nas células vivas ou, o mais comum, sintetizadas por estas últimas após lhes terem fornecido de maneira transitória os genes correspondentes. Quando a molécula é dividida no local pesquisado, pode-se escolher o tipo de reparação que se deseja em função do objetivo almejado – por exemplo, tornar inativo um gene deletério, deixando a religação se fazer sem guia. Ou, ao contrário, reativar um gene defeituoso, fornecendo à célula um segmento de DNA que carregue uma boa sequência. Ou ainda modificar deliberadamente o funcionamento ou o produto deste ou daquele gene, fornecendo-lhe segmentos de DNA propositadamente construídos. A escolha é ilimitada. Antes de utilizar as células geneticamente modificadas, procura-se ter certeza, pelo ressequenciamento integral do genoma (ou dos processos derivados), de que a modificação está bem presente e que qualquer outra alteração acidental do genoma não pode ser detectada.
1 Na realidade, o dobro, pois a grande maioria de nossas células somáticas possui dois jogos de cromossomos. Somente os gametas possuem apenas um.
*Jacques Testart, biólogo, é diretor honorário de pesquisa do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm), França.