Um antifascista no divã: dois anos sem Contardo Calligaris.
No próximo 30 de março completa-se mais um ano que Contardo Calligaris nos deixou, todavia seu legado é mais vivo do que nunca. Suas palestras, falas, livros, artigos, histórias, testemunhos rememoram sua personalidade única e recolocam no divã a sociedade
“O sentido da vida é a vida concreta”. Essa frase, repetida e ouvidas muitas vezes, foi uma das sínteses mais fortes do renomado psicanalista, dramaturgo e cronista italiano. Nascido em 1948 em Milão, Contardo Luigi Calligaris vivenciou um dos períodos mais difíceis de sua terra natal, envolta nos resquícios fascistas de Mussolini, que muito influenciou em sua personalidade e modo de enxergar as diferentes culturas. Seu pai, um médico apaixonado pelo que fazia, certamente transmitiu a sensibilidade para com as mazelas humanas, além do próprio interesse em ouvir o próximo, sem deixar que isso se transformasse numa mera demagogia. Aliás, uma das marcas mais nítidas do escritor e psicanalista está em desvelar as hipocrisias do mundo através dos seus livros, das entrevistas em diversos meios de comunicação, das colunas semanais na Folha de São Paulo e, não menos importante, em seu divã.
Falando em suas colunas semanais, Contardo levava quem lia seus textos ao seu consultório poético através das provocações e análises do cotidiano em geral. Uma das indagações recorrentes em nossos círculos, nas mídias, recai sobre a dificuldade em enxergar o outro como a si mesmo, ou melhor, como um sujeito provido de singularidade e que por direito deve ser respeitado em todos os âmbitos da vida (é uma “pequena” utopia, reconheço, mas devemos debater até a exaustão, vai que cola !?) Pois bem, o autor repetia isso de tantos modos que sempre nascia algo novo e genuíno de suas idéias.
Em um de seus artigos na famosa “Quinta-Coluna”, intitulado “Sentimentos mais ou menos Natalinos” (23.12.2004), Contardo trouxe refletiu (ou pôs no divã) o espírito natalino, ao dizer que “reconhecer que todos os outros são nossos semelhantes, por diferentes que sejam suas condições de vida, não deveria custar esforço nenhum. É um pacto fundamental de nossa cultura: pressupomos a humanidade comum de todos, não obstante a diversidade”. Esse pacto, complemento, está ligado ao reconhecimento da humanidade no próximo, mas não garante em nada que haja um desejo de reconhecê-lo como um cidadão, portador de direitos que devem ser resguardados e providos pelo Estado. Por isso é muito fácil sentir compaixão, fazer doações ou prover algum auxílio em épocas de festa, como o Natal ou Páscoa, em que constantemente somos “obrigados” à generosidade; seria interessante que esses mesmos desejos fossem aflorados em épocas diversas, ou mesmo postos em prática em situações de injustiça independente do mês corrente do ano. Todavia continua Contardo, “sem o amparo do sentimento da humanidade comum, não há convivência possível entre as diferenças. Apenas a promessa de um extermínio recíproco”, que na prática traduz o desejo de criarmos um ideal de humanidade para mascarar nosso desejo reprimido de autodestruição.
A coragem em elaborar esse texto e essas reflexões me encantou.
A posição antifascista foi herdada certamente da experiência singular de sua família, vivenciada durante os anos de opressão na Itália. Conta o autor que seu pai sempre foi muito discreto ao falar de sua relação com seu passado na resistência a Segunda Guerra Mundial, sendo a maioria das informações adquiridas por incidentes ou fragmentos isolados. Em sua obra última obra póstuma, “O grupo e o mal: Estudo sobre a perversão social” (Editora Fosfóro, 2022), Calligaris revela algumas informações de seu passado, que só foram obtidas com seu irmão após, como prefeito de bairro em Milão, ter inaugurado uma placa em comemoração à memória dos mortos na Resistência, com a presença de seu pai, que encontrou diversos antigos companheiros de luta. “Só então ele [meu irmão] fez as contas e descobriu que era provável que tivesse passado o seu segundo ano de vida agarrado às costas do seu genitor, aos trancos e barrancos pelas montanhas da região da Grigna. Com minha mãe junto, é claro”. Isso explica em sua gênese a rígida posição anti-autoritária desde sempre, que com o passar do tempo à luz da psicanálise e da teoria do conhecimento constatou que a maldade instaurada pelo regime é a redução e alienação da própria singularidade do sujeito, da própria vida concreta. A partir daí nos perguntamos “qual o sentido disso tudo?”, ou “qual o sentido de vivermos isso?”, até chegar na célebre “qual o sentido da vida?”.
“Sentido” por diversas vezes foi a palavra mais usada para indagar Contardo sobre a vida, e talvez a mais usada como resposta. “A questão do sentido da vida é simples. O sentido da vida é a própria vida concreta” (Fronteira do Pensamento, 2019). Por suas palavras podemos concluir que não é a idade o determinante do sentido da vida, nem um ideal de felicidade exigido a todo momento pela pós modernidade, através das redes sociais, dos círculos de amizade etc., mas por um propósito da própria pessoa em assumir todas as circunstâncias da vida, suas dores e desafios, e delas construir um significado único, individual, próprio. Ou seja, o sentido da vida é a vida em si, a oportunidade em experimentá-la plenamente.
No próximo 30 de março completa-se mais um ano que Contardo Calligaris nos deixou, todavia seu legado é mais vivo do que nunca. Suas palestras, falas, livros, artigos, histórias, testemunhos rememoram sua personalidade única e recolocam no divã a sociedade. Sem muitas pretensões, seu diário de chegada ao Brasil se tornou uma referência para sociólogos, psicanalistas, historiadores e filósofos. “Hello Brasil” (Editora Fósforo, 2021), nas palavras da historiadora Lilia Schwartz “é um livro sem prazo de validade, escritor por esse grande intérprete e interpelador do nosso país”, que escolheu para si como casa, mesmo se considerando um cidadão do mundo. Contardo escolheu o Brasil e o analisou, mas certamente o Brasil o escolheu para ser seu analista e compartilhar suas crises existenciais.
Diante da proximidade da morte suas últimas palavras, transcritas por seu filho Max, foram: “espero estar à altura”. Sim, Contardo, você esteve não só à altura desse momento, mas viveu sua vida de maneira interessante, como sempre almejou.
Railson da Silva Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF)