Um intelectual antifascista
A atualidade da reflexão benjaminiana parece inegável hoje, quando o mundo passa por uma nova rodada de ascensão da extrema direita
Na noite do dia 26 de setembro de 1940, Walter Benjamin fez seu derradeiro gesto político e intelectual: sob ameaça da perseguição nazista, da qual buscava escapar, o filósofo ingeriu uma dose fatal de morfina, em Port-Bou (Catalunha). Para Benjamin, num momento em que o beco parecia sem saída, o suicídio apresentou-se como o último ato de resistência à apropriação fascista.
Marginal e outsider, Benjamin tornou-se, depois de morto, um ícone, um “monumento de cultura”, para utilizar um de seus termos consagrados, não sem lembrar que, como ele havia escrito nas “teses sobre o conceito de história”, poucos meses antes do suicídio, todo “monumento de cultura” carrega também um “monumento de barbárie”. Pois bem: é nessa intersecção entre cultura e barbárie que o pensamento de Benjamin pode ser compreendido hoje, se quisermos livrá-lo do “conformismo” que busca se apoderar de seu legado. Pois, se há um Benjamin que ainda nos fala, este é o Benjamin que nos advertira que o “progresso”, longe de aplacar a fúria da barbárie, proporciona a ela novas possibilidades, mesmo quando a história parece estar a nosso favor. O fascismo estava – e está – aí para mostrar.
Foi o fascismo, portanto, o principal adversário político de Benjamin, o que salienta o caráter algo espantoso, ainda que compreensível, de sua ausência no rol das principais referências utilizadas pela esquerda para a apreensão crítica do atual avanço mundial da extrema direita. Compreensível porque, quando pensa no fascismo, Benjamin pensa sobretudo na melhor forma de combatê-lo, razão pela qual sua ênfase recai na problematização das tomadas de posições antifascistas da própria esquerda (social-democrata ou stalinista), esquerda cujo otimismo histórico a deixou em maus lençóis no momento de enfrentar a ameaça da catástrofe.
Para Benjamin, é a dinâmica da luta de classes que, sob condições determinadas, define a história. Assim, se não é a principal responsável, os caminhos tomados pela esquerda e pelo movimento das classes subalternas também explicam, para o bem ou para o mal, o processo que levou o fascismo ao poder. Na visão benjaminiana, o modo como a esquerda hegemonicamente interpretou a ameaça fascista, em nome do progresso contra a barbárie, deixou uma avenida aberta para o avanço da extrema direita. Afinal, tal representação “progressista” da história deitava suas raízes e fundamentos filosóficos na burguesia iluminista. A mesma classe que, no entreguerras, não hesitou em chancelar o governo totalitário da vida, a “exceção” inevitável à preservação da “norma” (burguesa). Daí a conhecida provocação de Max Horkheimer aos democratas de ocasião, segundo a qual se não for para falar de capitalismo é melhor nem falar do fascismo.
Nesse sentido, enfrentar o fascismo em nome do progresso seria algo como, mutatis mutandis, lutar contra o capitalismo em nome do liberalismo. O fascismo é expressão moderna do progresso, forma de “revolução passiva” adequada ao avanço do capitalismo contra a ameaça comunista. Longe de ser o resultado de uma mera regressão irracionalista, embora também o seja, o fascismo é a razão burguesa em sua dimensão mais violenta, reacionária, “mitológica”.
É por isso que, para Benjamin, como escreveu na 11ª das “teses” de 1940, “não há nada que tenha corrompido tanto o operariado alemão quanto a crença de que ele nadava com a correnteza”. É essa crença que explica, depois de consumada a derrota, o “assombro”, a perplexidade paralisante típica dos que, seguros de sua superioridade moral, se desesperam ante o desmentido da História em que tanto confiavam. É o “assombro com o fato de que os acontecimentos que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis”, como se eles não fossem possíveis senão no século XX, quando o progresso deu vazão a seus impulsos mais destrutivos.
Benjamin e o antifascismo hoje
A atualidade da reflexão benjaminiana parece inegável hoje, quando o mundo passa por uma nova rodada de ascensão da extrema direita. Tanto mais porque, de novo, a reação de parcela expressiva das esquerdas vem se resumindo à invocação da “norma”: da razão, do progresso e, na atual pandemia global, da ciência e dos especialistas. No Brasil, em particular, em função do período lulista, essa reivindicação da norma ganha ares de nostalgia em relação a um passado recente em que a história parecia enfim estar caminhando no bom sentido.
Assim, é como se o bolsonarismo, essa reação protofascista ao avanço lulista, não fosse senão o retorno do recalque reacionário e irracionalista que, latente na sociedade brasileira, reagiu ao salto progressista. Não por acaso, depois do golpe de 2016 e da catástrofe de 2018, muito se falou em “volta do atraso”, como se o único horizonte possível, e desejável, fosse a defesa das instituições e dos especialistas contra a ameaça autoritária, enquanto esta, por sua vez, não hesita em reivindicar a soberania popular como caução de legitimidade para o atropelo das regras democráticas.
O ponto é que são os limites dessa institucionalidade, seu déficit democrático, que explicam, ao menos em parte, o tipo de reação social e política que vem se produzindo desde 2013 e que não precisaria ter tomado o rumo que tomou. Defender as “instituições” (o “direito” do “Estado democrático”) contra as investidas autoritárias é uma coisa. Tornar essa defesa o horizonte de expectativa das forças sociais e políticas transformadoras é outra. Para dizer como Benjamin, não há nenhuma norma do progresso a ser reconquistada, em contraposição à exceção fascista, já que esta é produto bastardo daquela.
Daí a necessidade de os dominados desconfiarem das garantias do progresso. Do ponto de vista dos oprimidos, a “exceção” e a “norma” não são dois polos inconciliáveis: elas se encruzam conforme as possibilidades da dominação em cada presente determinado. É preciso, portanto, escreveu Benjamin, “chegar a um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é instaurar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição na luta contra o fascismo ficará mais forte. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o afrontem em nome do progresso, considerado como uma norma histórica”.
Num país como o Brasil, em que “o progresso é uma desgraça, e o atraso, uma vergonha”, como escreveu certa vez Roberto Schwarz, o alerta benjaminiano parece ainda mais certeiro. Quando nos colocamos do lado do progresso, relegando aos adversários ou inimigos o papel de retardatários que, inconformados com a marcha da história, reagem de modo agressivo e autoritário, deixamos de bandeja ao fascismo o manejo do passado. Se não passa é porque esse passado se atualiza no presente, tornando-se a aparente exceção da norma. “Instaurar um verdadeiro estado de exceção”, nesse sentido, implica a elaboração de um projeto hegemônico em torno dos interesses e valores dos oprimidos, em oposição à “norma” (o capitalismo) da qual se originou a “exceção” fascista.
Para Benjamin, a chave para isso estava na política, lócus por meio do qual se torna possível construir coletivamente um novo horizonte de expectativas, para além da defesa no mais necessária dos escombros da institucionalidade. Muitas vezes, a lei pode até estar ao nosso lado, mas é do conjunto das relações sociais que depende seu funcionamento hegemônico. É na sociedade, portanto, notadamente na capacidade das classes subalternas de se projetarem politicamente como um novo poder instituinte, que se joga o destino do país e do mundo.
Deixada a si mesmo, a “correnteza” do progresso nos levará à barbárie, sob a norma ou a exceção. Não por acaso, disse Benjamin, “antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”. E ele só será cortado se lograrmos, desde já, avançar na construção de uma nova exceção, quer dizer, de outro mundo tão aparentemente improvável quanto necessário, antes que o poço se revele um abismo. É nessa frágil mas resiliente esperança que nosso presente se encontra com aquele de Benjamin, exatamente oitenta anos depois de seu suicídio.
Fabio Mascaro Querido é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp.