Um bilionário fantasiado de operário contra uma madona virtuosa
Com uma semana de intervalo, as duas convenções norte-americanas de julho deixaram transparecer o estado atual da política no país. De um lado, um homem sem autocontrole, alvo da desconfiança dos quadros do partido. Do outro, uma candidata sem nenhum projeto além de derrotar seu concorrente, evocando uma figura ilibadaThomas Frank
Difícil imaginar escolha pior do que Cleveland, em Ohio, para realizar uma convenção nacional do Partido Republicano. Nessa cidade industrial, bastião tradicional dos democratas, qualquer esquina lembra que a política econômica dos republicanos provocou a destruição do mundo operário durante boa parte dos últimos quarenta anos.
Em outros tempos, a cidade encarnava o poder manufatureiro dos Estados Unidos. John Rockefeller criou ali a Standard Oil; ali se produzia aço, automóveis, produtos químicos, tendo por consequência uma poluição tal que o rio muitas vezes pegava fogo… Mas a Cleveland de 2016 está em ruínas. Enquanto a fuga da classe média para os subúrbios despovoou o centro da cidade, a transferência de indústrias para o México e o Sul global em geral dizimou os empregos de operários. A cidade estava entre as cinco maiores dos Estados Unidos em 1920; hoje, ocupa o 48o lugar e só se distingue em termos do número de execuções hipotecárias e domicílios vazios.
Para nos prepararmos para a convenção republicana, visitamos o antigo bairro industrial, na parte leste da cidade, descobrindo através do vidro de um carro com ar-condicionado as paisagens de fábricas em ruínas e velhos imóveis cobertos de hera. A empresa do fabricante de carrocerias de automóveis Fisher Body, tornada célebre em 1936 após uma greve que terminou com uma grande vitória do movimento trabalhador, foi substituída por dormitórios austeros do Cleveland Jobs Corps Center, que acolhem jovens desvalidos. Mais adiante, na calçada, um amontoado de bichos de pelúcia e de cruzes homenageia os adolescentes mortos nos acidentes da rodovia. Por toda parte, terrenos vazios, ruas sem vida, loteamentos tornados selvagens e retomados pela vegetação.
Mesmo os bairros que funcionam parecem vazios. No subúrbio chique, onde os praticantes de corrida se encontram, nenhuma criança brinca nos gramados conservados com esmero. Num restaurante húngaro, nenhum gato pingado; num supermercado, ninguém no caixa. Em pleno centro de Cleveland, é possível estacionar em qualquer lugar.
Em tempos normais, organizar uma convenção republicana numa cidade como essa equivaleria a atravessar as ruínas fumegantes de uma ponte de autoestrada exigindo que fossem suprimidos os gastos com infraestrutura viária. Mas 2016 não é um ano como os outros, porque o Partido Republicano escolheu para ser seu campeão o bilionário demagogo Donald Trump, para quem Cleveland constitui o cenário ideal. Com suas paisagens que carregam os estigmas das escolhas econômicas das últimas décadas, do declínio da indústria, dos acordos de livre-comércio, Cleveland encarna a metrópole norte-americana que poderia um dia recuperar a “grandeza” que o corretor imobiliário promete devolver ao país inteiro (Make America great again).
A América, a melhor! A América, traída!
Existe, no entanto, um bairro onde uma imagem de densidade urbana permanece: East Fourth Street, nascido de uma renovação dos anos 1990. No verão, pode-se ver uma plêiade de pequenos restaurantes com varanda. Mas, neste mês de julho, East Fourth Street serve principalmente de corredor para a Quicken Loans Arena, a sala poliesportiva onde é realizada a convenção republicana: um carnaval político que mistura vendedores ambulantes, delegados, jornalistas, manifestantes, sem contar passantes encantados que não deixam de pegar seu iPhone para capturar esse espetáculo efêmero.
A presença de câmeras de televisão atrai uma multidão permanente de manifestantes e fanáticos que anunciam o fim dos tempos, exibem seus cartazes e esperam o momento mágico no qual sua imagem será retransmitida para todo o país. Encostado no parapeito de um café, um homem que usa um chapéu vermelho escrito “Trump” e uma arma coloca-se ao lado de um stand “zen”, onde as pessoas são convidadas a pintar com os dedos a fim de “relaxar para desenvolver a curiosidade”. No entanto, o que se destaca nesse quadro lembra o estilo de Trump, sua mistura de reflexos não controlados e de fórmulas vulgares. Camisetas que representam o candidato brandindo o dedo médio para diversas pessoas que o contradizem; outras que convidam a considerar as diferentes maneiras pelas quais Hillary Clinton e Monica Lewinsky1 cuidam de Bill Clinton; outras ainda que representam um escroto pintado à maneira da bandeira estrelada norte-americana. Alguns bottons anunciam: “Bombardeiem até a morte o Estado Islâmico”.
Quanto mais nos aproximamos do lugar onde se realiza a convenção, mais parece que estamos em uma zona verde de Bagdá. De fato, é preciso marchar entre corredores formados por policiais dispostos em fileiras apertadas, e depois ao longo de cercas. As credenciais são verificadas uma vez, depois duas, depois cinco, depois seis. Em seguida, vem o detector de metais e, por fim, a sala.
O adjetivo “vazio” resume muito bem a convenção republicana. Fora a última noite, o centro da arena não está particularmente lotado. Além disso, a qualidade dos discursos deixa a desejar, com a maior parte dos que falaram não se dando ao trabalho de se preparar. Nenhum dos antigos líderes do partido está presente: nem Mitt Romney, nem John McCain,2 nem nenhum membro da família Bush.
É verdade que algumas figuras republicanas intervêm, mas são oradores medíocres. Paul Ryan, presidente da Câmara dos Representantes, faz avançar sem entusiasmo a ordem do dia. Mitch McConnell, senador por Kentucky, acaba vaiado quando se vangloria de seu sucesso como chefe da maioria republicana no Senado. Em seu discurso preliminar, Chris Christie, governador de New Jersey, denuncia os erros diplomáticos cometidos por Hillary Clinton quando ela foi secretária de Estado, sem perceber que imputa a ela acusações rigorosamente inversas àquelas que Trump formula, sobretudo no que concerne à sua firmeza em relação à Rússia e à Ucrânia.
Na falta do habitual desfile dos oficiais, os delegados republicanos ouvem apresentadores de rádio ultraconservadores exortarem a plateia a admirar este ou aquele ato de bravura patriótica antes de atiçar a indignação ao detalhar traições atrozes ou atos criminais. A atmosfera vai de um extremo a outro: a América, a melhor! A América, traída! Temos de salvar a América! Todos aclamam os nobres discursos e os relatos de aventuras. Depois, é a vez dos parentes de luto que perderam seus entes queridos por causa dos pequenos bandidos que a esquerda mima, como os imigrantes clandestinos.
Os discursos misturam os tons a fim de serem mais eficazes: a América corajosa; a América vítima; os líderes democratas que se recusam obstinadamente a “dar nome ao inimigo”. Os delegados vibram ouvindo a voz entrecortada de Patricia Smith, mãe de um funcionário público morto no ataque ao consulado norte-americano em Bengasi (Líbia), em setembro de 2012: “Considero Hillary Clinton [na época secretária de Estado] pessoalmente responsável pela morte de meu filho”, grita. “Como ela pôde infligir isso a uma família americana?” Os congressistas se aninham no doce pesadelo de uma destruição nacional provocada por uma traição democrática.
No entanto, talvez seja preciso interpretar esses absurdos como uma espécie de diversão. Quando os delegados de uma convenção política exprimem sua opinião sobre Hillary Clinton gritando “Prendam-na!”, realmente não dá para levá-los a sério. Aliás, enquanto a serenata começa, nossos vizinhos comem pipoca. Alguns instantes depois, uma senhora idosa de porte suave e frágil me pergunta se poderia se apoiar em meu ombro para se levantar e se sentar. Pouco depois, ouço sua vozinha se elevar com exaltação: “Prendam-na!”.
Humilhação pública de um falastrão texano
Alguns líderes republicanos não estiveram na festa durante toda a semana em Cleveland. Por exemplo, Ted Cruz. O senador pelo Texas, malfadado rival de Trump nas primárias, encarna o perfeito político ator. Ele é de tal forma falso, meloso e demagogo que mesmo seus colegas senadores não o aguentam mais. Na terceira noite da convenção, tomou a palavra e fez o tipo de discurso moralista e vazio que a direita adora. Contou uma história lacrimosa sobre um policial morto no exercício da função, descreveu “seu filho querido abafando os soluços”, antes de engrenar um discurso pomposo relativo ao poder da liberdade, que permitiria resolver todos os nossos problemas. Mas, depois de ter ouvido suas palavras por vinte minutos, o público percebeu que ele ainda não anunciara seu apoio a Trump. E, quando o falastrão texano se apressava para concluir o discurso retomando as imagens das lamúrias com a qual começara, os delegados explodiram. Cansados de suas lágrimas de crocodilo, eles levantaram-se gritando: “Apoie Trump!”. Dava até mesmo para ver um deles enrolar seu cartaz em forma de megafone e berrar em direção ao palco. O vendedor de banalidades da direita religiosa foi obrigado então a deixar a cena sob vaias.
“Seu” Partido Republicano não existe mais. No rastro de sua falência, imaginam-se bilhões de dólares de investimentos reduzidos a nada. Todos esses homens mobilizados ao longo dos quarenta últimos anos para fazer do partido o instrumento mais azeitado do famoso 1% mais rico. Todo esse dinheiro consagrado aos lobistas de Washington, à formação ideológica dos legisladores do Estado, aos truques que permitiram atrair milhões de vozes operárias para um programa contrário a seus interesses: tudo isso desmoronou em alguns meses.
Em Cleveland, as guerras culturais, impulso essencial da direita norte-americana, são colocadas entre parênteses. Peter Thiel, cofundador do serviço de pagamento on-line PayPal, foi ovacionado no momento em que proclamou sua homossexualidade (“Tenho orgulho de ser gay, tenho orgulho de ser republicano, mas mais que tudo tenho orgulho de ser norte-americano”). Outro pilar da fé republicana, o livre-comércio, também foi esquecido. Ninguém mais se queixa dos gastos sociais, e apenas Scott Walker, o incorrigível governador de Wisconsin, questiona os sindicatos – ainda assim, de forma comedida.
Trump qualifica a corrente política que o apoia de “partido dos trabalhadores” e garante que dará prioridade aos problemas econômicos das pessoas comuns. Sua denúncia repetida dos acordos comerciais que destruíram a indústria norte-americana não poderia encontrar melhor cenário que Cleveland. Resultado: aquele que um dos que discursaram apelidou de “operário bilionário da América”, que tuíta insultos racistas, que quer reduzir os impostos dos ricos e mandar fabricar seus produtos no exterior, se proclama o protetor da América que trabalha. Também igualmente impressionante, durante os 70 minutos de seu discurso, ele parece quase… racional.
É verdade que ele tenta vender uma visão paranoica do terrorismo e da delinquência; mas o medo geral que ele ecoa é real. A classe média norte-americana está mesmo perdendo qualidade de vida, sobretudo por causa de acordos comerciais iníquos e da estranha indiferença das autoridades democratas de Washington em relação às camadas populares. Para grande parte do país, portanto, é fato que a economia não funciona mais e que a democracia parece uma farsa a serviço dos poderosos. “As grandes empresas, a elite da imprensa e os doadores apoiam a campanha de minha rival porque sabem que ela vai manter o sistema tal como ele é. Eles lhe acenam com dinheiro porque controlam absolutamente tudo que ela faz. Puxam os fiozinhos como se ela fosse uma marionete.”
Em seguida, vem o engajamento junto às classes populares, que não tiraram nenhum benefício da retomada do crescimento: “Fui ver operários de uma fábrica que foram despedidos e vi comunidades esmagadas por nossos horríveis e injustos tratados comerciais”. Depois, deliberadamente fazendo eco a Franklin Roosevelt, Trump lança: “São homens e mulheres esquecidos por nosso país. Pessoas que trabalham duro, mas não têm mais voz. Eu sou sua voz”. Pouco após seu discurso, uma pesquisa indica que esse novato em política, esse palhaço vulgar, disputa em igualdade de condições com Hillary Clinton.
Uma casta nascida para governar
Stronger together – “A união faz a força”. Esse foi o slogan oficial da convenção democrata que ocorreu na Filadélfia uma semana depois. Um aviso simpático aos apoiadores frustrados de Bernie Sanders,3 o senador de esquerda vencido por Hillary Clinton nas primárias.4 Mas o verdadeiro tema da reunião é essa qualidade que caracteriza a vida de Hillary Clinton desde a infância: a virtude.
Uma virtude ardente e rígida; uma virtude altaneira e sem artifícios; inevitável e tão supremamente angélica que ninguém pode sonhar igualá-la. São pessoas melhores que caminham pela cena do Wells Fargo Center – essa é a mensagem que assedia os que estão na Filadélfia. Pessoas melhores que esses monstros republicanos, isso nem se discute, mas igualmente melhores pura e simplesmente. Uma casta de humanos de uma tal probidade que não se pode deixar de reconhecer que nasceram para governar.
Por trás dessa avalanche de bons sentimentos, os organizadores da reunião democrata querem que o público também se sinta virtuoso; que a excelência que irradia da cena se estenda aos congressistas. Um balcão vende alguns doces sem glúten; há banheiros mistos, e um espaço fácil de localizar permite às mães dar de mamar a seu bebê. Quanto a saber quem teria a ideia maluca de levar um lactante a um lugar tão tumultuado, eis aí sem dúvida uma questão moral de outro tipo.
Essa demonstração de retidão, porém, é constantemente desmentida por uma imensa quantidade de fatos dissonantes. Os congressistas ficam sabendo pela imprensa que recepções são organizadas por empresas de Wall Street, mas não são convidados para elas. Os organizadores da reunião negociaram um acordo com o Uber, que permite a seus táxis pararem bem perto do centro de convenções, posto que a empresa é “especialista” em matéria de precarização do trabalho. Já a convenção em si está lotada. Diante de cada porta de entrada, longas filas de pessoas irritadas pedem aos gritos que as deixem entrar. Na última noite, um membro da organização não para de conduzir alguns desses impacientes para um assento, antes que, alguns minutos depois, outro membro venha lhe pedir sua credencial na esperança de poder convidá-lo a deixar o lugar. E, enquanto se desenrola esse combate darwiniano por um mínimo banco rebatível, Hillary Clinton proclama em todas as telas do imenso salão que “nosso país precisa de mais gentileza e afeição”.
O espetáculo dura quatro dias. Na cena, os oradores se alternam com sotaques exaltados que lembram uma banda de colegiais montando uma peça de Shakespeare ou pregadores do século XIX evocando anjos caídos do céu. Imbuídos da nobreza de seu propósito, eles se esforçam por adotar uma fala à altura de sua mensagem.
Não é preciso ir muito longe para descobrir as razões dessa unanimidade: a convenção precisa ressaltar a bondade intrínseca dos democratas, que, de resto, não têm muitos gestos bondosos a celebrar. Alguns dias antes, por exemplo, vários e-mails pirateados haviam confirmado que o Comitê Nacional Democrata, teoricamente neutro durante as primárias, empenhara-se em sabotar a candidatura de Sanders.
Mais grave ainda, incontáveis problemas que preocupam os militantes do partido, e que os sucessivos oradores insistem em denunciar, resultam de políticas do presidente democrata em fim de mandato ou de um de seus famosos predecessores, que por acaso é… marido da candidata.
Três exemplos entre tantos outros. Dezenas de delegados brandiam cartazes hostis ao Acordo de Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP), gritando: “Não ao TPP!”. Contudo, durante a terceira jornada da convenção, parte deles aclamava Barack Obama – “um dos melhores presidentes que tivemos”, segundo o vice-presidente Joe Biden –, que não hesitou em fazer do tratado a apoteose de seu mandato.5 Na véspera, o ex-governador de Vermont, Howard Dean, proclamara: “Precisamos de um presidente capaz de forçar os mais ricos a obedecer às mesmas regras que os norte-americanos da classe média, que trabalham duro”… logo depois que a convenção aplaudiu um tal de Eric Holder. Este fora censurado, quando ministro da Justiça (2009-2015), por sua indolência em se tratando de processar os banqueiros responsáveis por fraudes financeiras.
Por fim, no discurso programático da convenção, Elizabeth Warren, senadora por Massachusetts, fez a lista dos desafios que rondam os membros da classe trabalhadora, antes de exclamar: “A Bolsa bate recordes. Os lucros das empresas nunca foram tão grandes. Os diretores-gerais auferem dezenas de milhões de dólares. Mas esses ganhos de nada servem para as famílias que trabalham duro como a de vocês. Será que ninguém aqui vê nisso um problema?”. “Ninguém aqui”? Tudo isso acontece desde que Obama passou a ocupar a Casa Branca. Se o presidente estava diante de seu televisor naquela noite, provavelmente não se sentiu visado por essas críticas, já que não foi associado ao diagnóstico da senadora. E, se Elizabeth Warren parecia ávida por condenar Donald Trump e sua vontade de “reduzir os regulamentos financeiros”, esqueceu-se de lembrar que o verdadeiro trabalho de minar a confiança nessa área foi conduzido duas décadas atrás por Bill Clinton. O mesmo que na noite seguinte seria ovacionado…
Enquanto isso, o passado de Hillary Clinton é reescrito minuciosamente. Alguns episódios breves de sua carreira têm direito a comentários longos, dando a impressão de que a candidata consagrou a vida a cruzadas de caridade. Outros capítulos, bem mais significativos, como o tempo em que ela trabalhou como advogada especializada em direito empresarial, parecem se evaporar. Quanto às principais realizações presidenciais de seu marido, que outrora a deixavam tão orgulhosa e para as quais se gabava de ter contribuído, não se fala delas. O Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta) desaparece do relato oficial. Como contradiz os discursos sobre a atenção extrema que Hillary Clinton daria a mulheres e crianças, a supressão da ajuda federal às famílias com filhos pequenos, assinada por seu marido em 1996, não é mencionada.
O que sobra, então? Uma virtude moral abstrata, jorrando como uma fonte inesgotável, mas sem vínculo com a herança recente do Partido Democrata. Mencionam-se pessoas que conseguiram superar deficiências ou doenças, sobreviver ao terrorismo e a ferimentos horríveis. E outras que acreditam “na inovação e no espírito empreendedor”; que foram abraçadas pelo presidente dos Estados Unidos e desejam que “cada norte-americano possa segurar nos braços o presidente Obama”; que lutaram no Iraque e proclamam sua fé em “Hillary” e em sua capacidade estratégica ou militar.
Rios de lágrimas descem por faces cheias de gravidade. Um vídeo que conta a história de uma ex-imigrante clandestina convidada a tomar a palavra mostra-a reprimindo três vezes os soluços. Outro apresenta uma menina aos prantos, com medo de que seus pais sejam expulsos. Quando, em seguida, a candidata a põe no colo, garantindo que vai protegê-la, os rios de lágrimas transbordam, mas agora correm dos olhos dos adultos sentados ao lado de uma Hillary Clinton tão virtuosa quanto protetora.
Uma sequência de lugares-comuns
Compaixão, boas intenções; e também excelência. Os homens e mulheres de negócios saudados em Filadélfia, além de serem patrões brilhantes, venceram na vida de maneira espantosa. Mas ouvimos também a história de um policial que embalou todos os seus presentes de Natal antes de ser morto em serviço. Um dos mais hábeis oradores da convenção, o vice-presidente Biden, julga que os empréstimos contraídos pelos estudantes – prestes a afundarem como se tivessem uma bigorna amarrada ao pescoço – existem na realidade “para evitar a papai e mamãe a afronta de ter um empréstimo bancário recusado”.
Coroando esse longo espetáculo, Hillary Clinton surge enfim no palco, toda vestida de branco, e desfia diante do público uma sequência de lugares-comuns vibrantes. Essas banalidades profundas arrancam sucessivas ovações.
A nação está às voltas com um desafio muito sério, anuncia a oradora, o “momento da verdade”. Sim, a “convivência” (togetherness) nos Estados Unidos corre perigo. “Forças poderosas ameaçam nos afastar uns dos outros. Cabe a nós decidir se desejamos trabalhar juntos para crescer juntos.”
A ameaça se chama Donald Trump. Hillary Clinton o acusa de “querer nos separar… do resto do mundo, mas também uns dos outros”. Entretanto, o perigo não é apenas moral: diz respeito igualmente à prosperidade do país. “A América exige que cada qual colabore com sua energia, seus talentos, sua ambição – para que nos tornemos melhores e mais fortes. Disso eu estou intimamente convencida.”
A candidata não deixa de nos lembrar sua filosofia: “Façam todo o bem que puderem, para quantos seja possível, de todas as maneiras a seu alcance, por quanto tempo for necessário”. Ela garante ainda que está atenta aos detalhes, que saberá encontrar soluções pragmáticas, progressistas, para problemas concretos. Tentando responder à frustração dos trabalhadores de Cleveland e de outros lugares, promete “mais empregos bons, aumento de salário” e expõe as grandes linhas de seu plano destinado a resolver parte das dificuldades: “Estou convencida de que a América prospera quando a classe média prospera. Penso que nossa economia não funciona como devia funcionar porque nossa democracia não funciona como devia funcionar. Por isso, temos de escolher juízes da Corte Suprema capazes de desembaraçar a política do reino do dinheiro e estender o direito de voto em vez de restringi-lo”.
Se o público da Filadélfia percebe o hiato entre problemas e soluções, não deixa transparecer nada – talvez porque, tanto quanto a oradora, sabe que o fator decisivo não é a classe média decadente. Não, a verdadeira linha de demarcação entre as duas formações políticas, agora e sempre, remete a algo bem mais importante: o abismo entre o bem e o mal. Os bons num partido; os maus no outro.
Para os democratas, a bondade não é de forma alguma um derivativo: é a questão principal. No pleito de 2016, vão se defrontar a virtude e a vulgaridade. “Nós nos oporemos a toda retórica deletéria, a toda palavra que pretenda nos dividir”, adverte Hillary Clinton, como para lembrar as inúmeras catilinárias de seu adversário sobre os deficientes, os mexicanos, os negros: “No fundo”, conclui, “voltamos sempre àquilo que Donald Trump parece incapaz de entender: a América é grande porque é boa”.
Aí está: a virtude democrata. Pensando na eleição de 2016, lembro-me do que passei ao atravessar a pé o gigantesco estacionamento do Wells Fargo Center, na Filadélfia, sob um calor tremendo, amplificado pelo asfalto, tão intenso que quase paralisava o cérebro. Avançávamos penosamente; uma barreira de segurança guiava nossos passos. Do outro lado da cerca, uma pessoa sem dúvida com trânsito fácil conseguira estacionar um ônibus escolar, de onde falava ao público suado que afluía para o centro de convenções. Seu megafone repisava elogios à importância da educação e da inovação.
Penso também no cartaz visto de um trem de subúrbio de Cleveland no qual se lia um desses slogans delirantes, emblemáticos da direita norte-americana: “Não acreditem no que diz a mídia esquerdista”. Estava ao lado de uma rodovia ensurdecedora, de um estacionamento enorme e de uma via férrea quíntupla. Todo o barulho da produção industrial e dos transportes subia da fornalha. A quem era endereçada essa mensagem? Aos empregados da fábrica Ford que se podia vislumbrar a pouca distância dali? Ao sujeito sentado dentro da locomotiva do trem de carga que passou por nós? Um convite para cedermos à paranoia. Sem destinatário especial, percebido de longe, desprovido de sentido.
Thomas Frank é jornalista, autor de Pourquoi les pauvres votent à droite. Comment les conservateurs ont gagné le coeur des Etats-Unis (et celui des autres pays riches) [Por que os pobres votam na direita. Como os conservadores ganharam o coração dos Estados Unidos (e o dos outros países ricos), Agone, Marselha, 2008. Acaba de publicar Pity the billionaire: the hard-times swindle and the unlikely comeback of the right [Pobre bilionário: o embuste dos tempos difíceis e o improvável retorno da direita], Metropolitan Books, Nova York, 2012.