Um cemitério de clichês
Se há um lugar considerado pelos estrangeiros como um ninho de inimigos exóticos e símbolo de estagnação cultural é a região que engloba o Paquistão e o Afeganistão. Nada poderia estar mais errado: de gravações de rap a vídeos com a Al-Qaeda, os talibãs estão utilizando as tecnologias mais atuais para a sua propaganda
Os Estados Unidos estão lutando contra alienígenas? Ralph Peters acha que sim. O polêmico oficial aposentado tem pavor dos afegãos e os vê como selvagens que poderiam muito bem ser de outro planeta. Os talibãs são “alienígenas que preferem sua maneira crua de vida e seus cultos impiedosos”. Nossa guerra com eles é uma “colisão frontal entre civilizações de galáxias diferentes”. Peters não é triunfalista. Ele considera que os militantes islâmicos são inimigos difíceis, ferozmente conduzidos por um “deus irascível”, e que travam uma guerra com decapitações televisionadas, escudos humanos e homens-bomba. Além disso, Peters acredita que os soldados americanos estejam lutando de mãos atadas por uma mídia hostil, governantes ignorantes e uma população alienada, vulnerável em sua riqueza e liberalismo.
Diferentemente do militar aposentado, o presidente Barack Obama não se refere a uma guerra entre “espécies”, mas declara que a força militar americana será medida não só pelas armas que nossas tropas carregam, mas pelos idiomas que usam e sua cultura”. O “exótico” como justificativa para as complexidades da guerra transcende as divisões políticas. Abraçar a diversidade é agora um selo de respeitabilidade intelectual. A profecia do falecido Samuel Huntington, autor de Choque de civilizações, pode não estar na moda nos salões acadêmicos, ainda que o etnocentrismo tenha poucos adeptos. A noção de que os estrangeiros são, em última instância, como nós, é afetada pela guerra do Iraque e pelo projeto de George W. Bush de refazer o mundo à imagem de seu país. O saldo da opinião pública tende a se inclinar para as diferenças. Em algum lugar, Huntington está sorrindo.
Para operar em terras estranhas, seja em missões de estabilidade ou construindo nações militarmente, as forças armadas procuram reformar-se, e a arma é a cultura. Vemos agora a redescoberta da antropologia colonial no programa do Pentágono “Equipes Humanas de Terreno”, no novo manual de contrainsurgência FM3-24, e na recuperação de obras clássicas sobre a “mente árabe.” Historicamente, crises imperiais, como o Motim Indiano de 1857, estimularam a redescoberta da etnografia e das tradições tribais. Em 1940, depois de guerras com “povos estranhos”, o Corpo de Fuzileiros Navais americano produziu o seu Manual de pequenas guerras, incitando o estudo das “características raciais” dos nativos. É, portanto, uma reflexão antiga.
Isso faz parte do próprio debate estratégico dos Estados Unidos. A cultura é um antídoto para a arrogância tecnológica da década de 1990, quando visionários acreditavam que as armas de precisão, a tecnologia da informação e o satélite dariam aos americanos não só incomparável letalidade, mas um olhar pan-óptico sobre o campo de batalha. Mas o Iraque e o ressurgimento dos talibãs na Ásia Central jogaram por terra essas ideias.
Porém, assim como o “tecnologismo”, o “culturalismo” também está sujeito a erros: o “orgulho” árabe e a “honra” islâmica sustentaram e “justificaram” a tortura de prisioneiros em Abu Ghraib. E a crença de que “conhecemos” um inimigo intimamente, ou que geramos conhecimento cultural sistemático, pode produzir uma falsa confiança e insuficiência analítica. Ninguém deve esquecer que um experiente especialista da CIA no Irã elogiou a estabilidade do governo do Xá em 1979, seis meses antes da revolução.
Se há um lugar considerado pelos estrangeiros como um ninho de inimigos exóticos e símbolo de estagnação cultural é a região que engloba o Paquistão e o Afeganistão, onde uma coalizão liderada pelos Estados Unidos está combatendo agora. Uma literatura baseada em clichês, desde 2001, reclamava do atemporal “cemitério de impérios.” Essa “terra de ossos” tem repelido intrusos, desde a sanguinária ocupação de Alexandre, o Grande, até à investida soviética. Os talibãs pareciam sisudos puritanos que quebravam televisões, matavam homossexuais, açoitavam mulheres e proibiam a música.
Quando os Estados Unidos se preparavam para a guerra, em 2001, o Times disse que se tratava de “um dos regimes mais impenetráveis do mundo, fanaticamente leal a um líder misterioso” que tinha expulsado “todos os invasores estrangeiros anteriores”. Comentaristas advertiam que o Talibã só podia ser entendido em termos “estranhos ao pensamento ocidental”. Observadores viram a guerra como um choque de culturas entre uma teocracia arcaica e uma superpotência rica e altamente tecnificada. Derrubado em 2001, o Talibã conduz uma revolta que muitos consideram um ato profundamente cultural. Para um capitão das forças especiais, é um “confronto entre os Flintstones e os Jetsons”.
É tentador tratar os afegãos como prisioneiros de suas tradições. Alguns afirmam que as tribos pashtun, que formam o grosso do Talibã, estão ligadas por um vingativo código de honra e laços de sangue. Outros os apresentam como muçulmanos místicos vindos de outro mundo. Mas, quando os observamos, não encontramos alienígenas aprisionados por seus costumes, mas certo tipo de realistas reescrevendo suas regras com o decorrer do tempo. Eles mudaram sua posição sobre o cultivo da papoula, transformando-se de adversários fanáticos em defensores do narco-Estado e guardiões da vida rural. Em Musa Qala, relaxaram as críticas sobre o comportamento social para conquistar a população, anulando a exigência de que os homens deixassem a barba crescer, assim como a proibição de música e filmes. Eles reformularam sua visão sobre o atentado suicida. Anteriormente, alegavam que vestir um colete de explosivos era covarde. Uma facção do grupo colocou até um anúncio em um jornal de Kandahar prometendo punir os responsáveis por um atentado suicida, uma afronta ao Islã. Agora, porém, o Talibã adotou a tática. Seus líderes religiosos reinterpretaram o Corão para justificá-lo, com histórias sobre mártires do exército muçulmano do século VII.
Tabus x era da informação
Na guerra da informação, os talibãs têm se ajustado à capacidade de difusão dos meios de comunicação modernos com uma agilidade que deixa para trás seus inimigos. Eles fazem entrevistas na televisão, criam programas de propaganda, enviam representantes ao Iraque para aprender com o
braço da Al Qaeda de produção de vídeo, e imitam as práticas ocidentais de jornalismo. Quando estavam no governo, proibiram imagens da forma humana como idolatria. Agora, violam todos esses tabus, transformando-se em guerrilheiros da era da informação. Ironicamente, esse movimento que condenou a música, agora alista cantores, grava fitas cassetes elogiando o martírio do Talibã e condenando os infiéis, assumindo um estilo similar ao rap americano.
Procurando conquistar a lealdade dos afegãos, o Talibã confecciona um governo alternativo ou “antiestado”, o “Emirado Islâmico do Afeganistão” Eles têm um sistema paralelo de tribunais, aplicação de leis e clínicas, bem como uma ouvidoria perto de Kandahar, onde as reclamações podem ser apresentadas. Ou seja, respondem de maneira comparável à lógica da alienação civil e da doutrina de contrainsurgência ocidental, a qual estudam minuciosamente. O Talibã é, assim, filho do próprio processo de globalização que afirma combater. Um ator culturalmente articulado que prega tradição, mas pratica mudança.
Embora a insurgência afegã tenha uma base étnica entre os pashtuns, ela não é reduzida ao tribalismo. As tradicionais lealdades tribais no Afeganistão e sua base agrícola de poder foram cerceadas e alteradas pelo surgimento dos tanzimz (espécie de agrupamentos políticos), bem como o sistema de qawn, que inclui as seitas religiosas nas alianças práticas. Assim, os talibãs não operam apenas tribalmente. Eles incluem facções rivais em seus movimentos, incorporando grupos marginalizados como os hazara em Ghazni. Eles contam com muitos tadjiques e clérigos uzbeques aliados à sua causa e têm rotas de suprimento e comunicação em áreas povoadas principalmente por minorias que não são da etnia pashtun.
É também tentador ver a Al Qaeda como um retrocesso medieval, com seu sonho de um califado islâmico ou seu luto pela perda da Espanha em 1492. Ou podemos vê-los como atores estratégicos que usam a força como um fim em si mesmo, sua violência sagrada promulgando sua identidade como mártires furiosos com um mundo caído. Nesta visão, eles não usam a guerra como um instrumento de política, mas criam um palco de horror para uma autoexpressão religioso-cultural. O choque com a rede de Bin Laden parece um encontro radical de opostos, como os conquistadores encontrando os astecas, aqueles que “sacrificavam os homens”.No entanto, a Al-Qaeda é formada a partir de um mercado mundial de ideias e tecnologias. Pode nutrir-se de sonhos medievais e nostalgia reacionária, mas está longe de ser um movimento pré-moderno, e é mais que uma causa niilista que usa o terror sem motivos. Seus comunicados contêm clássicos princípios estratégicos. Quando Osama Bin Laden declarou guerra aos Estados Unidos, justificou suas táticas de “guerra de guerrilha” não somente como uma expressão da violência sagrada, mas como um método necessário contra o “desequilíbrio de poder” criado pela esmagadora força militar americana. O principal teórico da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, se preocupa em traduzir a violência em resultados políticos: escreve que as operações bem-sucedidas contra os inimigos do Islã serão desperdiçadas se não resultarem em uma “nação muçulmana no coração do mundo islâmico”. Longe de travar o terror como seu próprio fim, ou radicalmente fora das tradições do militar prussiano Carl von Clausewitz, a Al Qaeda deixou para trás cópias anotadas da obra Sobre a guerra em seu esconderijo em Tora Bora. Seus outros campos de treinamento estão igualmente cheios de literatura ocidental. Ela saqueia manuais de treinamento de esquerdistas revolucionários, cita a teoria contemporânea da “guerra de quarta geração” e o conceito dos três estágios da luta de guerrilha, de Mao Tsé-Tung. Trata-se de uma fusão de crenças religiosas com o pensamento estratégico clássico contemporâneo.
A cultura importa. Ajudou a diminuir os níveis de violência no Iraque e a orquestrar a derrota da Al-Qaeda no Despertar de Anbar. Se a segurança da população é a ideia central desse renascimento na técnica de contrainsurgência, então saber algo sobre essa população é um bom passo. Tentar entender o mundo do ponto de vista dos outros é uma boa disciplina intelectual e moral.
A guerra é mais que um quadro no qual inscrevemos nossa identidade. É, nas palavras pragmáticas de Sun Tzu, o terreno da morte e da vida, o caminho da sobrevivência e da destruição. Assim, é fundamental estudar a cultura de forma a estar atento à mudança, bem como à continuidade, para uso e abuso das ideias do cosmopolita assim como do tribal, e ironia, onde os inimigos ensinam uns aos outros novas maneiras. O trabalho antropológico moderno tem demonstrado que mesmo as sociedades consideradas “simples” são altamente mutáveis, cheias de rupturas e lutas pelo poder, e são configuradas também por influências exteriores. É assim no Afeganistão. Hábeis condutores de guerra, como o Talibã, reinventam-se ao escolher seu caminho através do caos. Em vez de ser continuidade da cultura nativa, eles sofrem mutações na forma, se alimentam de forças globais e desprezam as tradições.
Talvez nunca possamos banir a mitologia do “Oriental” da nossa consciência. Como o medo da morte e da escuridão, ele é poderoso demais para ser totalmente exorcizado e continuará a ser uma silhueta em nosso horizonte mental. Mas somos capazes de ser mais conscientes de sua presença, mais alerta a seus mitos, e permitir que a observação e as evidências subvertam nossos preconceitos, e não o contrário. A fluidez e o hibridismo dos talibãs e da Al Qaeda demonstram que a guerra, apesar de todas as suas cruéis divisões, embaralha e conecta tanto quanto polariza. Nenhuma cultura, por mais estranha, é uma ilha. Ou, como diz o novelista Juan Goytisolo: “Ouvimos muito sobre as raízes da Península Ibérica e de lugares mais além. Ouvimos sobre as raízes de nossa sociedade e comunidade histórica. Mas o homem não é uma árvore. Ele não tem raízes, têm pés, ele anda”.
*Patrick Porter é professor de Estudos de Defesa da Faculdade de Comando e Equipe de Serviços Conjuntos, no Kings College de Londres.