Um depoimento pessoal
A riqueza da USP estava e está, não só na qualidade do seu ensino, mas também na vida associativa democrática de todos que nela atuam
Em 1972, um grupo de alunos das ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP), eu inclusive, reabriu o Ceupes, o centro acadêmico das ciências sociais. Um ato corajoso num período em que professores e alunos eram presos pela polícia política da ditadura. Nas assembleias que realizávamos, havia sempre alguns homens desconhecidos, de terno, acompanhando nossos movimentos. Sentíamos medo, mas mais que tudo, tínhamos necessidade de tratar de nossos problemas e lutar pela democracia. Jovens cheios de ideias para mudar o mundo, ávidos por encontrar os caminhos para realizar seus ideais, superar a atomização e criar espaços e uma dinâmica coletiva. Evidentemente que os cursos, seu conteúdo, os métodos de trabalho, a qualidade do ensino, tudo isso fazia parte do mundo que questionávamos.
Além dos questionamentos que fazíamos, a vida universitária envolvia os estudos em grupo, as festas eram o ponto alto dos acontecimentos, tínhamos o sentimento de pertencimento à universidade, tudo isso criava uma identidade coletiva. O movimento estudantil foi uma escola tão importante quanto as aulas da faculdade. As discussões intermináveis, os documentos que elaborávamos, as negociações com a direção da faculdade, as questões políticas nacionais, tudo nos mobilizava.
A riqueza da USP estava e está, não só na qualidade do seu ensino, mas também na vida associativa democrática de todos que nela atuam. E nós, os estudantes, é que trazíamos oxigênio para a instituição, criando uma agenda de reivindicações que obrigava a direção da faculdade a dialogar. Forma e conteúdo não podem se dissociar, isto é, os processos pedagógicos – que incluem os modos de convivência e decisão – precisam estar associados ao ensino e à produção de conhecimento. Se queremos viver em uma sociedade democrática, a universidade pública precisa ser um laboratório de democracia. E hoje está muito longe disso.
É verdade – fruto de uma cultura que não queremos mais que retorne – que universidades como a USP ainda são hierárquicas, centralistas, verticais e autoritárias. E precisamos reconhecer que os mecanismos mais democráticos, os órgãos colegiados que incluem professores e funcionários, estão fortemente debilitados. As razões são múltiplas, mas a fragilidade das representações das diversas categorias contribui muito para isso.
O impasse que a USP vive agora não é só o de ter uma reitora que chama a polícia para evitar uma negociação. Substituir a reitora, o que é desejável, não resolve o problema. A USP precisa de outra estrutura de poder e gestão, precisa de descentralização e participação. Este é um momento importante, porque a crise atual pode abrir oportunidades para uma refundação democrática da gestão da universidade.
Esses jovens que estavam nos piquetes dentro da universidade, que foram atacados por policiais com balas de borracha e gás lacrimogêneo, que foram chamados de comunistas, que apoiavam as reivindicações dos funcionários e professores, eu me sentiria orgulhoso de ser um deles. Porque são eles justamente, com seus erros e acertos, que desnudam uma estrutura de poder e uma concepção autoritária de gestão que não tem mais lugar. Há uma ponte entre o que nós queríamos, nos anos 1970, como centro acadêmico das ciências sociais, e o que esses estudantes defendem hoje, tendo também que enfrentar a polícia.
O Brasil precisa de uma universidade trabalhando para compreender nossa realidade, dedicada a construir alternativas de solução para os muitos problemas gerados por uma sociedade que ainda tem muito para se democratizar. Queremos a produção do conhecimento e a convivência universitária posta a serviço de um projeto de sociedade democrática.
No momento atual, o conflito se centra na presença dos policiais na USP e na permanência da reitora no cargo. A crise ultrapassou as reivindicações salariais que deram origem às mobilizações. É preciso ampliar o foco de atenção para a reforma do sistema de decisões universitário. Como será democratizar as decisões na USP? Este poderá ser o laboratório de uma experiência ímpar. A democratização da maior e melhor universidade pública do país.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.