Um desafio para Lula na COP27
Lula precisar liderar estratégia nacional e global que enfrente a fome, as mudanças climáticas, o racismo ambiental e suas interconexões
O Brasil de Bolsonaro não só piorou as condições de vida da população brasileira como comprometeu as capacidades das gerações futuras. O aumento da fome e da desnutrição infantil tem impactos nos processos de aprendizagem das crianças. A liberalização e desregulação dos mercados incentiva a invasão de terras públicas por toda sorte de empreendimentos, boa parte deles ilegais, o que contribui para a degradação ambiental. Os recordes de desmatamento e o modelo agropecuário dominante contribuem sobremaneira para o aquecimento global, provocando eventos extremos como enchentes e secas, que afetam especialmente os empobrecidos. As pessoas mais impactadas a médio e longo prazos são as negras, pois são as mais pobres: aumenta o inaceitável fosso entre negros e brancos.
O país detém conhecimentos e recursos para reverter esse quadro e a eleição de Lula se apresenta como oportunidade para desencadear uma abordagem sistêmica e multidisciplinar para enfrentar estas múltiplas mazelas, tanto no Brasil como no resto do mundo.
O paradoxo da fome num país com abundância de alimentos
Os dados da fome no Brasil são assustadores: 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional grave[1]; isto corresponde a toda a população do nosso vizinho Peru. Assusta porque o país é um dos grandes produtores de commodities alimentares do mundo. Portanto, o problema não é quantitativo: existem alimentos em abundância, mas as pessoas não conseguem acessá-los porque não possuem renda suficiente ou porque o Estado falhou em disponibilizá-los por meio de programas governamentais como a alimentação escolar (PNAE), o programa de aquisição de alimentos (PAA), a constituição de estoques públicos de alimentos para controle dos seus preços e equipamentos públicos de alimentação e nutrição como restaurantes populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos.
Mulheres, crianças e pessoas negras são as mais impactadas pela fome e pelas mudanças climáticas. Isso é grave não somente porque reflete as profundas desigualdades estruturais que atravessam nossa sociedade, mas porque projeta os processos discriminatórios para o futuro, uma vez que esses grupos populacionais terão mais dificuldades para reconstruir suas vidas.
Um agronegócio produtor de fome
As contradições no Brasil são tão profundas que as dificuldades de acesso aos alimentos são proporcionalmente mais frequentes no campo do que na cidade. De acordo com dados recentes, a prevalência da insegurança alimentar e nutricional grave entre agricultores familiares é de 22%, bem maior que a média nacional, de 15%.[2]
Esse aparente paradoxo é resultado da combinação perversa de vários fatores, podendo-se destacar dois: um modelo de agronegócio que privilegia uma agricultura intensiva em capital voltada para exportação. Esse modelo é concentrador de terra e renda e consequentemente expulsa os pequenos agricultores do campo ou os integra as suas cadeias produtivas (soja, cana, leite, fumo entre outras), desconfigurando as características sociais, culturais e ambientais desse setor. Assim, os agricultores familiares inseridos no agronegócio deixam de ser autônomos em relação aos insumos externos à propriedade e passam a depender totalmente das empresas para produzir e vender o que produzem. Além disso, abandonam a produção para autoconsumo, pois toda a terra é disponibilizada para a monocultura; não há mais alimentos básicos em épocas de crise, o que contribui para acirrar a fome.
Um segundo argumento que explica o paradoxo da fome em meio à abundância de alimentos tem a ver com uma concepção radicalmente neoliberal do papel do Estado. A crescente desregulação dos mercados associada ao progressivo desmonte das políticas públicas faz com que o Estado não cumpra mais seu papel de indutor da alimentação saudável deixando o mercado atuar ao seu bel prazer. Isso não dá certo, é o que revelam os fatos. Os governos Temer e Bolsonaro desmontaram a política pública de fortalecimento da agricultura familiar como desestruturaram as voltadas para povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais das florestas, das águas e dos campos. O resultado é a queda da produção de alimentos básicos e o aumento de seus preços, dificultando ainda mais seu acesso a populações empobrecidas, especialmente mulheres, indígenas e negras.
Fome e clima
Um agronegócio excludente associado a um Estado omisso resulta em aumento do aquecimento global e da fome.
Os problemas ambientais mais frequentes, provocados pelo padrão produtivo monocultor são a destruição das florestas e da biodiversidade, a erosão dos solos e a contaminação dos recursos naturais e dos alimentos. Os desmatamentos, as queimadas e a agropecuária são os principais responsáveis pelas emissões brasileiras de CO2, que aumentou expressivamente na última década. Isso aconteceu, entre outras razões, porque o governo Bolsonaro erodiu a capacidade de fiscalização do Estado brasileiro. E mais: estimulou a invasão de terras públicas por fazendeiros, grileiros, madeireiros, mineradoras entre outros atores ilegais, inclusive em territórios indígenas e quilombolas, semeando destruição e morte. Estudo recente mostra que o desmonte da governança ambiental fez a Amazônia disparar em emissões, tornar-se mais quente e menos chuvosa[3].
O incentivo à dizimação da nossa sociobiodiversidade resulta na perda de capacidade de produção dos pequenos agricultores e no aumento de eventos climáticos extremos, como secas e enchentes, que, por sua vez, contribuem para piorar a insegurança alimentar e nutricional, especialmente da população empobrecida.
O racismo ambiental
Os impactos da degradação ambiental e do aquecimento global não ocorrem de forma igual entre a população, sendo a parcela marginalizada e historicamente invisibilizada a mais afetada. Esse é o conceito de racismo ambiental que, apesar de ser causado pelas injustiças econômicas e sociais, também possui papel ativo em sua criação e em seu crescimento. É um circulo vicioso que precisa ser interrompido por meio de políticas públicas, incluindo medidas afirmativas para mulheres, negros e povos indígenas.
Um debate necessário da COP27
Os problemas da fome, das mudanças climáticas, do racismo ambiental e suas interconexões não se limitam ao Brasil. Relatório recente da Oxfam, de setembro de 2022, revela que o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave dobrou nos últimos seis anos em países em desenvolvimento fortemente afetados pelo aquecimento global como Afeganistão, Burkina Faso, Djibuti, Guatemala, Haiti, Quênia, Madagascar, Níger, Somália e Zimbábue[4].
Neste contexto, o recém-eleito presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, que foi convidado para participar da Cop27 no Egito, pode (e deve) pautar e liderar esse tema no mundo. Isto porque já mostrou nos seus governos anteriores que possui as habilidades, experiência e competências necessárias para por em marcha estratégias nacionais e globais que debelem essas mazelas e suas interações.
Nathalie Beghin é coordenadora da Assessoria Política do Inesc
[1] À esse respeito, ver: https://olheparaafome.com.br
[2] À esse respeito, ver: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf, páginas 41-43.
[3] A esse respeito, ver: https://www.oc.eco.br/efeito-bolsonaro-fez-emissao-de-co2-dobrar-na-amazonia
[4] A esse respeito, ver: https://www.oxfam.org/en/research/hunger-heating-world