Um desastre no mar brasileiro
As novas táticas empresariais de transporte e logística marítima (off transponder e ship-to-ship), decorrentes das novas estratégias nacionais de guerra comercial (com sanções e embargos), podem ter alguma relação com o recente caso de vazamento ou derramamento de óleo que atingiu a costa do Nordeste brasileiro
Desde o início de setembro o Brasil presencia um imenso nódulo de óleo tomar conta de sua costa marítima. Entre a curiosidade sobre as causas misteriosas do vazamento e a indignação acerca das consequências danosas da mancha, o país assiste a seu maior desastre marítimo, inédito por sua extensão geográfica e por sua duração temporal.
A catástrofe ambiental tem proporções consideráveis. Até o final de novembro já foram atingidos mais de dez estados, cerca de 117 municípios, 72% das praias do litoral nordestino, em mais de 720 localidades. Em uma faixa de costa de mais de 2.250 km já foram retiradas mais de 900 toneladas de resíduos de óleo. O impacto ambiental, social e econômico ainda é incalculável, sobretudo por se tratar de uma área de riquezas naturais e marítimas estratégicas para o país.
O Brasil possui atualmente o direito de explorar uma extensa área oceânica, com cerca de 5,7 milhões de km², o que equivale a mais da metade de nossa área continental; no mar estão as reservas do pré-sal que respondem por cerca de 85% do petróleo e 75% do gás natural do país. Além disso, mais de 95% do comércio exterior brasileiro é transportado pelo mar. Nessas áreas costeiras são produzidos 45% do pescado do país, e elas comportam parte significativa do turismo brasileiro, além de serem abundantes em biodiversidade e recursos minerais marinhos, como sal e nódulos polimetálicos.
Não por acaso, a Marinha batizou esse perímetro oceânico de Amazônia Azul, o que redobra as preocupações com esse imenso patrimônio marítimo e torna imperiosa a necessidade de protegê-lo e preservá-lo. Para tanto, o Brasil precisa de forças marítimas e ambientais equipadas e com tamanho e recursos proporcionais à importância de nosso imenso espaço oceânico e de nossa crescente relevância geoestratégica, considerando o novo cenário geopolítico e de guerra comercial.
A guerra comercial e as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos sobre o Irã e a Venezuela caminham no sentido de obstaculizar a presença desses países no comércio exterior e nas finanças internacionais. E as indústrias naval e petrolífera têm sofrido o impacto dessas medidas de forma mais aguda por meio da retaliação à circulação de seus navios petroleiros.
Como se trata de países com níveis significativos de reservas, produção e exportação de petróleo, as rotas para a circulação de navios-tanque têm sofrido com o aumento no valor do frete, que pode chegar a US$ 12 milhões para um trecho entre Caracas e Xangai.
Esse aumento de custo logístico provoca o crescimento do número de navios-tanque trafegando em alto-mar sem rastreamento. É cada vez mais recorrente a prática de desligar os transmissores para que os navios não possam ser rastreados por satélite a fim de burlar as barreiras e tarifas. Trata-se da modalidade off transponder, que configura uma verdadeira frota crescente de “petroleiros piratas”.
No caso do Irã, as rotas de abastecimento marítimo de petróleo têm registrado um número cada vez maior de casos de sistemas de localização desligados ou de transmissões de informações falsas sobre as cargas transportadas. Em entrevista à Sputinik News (3 out. 2019), quando questionado sobre o uso de táticas de “vendas secretas” por meio de “navios invisíveis”, o ministro iraniano do Petróleo, Bijan Namdar Zangeneh, sem negar ou condenar esse tipo de prática, respondeu: “Usamos qualquer método, fazemos o nosso melhor para exportar petróleo e não nos rendemos perante sanções. Todos os métodos são bons aqui. Exportar petróleo é nosso direito legal”.
No caso da Venezuela, a situação é ainda mais dramática. As sanções se estenderam para o embargo dos ativos da petrolífera PDVSA no exterior, levando o país a enfrentar uma maré negativa de redução dos investimentos, sucateamento de portos, encerramento de operações em terminais e engarrafamento de navios no Mar do Caribe. Esse conjunto de impactos levou o país a estimular o abastecimento de navios fora dos portos, em alto-mar, na modalidade ship-to-ship, o que aumenta os riscos de vazamentos e derramamentos. A angolana Sonangol Kalandula foi a primeira petrolífera a utilizar um navio-tanque carregado de petróleo venezuelano no modo navio a navio.
Diante desse cenário, as mais diversas empresas navais e petrolíferas têm utilizado as estratégias de mercado descritas. A chinesa Cosco Shipping Taker, que presta serviços de transporte para as petrolíferas CNOOC e Sinopec, teve cerca de um terço de seus petroleiros trafegando com transponders desligados. A inglesa Fendercare Marine, que presta serviços logísticos para as petrolíferas Shell e BP, ampliou o número de operações de carga e descarga navio a navio.
As novas táticas empresariais de transporte e logística marítima (off transponder e ship-to-ship), decorrentes das novas estratégias nacionais de guerra comercial (com sanções e embargos), podem ter alguma relação com o recente caso de vazamento ou derramamento de óleo que atingiu a costa do Nordeste brasileiro.
Os primeiros apontamentos indicaram, hipoteticamente, que o óleo poderia ser de procedência venezuelana, ao contrário do que sugeriram os mais apressados. Entretanto, seria muito improvável que as manchas de óleo tivessem descido diretamente da Venezuela em direção ao Brasil, dado que a região é impactada pela Corrente Marítima da Guiana, que orienta a maré no sentido contrário ao das manchas.
Sendo assim, foi considerada uma segunda hipótese: a possibilidade de que o desastre ambiental estivesse ligado a outro acidente. Nas costas de Sergipe e Alagoas foram encontrados tambores, bombas, frascos e alguns barris com a inscrição “Argina S3 30”, que identifica um óleo lubrificante da Shell cuja origem também pode ter relação com o DNA do óleo encontrado nas manchas que contaminam a costa brasileira. Disso não resulta, entretanto, que a petrolífera anglo-holandesa seja a imediata responsável.
Desse modo, foi considerada ainda uma terceira hipótese, a de que o óleo fosse de compradores da Shell. Estiveram sob monitoramento cerca de trinta navios suspeitos e as empresas transportadoras Hamburg Trading House FZE, Super-Eco Tankers Management e Delta Tankers. Esta última chegou a ser responsabilizada pelo caso quando das notícias de que o vazamento poderia ter ocorrido no petroleiro grego Bouboulina. No entanto, não há provas definitivas de que esse navio tenha realizado qualquer transferência em alto-mar, posto que chegou com sua carga integral ao ponto de destino na Malásia. Segue o mistério.
Em suma, apesar das incertezas, o mais provável é que o problema esteja relacionado ao transporte e à logística de petróleo, a empresas de navios-tanque e, em última instância, à guerra comercial iniciada pelos Estados Unidos, país para o qual, em certo sentido, o Brasil terceirizou a proteção e a fiscalização marítima quando aceitou diminuir investimentos da Marinha e acatar a reativação da IV Frota Naval USA para o monitoramento do Atlântico Sul.
Se o vazamento tiver acontecido durante uma transferência clandestina de óleo entre navios, não é possível saber se a quantidade encontrada é a total ou se ainda há mais óleo por aparecer, pois a capacidade de um tanque de navio-petroleiro pode ser de até 175 mil toneladas de porte bruto (TPB). Além disso, em contato com a água, o material pode entrar em processo de emulsificação e aumentar seu volume em até quatro vezes, sem considerar a absorção de areia, que pode torná-lo ainda mais pesado. As potenciais consequências negativas são muitas e de difícil mensuração.
A economia do turismo deve sentir o impacto negativo com perdas relacionadas à diminuição de viagens e de procura por atividades de transporte e alimentação, bem como lazer e cultura; para os banhistas, é importante evitar entrar nas águas onde estão sendo encontrados resíduos de óleo, pois o contato direto pode causar irritações na pele e nas vias respiratórias.
A economia do pescado, por sua vez, deve sofrer impacto ainda mais dramático, dado que o óleo adentrou por rios e mangues, atingindo municípios e comunidades ribeirinhas que vivem exclusivamente dessa atividade e que terão sua única forma de subsistência interditada por esse desastre ambiental.
No que se refere à biodiversidade, peixes, aves e plantas são os mais atingidos. O óleo vazado na superfície da água barra a entrada de luz solar, impedindo a fotossíntese. Além disso, a massa pegajosa gruda nas asas e nadadeiras dos animais, impossibilitando a locomoção e a obtenção de alimentos. A fauna oleada já atingiu mais de 140 espécies de animais, e a contaminação de recifes de corais pode provocar efeitos em cadeia sem precedentes.
A curto prazo, no que diz respeito à alimentação, por sua vez, é desejável que se evite a ingestão de peixes e frutos do mar das áreas contaminadas. Mariscos e ostras necessitam de maior atenção, dado que filtram a água para se alimentar; portanto, a probabilidade de haver substâncias tóxicas neles é maior.
Há que se considerar, também a curto prazo, os riscos crônicos para a saúde humana, pois a contaminação prolongada pode gerar problemas dermatológicos, respiratórios, reprodutivos, além de estresse, ansiedade e depressão.
Sendo assim, para além da causa do vazamento, é importante notar como esse desastre evidencia a falta de condições do Ibama e da Marinha para prevenir, monitorar, fiscalizar, investigar e apurar esse tipo de problema.
O Brasil dispõe, desde 2013, de um Plano Nacional de Contingências para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNC). A ativação do plano, entretanto, contou com problemas de gestão e de política.
Do ponto de vista da gestão, o PNC foi acionado apenas quarenta dias depois das primeiras evidências de manchas; as instruções ficaram restritas aos órgãos do Executivo federal e não foram compartilhadas com estados, municípios e sociedade civil; o Ministério do Meio Ambiente ignorou nota técnica e extinguiu três comitês responsáveis pela contenção do óleo; o Ministério do Turismo se antecipou aos laudos técnicos e inadvertidamente indicou que as praias atingidas não estavam impróprias para banho; a Secretaria da Pesca, desconsiderando todas as observações dos especialistas, sugeriu que os pescados poderiam ser consumidos sem preocupação; e a Marinha não dispunha de equipe técnica disponível e equipamentos necessários para uma operação dessa monta.
Do ponto de vista político, quando da ocorrência do desastre, por conta da política de ajuste fiscal austero, tanto o Ministério da Defesa e a Marinha quanto o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama sofriam com cortes de recursos e contingenciamentos orçamentários. Além disso, a política de desmonte da Petrobras tem feito com que a empresa desative parte de seus núcleos de proteção ambiental.
Em um ambiente de guerra comercial, intensificação da circulação clandestina de navios e ampliação do interesse geoestratégico e empresarial sobre as águas brasileiras, o desmonte das políticas de meio ambiente e de defesa coloca em risco nossas águas e nossos recursos naturais estratégicos. O maior desastre do mar brasileiro deveria servir de lição e alerta para um país cuja costa marítima é um ativo econômico, social e ambiental de magnitude incomparável e de natureza singular.
William Nozaki é professor de Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep).