Um mal endêmico entre os políticos
Se mesmo a dinastia Gandhi foi acusada de corrupção, o novo homem forte da Índia, Narendra Modi, não deixa nada a desejar a seus predecessores. Seus gastos de campanha com a edição legislativa (de 11 de abril a 19 de maio de 2019) bateram um recorde mundial
Quando o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, se apresentou como chowkidar (protetor) da nação, após os conflitos indo-paquistaneses que se seguiram ao atentado cometido na Caxemira em fevereiro de 2019, Rahul Gandhi, presidente do Partido do Congresso, replicou de imediato: “O protetor é um ladrão” (Chowkidar chor hai). Em vista do sucesso obtido por Modi, reeleito em maio de 2019 com maioria ainda mais expressiva que em 2014,1 a fórmula não pareceu impressionar muito. Entretanto, a corrupção continua sendo uma constante na vida política – e na vida em geral – da Índia.
Para além dos escândalos que a imprensa consente em divulgar, a Índia é, com efeito, o país da zona Ásia-Pacífico onde o suborno e a propina são mais praticados. E os mais afetados são os mais desfavorecidos: 73% dos pobres precisam recorrer a isso pelo menos uma vez por ano, contra 55% dos mais favorecidos, conforme a Transparência Internacional, organização controvertida, mas a única a publicar estudos (ver boxe na pág. 5).2 A corrupção facilita o acesso a serviços que deveriam ser públicos: documentos administrativos, casos de polícia, ligações elétricas e até cuidados hospitalares. O mundo econômico também se queixa dessas coerções ilegais, ao mesmo tempo que é questionado em numerosos processos espetaculares, pois empresários comprometidos precisaram deixar o país e os vínculos entre meio político e financiamentos obscuros alimentam “o império dos bilionários”, como escreve o jornalista James Crabtree.3
Sonhando construir uma Índia “sem [o Partido do] Congresso”, o Bharatiya Janata Party (BJP) de Modi denuncia o caráter dinástico dessa formação que vem dominando o cenário político desde a independência, em 1946. Ele a acusa de cortejar os muçulmanos e instrumentalizar os escândalos que eclodiram sob os governos congressistas. Afirma, assim, que Rajiv Gandhi, pai de seu adversário eleitoral Rahul Gandhi, “chamado de ‘Senhor Limpeza’ por seus cortesãos, terminou a vida como o corrupto número um”.4 Trata-se de uma alusão de mau gosto (Rajiv Gandhi foi morto em um atentado suicida) ao caso Bofors, um contrato para aquisição de canhões suecos concluído depois que comissões foram pagas secretamente a diversos intermediários, políticos e altos funcionários do Ministério da Defesa. Revelado em 1987, o caso contribuiu para a derrota de Rajiv Gandhi nas eleições gerais de 1989 e para a cisão do Partido do Congresso. Em 2004, a Suprema Corte de Délhi inocentou-o.
A liberalização comedida da economia indiana, promovida em 1991 pelo Congresso, deveria reduzir a corrupção dos funcionários ao desmantelar o “império da permissividade” – as facilitações reservadas às empresas. Ora, o novo dinamismo econômico favoreceu outro tipo de corrupção, associado às atividades doravante acessíveis ao setor privado, quer se tratasse de leilões de licenças para o lançamento da telefonia móvel 2G em 2007-2008 ou do chamado “escândalo Coalgate”: a concessão, sem leilões, de jazidas de carbono a empresas privadas em 2004-2009, durante o governo congressista de Manmohan Singh (2004-2014). Para o Estado, a perda de receitas chegou a bilhões de dólares.
O caso Rafale
Na abertura da instrução dos dois processos, em 2011, um militante, Anna Hazare, iniciou uma greve de fome para que fosse endurecido um projeto de lei sobre a criação de um mediador (Lokpal) em assuntos referentes a altos funcionários e ministros. Desencadeou-se um movimento de protesto maciço, bastante divulgado pelas mídias, elas próprias abaladas por denúncias de tráfico de influência, com alguns eleitos conseguindo encobrir suas atividades mediante pagamento.5 A mobilização se espalhou pelo país e deu nascimento ao Partido do Homem Comum (Aam Aadmi Party), que venceu as eleições na capital em 2013, mas não conseguiu se firmar nacionalmente. Todos os protagonistas foram inocentados no caso 2G e nenhum tribunal condenou Singh pelo “Coalgate”, mas os processos contribuíram para a derrota do Partido do Congresso nas eleições gerais de 2014. Ironia da história: foi ele quem defendeu a lei Lokpal em 2013! Porém, Modi só nomeou o primeiro mediador em março de 2019, um mês antes das eleições…
O Congresso pensava em se vingar do BJP com o caso dos Rafale quando, em 2015, o primeiro-ministro cancelou o primeiro contrato assinado em 2012, durante o governo de Singh, que contemplava 126 aparelhos, dos quais 108 seriam coproduzidos na Índia pela grande empresa pública de aeronáutica Hindustan Aeronautics Ltd. (HAL). Modi anunciou a substituição desse contrato pela compra já sacramentada de 36 aviões da fábrica francesa Dassault. Mas o preço unitário, em forte alta, bem como a escolha de uma indústria indiana próxima do poder, a Reliance ADA, para se beneficiar de boa parte das “compensações industriais” ligadas a esse tipo de compra, suscitaram interrogações. O tribunal de contas indiano encampou o processo, que era conduzido diretamente pelo gabinete do primeiro-ministro.6 A corrupção financeira não ficou estabelecida, mas o caso provocou a acusação de “capitalismo de conivência” tantas vezes lançada contra Modi, que consegue enormes financiamentos durante suas campanhas eleitorais. O processo, ainda em curso, não teve influência decisiva sobre o resultado das eleições gerais.
É que, além da retórica de segurança antipaquistanesa, a máquina eleitoral do BJP soube martelar bem a questão da luta contra a corrupção, jogando em dois campos. Primeiro: os inúmeros projetos apresentados após 2014 (muitos deles retomados pelo Partido do Congresso, mas com outros nomes e modificados) a fim de facilitar a distribuição das ajudas sociais e abrir contas bancárias para as famílias que não as tinham. Se os resultados efetivos dessas medidas provocam controvérsias entre peritos e políticos, o recurso ao computador foi apresentado como um meio seguro de estancar os canais da corrupção perene dos intermediários, burocráticos ou privados, por cujas mãos esses financiamentos passavam tradicionalmente.
Segundo campo: uma iniciativa espetacular, o recolhimento inesperado das notas de maior valor (500 e 1.000 rupias) operado em 2016. Essa decisão apressada, que afetava 86% da massa monetária em circulação, teve consequências muito negativas para a economia de um país onde os empregos informais são majoritários (portanto, pagos em dinheiro vivo) e para as micro e pequenas empresas. Segundo o discurso oficial, esse recolhimento iria acabar com o dinheiro escuso dos ricos, dos corruptos, dos falsários e dos terroristas. Na realidade, em 2017, o Banco Central da Índia anunciou que 99% das cédulas vencidas tinham sido trocadas, reduzindo a nada o argumento do governo7 – mas sem impacto eleitoral negativo.
A bem dizer, poucos partidos apresentam um balanço lisonjeiro. Vários dirigentes de agremiações regionais foram condenados por corrupção – Laloo Prasad Yadav no Bihar, Jayalalitha Jayram no Tamil Nadu –, sem que isso prejudicasse irremediavelmente seu partido e sem que a imagem maculada dos políticos afastasse os cidadãos das urnas: 67% participaram do último pleito legislativo.
De resto, entre 2014 e 2018, o país ganhou sete posições na classificação mundial da corrupção, ficando em 78º lugar – melhor que a China (87º), o Brasil (105º) e a Rússia (138º).8 O flagelo é sentido pela população, mas parece deixar margens de manobra aos políticos de todos os matizes. Será isso tão espantoso assim quando se sabe que, dos eleitos para a nova câmara, segundo a Associação para Reformas Democráticas, uma ONG especializada em transparência eleitoral, 43% estão sendo processados?9
Jean-Luc Racine é diretor emérito de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e pesquisador sênior do Asia Centre, Paris.
1 Ver Christophe Jaffrelot, “En Inde, comment remporter les élections avec un bilan désastreux” [Como ganhar eleições na Índia com um balanço desastroso], Le Monde Diplomatique, jul. 2019.
2 “People and corruption: Asia Pacific” [Povo e corrupção: Ásia-Pacífico], Transparency International, Berlim, 2017.
3 James Crabtree, The Billionaire Raj: A Journey Through India’s New Gilded Age [O Raj bilionário: uma viagem pela nova Idade Dourada da Índia], Tim Duggan Books, Nova York, 2018.
4 Press Trust of India, “Narendra Modi says Rajiv Gandhi’s life ended as ‘corrupt nº 1’” [Narendra Modi diz que Rajiv Gandhi terminou a vida como “corrupto nº 1”], Firstpost, 5 maio 2019. Disponível em: <www.firstpost.com>.
5 Anuradha Raman, “News you can abuse” [Notícias que podem ser distorcidas], Outlook, Nova Délhi, 21 dez. 2009. Ver também Benjamin Fernandez, “Une presse populaire qui ignore le peuple” [Uma imprensa popular que ignora o povo], Le Monde Diplomatique, maio 2014.
6 Ver Romain Mielcarek, “Pilotes ou marchandes de canons?” [Pilotos ou mercadores de canhões?], Le Monde Diplomatique, dez. 2018.
7 Arun Kumar, Demonetization and the Black Economy [Desmonetização e economia negra], Penguin India, Nova Délhi, 2017.
8 “Corruption perception index: global scores” [Índice de percepção da corrupção: placar global], Transparency International, 2018.
9 “43% of newly-elected Lok Sabha MPs face criminal charges: Report” [43% dos deputados recém-eleitos para a Lok Sabha enfrentam processos criminais: relatório], Association for Democratic Reforms (ADR), Nova Délhi, 18 jun. 2019. Disponível em: <www.adrindia.org>. Fundada por universitários em 1999, a ADR conseguiu da Suprema Corte, em 2003, que todos os candidatos às eleições declarassem sua situação legal e sua fortuna.
Candidatos eliminados no Senegal
Dois candidatos à eleição presidencial senegalesa de fevereiro de 2019, Khalifa Sall e Karim Wade, foram acusados e processados por desvio de dinheiro público e enriquecimento ilícito. A imparcialidade desses processos, que os impediram de participar do escrutínio, vencido pelo presidente em exercício, Macky Sall, foi questionada pela Anistia Internacional:
“Khalifa Sall, dirigente da oposição e prefeito de Dacar, preso em 2017, foi acusado de associação criminosa, cumplicidade e uso de falsas escrituras privadas de comércio, de falsidade e falsificação de documentos administrativos, de desvio e malversação de fundos públicos, além de lavagem de dinheiro. A liberdade sob fiança lhe foi recusada várias vezes. Elegeu-se ao Parlamento em julho de 2017, estando ainda na prisão. […] Em junho de 2018, o tribunal da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental determinou que a detenção de Khalifa Sall era arbitrária e que seus direitos à presunção de inocência, à imunidade parlamentar e à assistência advocatícia haviam sido ignorados. […]
Em março de 2015, o Tribunal de Repressão ao Enriquecimento Ilícito condenou Karim Wade, ex-ministro e filho do ex-presidente da República Abdulaye Wade, a seis anos de prisão e multa de 210.744.000 euros por enriquecimento ilícito […]. Esse tribunal não segue as normas internacionais e regionais em matéria de equidade processual, principalmente porque suas decisões não são suscetíveis de apelação. A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos considera que o direito de apelação a uma instância jurisdicional superior é um dos elementos essenciais de um processo justo. Em abril de 2016, o Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Detenção Arbitrária considerou que a prisão provisória de Karim Wade era injusta, sobretudo pela demora do processo e pela diferença de tratamento observada. Karim Wade foi libertado em junho de 2016, por indulto presidencial.”
– Anistia Internacional, “Senegal: All Talk. No Action” [Senegal: muita conversa, pouca ação], 9 ago. 2018. Relatório destinado à 31ª sessão de exame periódico universal, Nações Unidas, nov. 2018.