Um olha sul-africano sobre a segregação
Durante o apartheid, a África do Sul estreitou seus laços políticos, econômicos e militares com Israel. Com o fim do regime de segregação, os sul- africanos se solidarizaram com a causa palestina, identificando semelhanças entre a opressão praticada pelos israelense e aquela sofrida pelos negros até os anos 1990
Ele me lembra um esboço do famoso caricaturista sul-africano Zapiro, de novembro de 2001: na imagem, alguns judeus foragidos, entre os quais se pode reconhecer Nadine Gordimer, Prêmio Nobel de Literatura, e o próprio Zapiro, se esquivam de uma fortaleza onde há uma faixa escrita: “Apoio incondicional a Israel”.
Durante toda a vida, o sr. Ronnie Kasrils se dedicou a mover montanhas. Filho de imigrantes judeus provenientes do Báltico, ele nasceu em 1938 na África do Sul e descobriu rapidamente a face do racismo. Em particular, com os eventos ocorridos em Sharpeville em 21 de março de 1960: na ocasião, a polícia atirou em manifestantes negros desarmados, matando dezenas de pessoas. O massacre, prelúdio de uma resistência que culminaria numa ditadura aberta, produziu ampla repercussão internacional em um momento em que a maioria dos países africanos já havia conquistado sua independência.
Como poderia Kasrils fechar os olhos diante de uma opressão que lhe fazia lembrar tão bem as narrativas de seus pais sobre os pogroms no Leste Europeu? Ele se filiou então ao Partido Comunista e ao Congresso Nacional Africano (ANC) e, posteriormente, realizou uma longa caminhada, de quase 30 anos, da clandestinidade ao exílio. Chefe do setor de Informação do exército ligado ao ANC, aceitou com serenidade a qualificação de “terrorista” que lhe foi imputada. “Armado e perigoso”1, assim as autoridades o descreveram na televisão nos anos 1970. Com o fim do apartheid, ele retornou ao país em 1990 e ocupou vários postos ministeriais, antes de abandonar suas responsabilidades governamentais no final do ano passado.
Como militante antiapartheid, comunista e judeu, ele se sensibiliza de pronto com o drama palestino. Em fevereiro de 2004, ainda como ministro do Departamento de Águas e Florestas, fez uma visita a Yasser Arafat, então cercado pelo exército israelense dentro de seu quartel-general de Mouqataa, em Ramallah. “Pela janela, Arafat me mostrou a paisagem e disse: ‘Este local é igualzinho a um bantustan2’. Ao que eu repliquei: ‘Não, nenhum bantustan jamais foi bombardeado por aviões, pulverizado por gases… Ao contrário, o governo de Pretória injetou somas consideráveis, construindo prédios administrativos impressionantes e até mesmo autorizando que linhas aéreas saissem dos bantustans, fazendo-os ser reconhecidos pela comunidade internacional’”.
A onda de revolta com os mais recentes conflitos em Gaza, de dezembro de 2008 a janeiro de 2009, atingiu rapidamente a África do Sul, suscitando uma vasta mobilização e várias manifestações. O poderoso Congress of South African Trade Unions (Cosatu) – sindicato que já havia impedido o embarque de carga repleta de armas com destino ao governo do Zimbábue em abril de 2008 –, pediu o boicote aos navios israelenses.
“Espontaneamente, no seio da população existe uma simpatia pelos palestinos, já que aqui todos compreendem o paralelo entre Palestina e África do Sul, entre Gaza e a situação que existia nos bantustans de Transkei e Ciskei”, explica o Adam Habib, vice-reitor da Universidade de Johannesburg, encarregado de pesquisa e inovação.
O governo sul-africano condenou “dentro dos termos mais vigorosos a escalada de violência exercida por Israel com a ofensiva por terra na faixa de Gaza” e convidou o governo israelense a cessar o “massacre” e a retirar suas tropas “imediatamente e sem impor condições”. Durante um encontro com o embaixador de Israel, os parlamentares sul-africanos afirmaram que a atitude de seu exército fazia o apartheid lembrar um “piquenique dominical”, e o presidente da Comissão de Política Internacional, Job Sithole, comparou o tratamento dado aos palestinos nos checkpoints ao tratamento dado ao gado.3
Nessas condições, o apoio oferecido pelos líderes da comunidade judaica na África do Sul à política de Israel, incluindo os intelectuais que haviam se mobilizado contra o apartheid4, sofreu reprovações e críticas. “O defensor m ais obstinado pró-Israel durante os ataques a Gaza, não foi o embaixador israelense, mas o rabino Warren Goldstein, que aprovou sem a menor reserva os bombardeios em Gaza, algo que ninguém pode entender”, lamenta Habib.
A direção das organizações judaicas, em um comunicado, proclamou seu “firme apoio à decisão do governo de Israel de lançar uma operação militar contra o Hamas em Gaza”. Alguns dias depois, a entidade se mostrou indignada que seu próprio amálgama entre judeus e Israel tenha provocado protestos antissemitas na internet, que apelavam por boicote contra as lojas de judeus. Esses protestos, claro, foram firmemente condenados pelo governo, pelo ANC, por intelectuais muçulmanos e pelas organizações de apoio ao povo palestino.
A veemência das polêmicas em torno de um conflito situado a milhares de quilômetros não surpreende. Ela mantém os laços, alguns visíveis, outros não, que ligam as trajetórias da África do Sul e Israel. Por um acaso histórico, algumas semanas apenas separam a criação do Estado de Israel, em maio de 1948, da vitória do Partido Nacional nas eleições legislativas da África do Sul. Este último levou ao auge a segregação racial já em vigor, realizando a política de apartheid ou “desenvolvimento separado”. Os dirigentes do Partido Nacional, aprisionados durante a Segunda Guerra Mundial por simpatizarem com o nazismo e marcados pelo antissemitismo, estabeleceram uma relação cada vez mais estreita com o Estado de Israel.
O universitário israelita Benjamin Beit-Hallahmi explica esse paradoxo: “Pode-se detestar os judeus e amar os israelitas porque, de alguma forma, os israelitas não são judeus. Os israelitas são colonos e combatentes, como os afrikaners. Eles são duros e resistentes. Sabem como dominar”. Contrariamente, prossegue ele, há uma visão de judeus vinculada a certo imaginário (e a antissemitas) – “a recusa de se afirmar pela força física, uma passividade, um lado intelectual. Assim, pode-se detestar os judeus, mas ter muita admiração pelos israelitas”.5
Estabeleceu-se então uma colaboração entre os dois Estados, que aparentemente eram bem distintos. Moshe Sharett, ministro israelita de Relações Exteriores, realizou sua primeira visita à África do Sul em 1950. Em novembro de 1984, quando as Nações Unidas haviam decidido pelas sanções contra o regime de apartheid, o chefe da diplomacia sul-africana, Roelof Frederik “Pik” Botha, foi recebido em Israel. Itzhak Rabin era o primeiro-ministro. Para analisar a questão, um correspondente do Le Monde evocou as “relações estreitas entre os dois países” e afirmou que Israel era então o único Estado do mundo a sustentar relações com os bantustans “independentes”, alguns dos quais considerados “gêmeos” das colônias israelitas na Cisjordânia.6
As ligações entre Israel e África do Sul eram sólidas no âmbito econômico e estavam sob o comando do Histadrout (sindicato dos trabalhadores “socialistas”), que controlava, nos anos 1970-1980, parte importante da economia israelense. Por meio da sociedade Hevrat Haovdim, ele administrava um quase monopólio de comércio com a África do Sul. E os kibutzim não eram exceção: o Lohamei Hagetaot (“Combatentes do Gueto”), fundado por judeus oriundos de países do Leste europeu que haviam lutado contra o nazismo, gerenciava a usina de Kama, dentro do bantustan de Kwazulu.
Mas foi no âmbito do domínio militar e da segurança que a aliança entre os dois países revelou sua dimensão estratégica. Israel ajudou a África do Sul a obter a bomba atômica e sistemas de mísseis.7 O adido militar israelita em Pretória era membro do Estado-Maior sul-africano – o outro único adido de similar estatura ficava a postos em Washington. As armas israelenses eram fabricadas sob licença na África do Sul.Os serviços de inteligência dos dois países colaboravam intensamente em nome da luta contra o comunismo e, já na época, “o terrorismo” – onde colocavam a ANC, a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), movimentos de libertação das colônias portuguesas (Angola e Moçambique) e a South West África People’s Organization (Swapo), que organizou o combate pela independência da Namíbia, ocupada pela África do Sul. O general de brigada “Rois Rus” Swanepoel, principal “interrogador” no caso Rivonia, de 1964 – processo no qual Nelson Mandela se livrou da prisão perpétua –, fundador das brigadas de contrainsurreição na Namíbia e conhecido pela alcunha de “açougueiro de Soweto” por ter esmagado a revolta dessa township em 1976, contabilizando centenas de mortes, era recebido regularmente em Israel nos anos 1970. Além disso, Uri Dan, jornalista e conselheiro do Ariel Sharon, costumava afirmar sua admiração pelo exército sul-africano.8
Para o sr. Kasrils, para além das diferenças entre os dois sistemas – Israel, por exemplo, não tem necessidade de mão-de-obra autóctone e concedeu direito ao voto a sua minoria árabe – as convergências ideológicas são gritantes: “Os primeiros colonos holandeses, os chamados afrikaners, utilizaram a Bíblia e o fuzil. Como os israelitas da Bíblia, eles pretendiam ser o ‘povo escolhido’ com uma missão civilizatória”.
Essa cumplicidade não suscitou críticas dentro da comunidade judaica que, ao contrário, colocou no ostracismo seus membros engajados no ANC e no Partido Comunista. Andrew Feinstein, antigo deputado do ANC, que teve parte da família morta em campos de extermínio nazistas, conseguiu que o parlamento da nova África do Sul abrisse espaço para uma sessão, em maio de 2000, dedicada ao Holocausto. Ele explica que a massa da população branca, cuja maioria girava em torno de 100 mil judeus sul-africanos, ficou muda durante o apartheid. Mesmo assim, “há paralelos evidentes entre a política imposta aos judeus pelos nazistas entre 1933 e 1939 e aquela imposta à maioria de sul-africanos durante o apartheid”9. Ele cita o exemplo de Percy Yutar, procurador-geral no processo contra Nelson Mandela e que pediu a pena de morte para o acusado: ele foi eleito líder da mais importante sinagoga ortodoxa de Johannesburg e elogiado pelos dirigentes das instituições judaicas como “um grande trunfo para a comunidade”.
A colaboração entre Israel e o regime de apartheid se arrastou após a eleição de Nelson Mandela à presidência em 1994, culminando em nítida degradação das relações entre os dois países. O novo governo suspendeu a colaboração militar – honrando os contratos assinados que expiraram em 1998 – e se engajou fortemente à causa palestina e de Yasser Arafat. Essas relações permaneceram após a explosão da segunda Intifada, em setembro de 2000, a despeito das pressões internacionais exercidas por países como Estados Unidos e Israel, que haviam sido cúmplices do regime de apartheid.
Após o falecimento do líder da OLP, em novembro de 2004, Nelson Mandela disse que este havia sido “um dos mais excepcionais combatentes pela liberdade de sua geração”. Ainda assim, como reconhece de bom grado Aziz Pahad, antigo vice-ministro sul-africano das Relações Exteriores encarregado pelo Oriente Médio, não se pode negar o peso da realpolitik e da “contradição entre a realidade da política estrangeira oficial e as posições de princípio adotadas pelo ANC [apoio à Palestina, à independência do Saara ocidental etc.]”. A nova África do Sul, que precisa do apoio dos países ocidentais, não pode romper suas conexões com Tel Aviv. A densa rede de relações econômicas com Israel, conduzida pelo setor privado, continua importante para o país.
Essa realpolitk ofende os movimentos de apoio à Palestina, como revela um documento intitulado, nada mais nada menos, que “A cumplicidade da África do Sul democrática com a ocupação israelense, com o colonialismo e com o apartheid”10. Na’eem Jeenah, diretor executivo do Centro África – Oriente Médio11 em Johannesburg, avalia que o ex-presidente Thabo Mbeki era “a favor de uma forma de normatização com Israel. O comércio entre os dois países cresceu de 15% a 20% este ano, especialmente nos setores de segurança pessoal e de bens. Foram feitas até mesmo tentativas para reanimar as relações militares”.
*Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).