Um olhar negro, feminista e periférico sobre ‘Ainda Estou Aqui’
O filme é um olhar sobre uma realidade específica durante a ditadura, não sendo da maioria de brasileiros, que ainda sofrem uma repressão violenta na periferia
Fui ao cinema em Lyon, na França, assistir ao filme Ainda estou aqui, com a presença do diretor Walter Salles. Acompanhada de um amigo negro, da periferia de Recife, nos sentamos nas primeiras cadeiras. O cinema estava lotado. Nunca vi tantos brasileiros juntos na cidade, mas podíamos contar nos dedos quantos ali eram negros.
O filme começou e, logo de início, o meu incômodo: jovens brancos de Copacabana, fumando maconha, querendo mudar o mundo, sem lavar a própria louça, são abordados pela polícia. Embora o período seja de Estado de Exceção, nem de longe podemos comparar com as abordagens policiais nas favelas e periferias do Brasil. Aliás, a população negra destas áreas, jamais poderá dizer que houve um período de paz e democracia, pois o Estado de Exceção é a norma.
Com o avançar do filme, o incômodo aumentou, sobretudo quando dei-me conta de que o olhar da obra se fechou numa família burguesa, enquanto o mundo ao redor, feito de negros e negras, pardos e indígenas, convivia com as forças de repressão, a alta inflação, os empregos concentrados nas capitais do sudeste, a fome e o abandono, o amontoado de gente que chegava do norte e nordeste para inflamar ainda mais as favelas abarrotadas, sem saneamento básico, saúde, educação para a maioria, onde o índice de analfabetismo era altíssimo. Não estou desqualificando o sofrimento e as mortes das famílias das classes médias e da burguesia durante este período, mas sublinhando que o filme é um olhar sobre uma realidade específica, que não é da maioria de brasileiros. O que tem de novo na Ditadura Militar, que durou 21 anos, é que a violência do Estado, presente no aparato militar, se voltou contra corpos brancos e com dinheiro, o que era exceção até então. A população negra sempre, repito, sempre, conviveu com a truculência, as torturas em delegacias e prisões, o desaparecimento forçado, a alteração de provas e da cena do crime, enfim, com o genocídio. Neste mesmo período, por exemplo, os empresários do ramo imobiliário, em conluio com os militares, intensificaram a expulsão da população das favelas com o intuito de alocar as famílias das classes médias. A luta pela liberdade de expressão ainda era um sonho distante quando a grande massa estava lutando por comida, moradia, trabalho e a própria sobrevivência, luta esta que começou com a abolição da escravidão, em 1888, e continua até hoje.
A figura da empregada doméstica foi um ponto forte. Virei para o meu amigo ao lado e disse: “Olha o quartinho da empregada!”. Ele devolveu: “a moça já tinha uma máquina fotográfica Super 8. Zezé, a doméstica, dormia num quarto afastado do resto da família que, por sua vez, vivia rodeada de amigos, bom vinho, Bossa Nova e Samba. Nada sabemos da vida de Zezé, onde ela morava, se tinha filhos e com quem os deixava, o que os agentes do Estado fizeram com ela quando Eunice e Rubens não estavam e ela precisou cuidar das crianças, deixando a sua própria família, quem sabe onde. Naquela época, não existia a PEC Das Domésticas e, mesmo uma família progressista poderia fazer uso da mão de obra, sem nenhum pagamento dos direitos trabalhistas. O salário era aquilo que a família decidia pagar, podendo ser uma quantia, alguns trocados ou, simplesmente, um quarto e a comida.

Quando dona Eunice volta da prisão e lhe diz para comprar um avental novo, ela toma coragem para cobrar o salário atrasado. O que é um avental diante do dinheiro que alimenta as bocas que ficaram em casa? Pois é, dona Eunice preocupada com o avental de Zezé, minha nossa senhora do absurdo! A patroa pede desculpas. Olhando pela perspectiva da patroa, não era mesmo possível lembrar do salário da empregada quando o marido tinha sido levado pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e ela ter passado dias em um dos centros de tortura, com a filha, menor de idade. Olhando pela perspectiva de Zezé, como pensar no avental, quando se tinha deixado a própria família para cuidar daquela da patroa, renunciado a uma vida só sua, para morar num quartinho, ver os patrões serem presos e assumir o cuidado das crianças e adolescentes, com o salário atrasado? Quanto era este salário na época? O efeito imediato de um dia de atraso no pagamento, para a classe trabalhadora mal remunerada, é a fome. Fome. Um ou dois dias de atraso no salário é armário vazio, contas atrasadas e juros, além de muitas bocas que dependem disso. E, quando a família não consegue mais manter a empregada, Zezé é realocada em outra.
Depois disso, os filhos começam a limpar e a cozinhar, organizando uma escala de divisão de tarefas. Lembrei-me logo da atriz Carolina Dieckmann que, numa entrevista, disse ter aprendido a lavar o próprio banheiro nos Estados Unidos. Se as famílias burguesas, com seus filhos crescidos, se organizassem para limpar a própria sujeira e fazer a própria comida, se deparariam com uma coisa óbvia: dá para fazer.
E, a especificidade da realidade do filme é também visível no rebaixamento econômico da família Paiva, que precisou vender o terreno, dispensar a empregada e se mudar para São Paulo. E, mesmo assim, dona Eunice conseguiu fazer faculdade, os filhos também, inclusive mudaram de país. As nossas mulheres estão nas cozinhas há mais de 400 anos, sem mobilidade de classe e, os descendentes, repetindo os mesmos trabalhos e reproduzindo as desigualdades, inclusive na educação. O que explica isto? O racismo. É o racismo, na sociedade brasileira, que impede negros e negros de saírem do lugar. O Brasil pouco andou para a grande massa presa na base da pirâmide social. De geração a geração, nos falta capital econômico, social e cultural, até mesmo para projetar internacionalmente, nossas histórias nas salas de cinema. O meu tio José, paraibano de Remigio, estava no Rio de Janeiro neste período, na favela da rocinha, e foi preso por não ter consigo a carteira de trabalho. Foi o primo dele, Cícero, quem andou pelas delegacias à sua procura e provou que era um homem trabalhador. Em São Paulo, neste mesmo período, a minha tia Isabel, irmã de José, saiu para trabalhar na casa de uma família e dela, nunca mais a família teve notícias. Não dava nem para reivindicar o desaparecimento, mal tinham dinheiro para o ônibus. Isabel desapareceu do nada. O meu pai, quando vivo, disse que ela trabalhava na casa de gente que mexia com política. Da Ditadura ele sabe apenas que não podia rasgar a bandeira do Brasil e que os Comunistas eram pessoas más. O nosso povo morria de fome, por falta de atendimento médico, pela violência do Estado, por não saber sequer o que era Comunismo, Capitalismo, liberdade de expressão ou direitos. Nada. O meu povo morria e pronto.
Walter Salles, no final da sessão, disse que conviveu com a família de Rubens Paiva, era amigo de Nalu, frequentava a casa e ouvia as discussões sobre política, abertas a todas as idades. E, quando ele leu o livro do amigo, Marcelo, autor de Ainda Estou aqui, foi um momento de Catarse. É preciso identificação para fazer um filme desses. Eu pensei nas nossas histórias negras que circulam no mercado editorial, ainda tão marginalizado, e na falta de projeção nacional e internacional. Vou dizer uma coisa para vocês, o meu momento de catarse foi durante a leitura do livro Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, quando eu morava na Itália e fazia mestrado em Filosofia. Eu era a única estrangeira da sala, a única negra, a única que vinha da pobreza. Eu estava estudando Simone de Beauvoir, Carla Lonzi, Luiza Muraro, Lucy Irigaray etc. Me sentia profundamente sozinha, deslocada, angustiada, pois, o que falavam sobre “ser mulher”, não tinha nada a ver comigo e, todas as vezes que abria a boca, era violentamente silenciada, chamada de ressentida, que não tinha entendido a perspectiva “feminina”. Aí eu li Carolina, a sua descrição da fome, “A fome é amarela”, a luta para manter vivos os filhos. Nossa! Eu tinha me encontrado, assim como a história da minha família afrobrasileira. Catarse para mim foi durante a leitura do livro Um defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, minha Nossa Senhora da Lucidez! Era isso, estavam falando da gente. Mas, aí, um diretor com o capital econômico e social de Walter Salles, que se identifica com as nossas histórias negras, projetar internacionalmente, são outros quinhentos.
Eu gostaria de terminar dizendo que o filme é de suma importância para o resgate da memória sobre o que foi a Ditadura Militar no Brasil, a saber, única que nunca puniu os seus algozes, pelo contrário, o Estado ainda os mantém na boa vida. A atriz Fernanda Torres tem uma interpretação incrível, tanto quanto a mãe que, somente na cena final, aquela do olhar, sem dizer uma única palavra, merecia um prêmio. Todo brasileiro e brasileira deve reivindicar a memória e a história dos seus mortos. Os meus, por exemplo, não morreram em 21 anos, mais ao longo de séculos de colonização e escravização, golpes de estados e violência policial, de um projeto de genocídio negro que não tem fim, inclusive dentro de um regime democrático de direitos. E continuam morrendo com os mesmos métodos de tortura militar do período que, para muitos, ficou para trás. No meu próximo livro Os meus mortos pedem nomes, eu grito por todos eles.
Ps. Gostaria de saber como vai a família de Zezé, a empregada da família na época.
Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, escritora e feminista negra radicada na França