Um pacto para salvar o planeta
Uma das pensadoras que iniciaram a denúncia do neoliberalismo, nos anos 90, sugere alternativa contra o aquecimento global. Para ela, só sociedade civil pode evitar a catástrofe ecológica — mas é preciso envolver governos e até empresas, num projeto que recupera idéias do keynesianismoSusan George
O Forum Internacional sobre Globalização e o Instituto de Estudos Políticos, dos EUA, em conjunto com o Projeto Global sobre Transições Econômicas e a União Progressista dos Estudantes da Universidade George Washington, organizaram um grande seminário de 14 a 16 de setembro de 2007 em Washington. Nele, sessenta palestrantes discutiram a crise ecológica e a mudança climática. Eis minha contribuição
Agradeço por me convidarem para contribuir com este extraordinário seminário. É um grande privilégio e uma honra estar aqui.
À medida que as pessoas se conscientizam cada vez mais sobre a mudança climática e a crise ecológica, começam a se preocupar e procurar soluções. Desculpem-me por ser uma herege e contrariá-los desde o início — mas, na minha oponião, passou o tempo de dizer-lhes para que mudem seus comportamentos e suas lâmpadas, explicando que se “Nós” todos fizermos isso juntos, “Nós” poderemos salvar o planeta. Perdoem-me, mas “Nós” não podemos. Não estou sugerindo que as pessoas não deveriam mudar seus costumes e suas lâmpadas. Mas mesmo se a população inteira da Europa, por exemplo, onde eu vivo, mudasse seus hábitos drasticamente (o que é muito improvável), não seria suficiente. Concordo que as propostas para produção local, redução de tamanho e de potência são vitais — mas temos também que aumentar nossa mobilização e força para desafiar os governos e as práticas da economia capitalista. Precisamos provocar e promover um salto de quantidade e qualidade na escala da ação ambiental, reconhecendo que algumas vezes o grande também pode ser bonito.
Como acredito que soluções locais são necessárias mas insuficientes, vou usar meu tempo para abordar os problemas paralelos dos governos e do sistema de produção e finanças do capitalismo. A pergunta com que luto é: podemos salvar o planeta enquanto o capitalismo internacional continua sendo o sistema dominante, com seu foco no lucro, prioridade para os acionistas, disputa predatória pelos recursos em todo o mundo e capital financeiro sem barreiras, decidindo cada vez mais os destinos do mundo? Podemos salvar o planeta sendo confrontados por uma casta poderosa que tem um único objetivo? Um homem sábio certa vez descreveu esta situação: “Tudo para nós, nada para os outros parece ter sido, em todas as épocas, a máxima vil dos donos do mundo”. Este homem não foi Karl Marx, mas Adam Smith, e ele sabia uma coisa ou outra sobre capitalismo.
Na maior parte das vezes eu respondo: não podemos. Nós não podemos reverter a crise ecológica e climática sob o capitalismo, mas esta é uma resposta pessimista — e se for verdadeira, significa que não há praticamente nenhuma esperança. Sem chances. Não vejo como mesmo os mais convencidos e determinados poderiam superar o capitalisto rápido o suficiente para iniciar a mudança de sistema necessária antes de uma crise climática fora de controle.
Em primeiro lugar, não há tanta gente convencida e determinada para agir contra o sistema econômico dominante, e não há nada que se assemelhe a um partido revolucionário de vanguarda que pudesse liderar estas pessoas, mesmo que elas existissem. Não há uma saída universal para o capitalismo. Considerando a memória histórica e o papel de alguns partidos e algumas soluções, acho que isso é, com certeza, algo bom. O que não é de modo algum uma coisa boa é a infecção do mundo inteiro pela ideologia neoliberal. Ela criou uma ordem mundial mais conservadora, predatória, orientada pelo lucro, alérgica ao tipo de mudança fundamental que uma Nova Ordem Econômica Ecológica requer.
Uma minoria continua vivendo muito acima do que é sustentável, muito depois de iniciada a crise
Além disso, ninguém sabe, para falar de forma figurada, quem é o Czar a ser derrotado, e ninguém tem uma pista de onde encontrar o Palácio de Inverno que teríamos que destruir. Sabemos que o Palácio de Inverno não é em Wall Street — que estava em pé e agitada de novo alguns dias depois do 11 de setembro, e é só um dos muitos centros capitalistas. Os mundos de 1917 e 2007 são completamente diferentes: é preciso examinar este impasse e encontrar uma nova síntese.
Vamos primeiro olhar para uma questão um pouco mais simples: “E os governos?” As sociedades estão, em geral, à frente de seus governos — e isso é particularmente claro em países como os Estados Unidos. O problema político não é simplesmente “jogar fora os inimigos”, porque eles iriam ser substituídos por outros igualmente ruins, igualmente submissos às corporações, seus lobbies e os mercados financeiros. O problema é convencer os políticos de que a transformação ecológica e práticas a favor do meio ambiente podem compensar politicamente.
Ativistas e especialistas precisam trabalhar com políticos e governos locais, regionais, estaduais e nacionais, para ajudá-los a achar parceiros com visões semelhantes e formular projetos ambiciosos, que possam empreender na mais extensa escala. Ativistas e especialistas devem, além disso, ajudar estes políticos e governantes a se transformar em exemplos brilhantes de práticas ecológicas, cujos esforços e sucessos fossem amplamente divulgados. Que tal se os organizadores desse seminário agissem com o núcleo de algo como um fórum sobre os melhores padrões e práticas? Um encontro capaz de reunir ativistas, especialistas e governantes, para difundir as melhores iniciativas do setor público — grandes iniciativas, porque a melhor prática ecológica ainda é feita em muito pequena escala e continua mais próxima do folclore do que de empreendimentos políticos em que se possa acreditar.
Agora, vamos ao tópico mais difícil e crucial do sistema econômico como um todo. Em seu livro Collapse, Jared Diamond examina alguns casos de anteriores de extinções de sociedades devidas à super-exploração da natureza e identifica muitas características em comum. Uma delas é o isolamento das elites, que lhes dá capacidade de manter um padrão de consumo muito acima do nível ecologicamente sustentável, por muito tempo depois de a crise ter chegado nos membros mais pobres e mais vulneráveis da sociedade. É o ponto a que chegamos agora globalmente, e não apenas em lugares isolados como a Ilha de Páscoa ou a Groenlândia. Nossas elites financeiras, empresariais e políticas estão todas ocupadas agarrando o que podem hoje, sem pensar em amanhã. Observe as empresas de óleo e carvão, ou as rápidas vendas de jatos privados, ou os 946 bilionários da Forbes, que têm, juntos, tem muito mais riqueza do que dois terços da humanidade. O lema continua sendo “depois de mim, o dilúvio”.
A recessão virá, e exigirá ferramentas econômicas distintas das neoliberais. Que tal lembrar do keynesianismo?
Como podemos realmente combater estas pegadas ecológicas das elites-dinossauros, reconhecendo que não temos a opção de gritar “Cortem suas cabeças”, como em alguma revolução mundial imaginária. Nem podemos forçá-las a mudar a si mesmas e o sistema que as tem servido tão bem; embora saibamos que precisamos mudar o sistema, porque ele está acabando com o planeta e vai continuar a fazê-lo, na lógica que lhe é inerente.
Certamente, alguns me acusarão de querer dar ao capitalismo um novo sopro de vida. Mas vou propor, como um “ingrediente de mudança sistêmica”, uma retomada de aspectos do keynesianismo. Nasci em 1934, nos Estados Unidos, e me lembro muito bem de quando o país voltou drasticamente sua economia para o esforço de guerra. Em minha cidade natal (Akron, estado de Ohio), todas as fábricas de borracha, que antes forneciam para a indústria de automóveis ou caminhões, passaram a produzir para veículos militares. Havia um enorme envolvimento e apoio dos cidadãos. Milhares de fábricas, laboratórios de pesquisa, projetos habitacionais, bases militares, postos de saúde e escolas foram construídas ou ampliadas durante a guerra. O transporte público foi melhorado e operava sem para, para que milhões de homens e mulheres pudessem se deslocar para bases do exército ou novos serviços de defesa.
Sim, ainda havia conflitos de trabalho e as grandes empresas obtinham mais contratos governamentais do que as pequenas, mas em geral os trabalhadores eram melhor pagos, os negros e mulheres começaram a obter alguns ganhos modestos e o esforço de guerra finalmente tirou os Estados Unidos da Depressão. Foi a aplicação do keynesianismo, numa enorme escala. Havia também um grupo de homens de negócio da elite, chamados “Homens de Um Dólar por Ano”, que eram emprestados de suas empresas para o governo, e encarregados de garantir que a produção militar e os objetivos de qualidade fossem alcançados. Tinham um enorme prestígio: lembro que costumava me exibir para meus pequenos colegas na escola, afirmando que meu avô era um Homem de Um Dólar por Ano.
Por que eu estou voltando nessa história antiga? Porque eu acredito que temos hoje uma oportunidade parecida. A economia norte-americana parece estar se encaminhando para uma recessão. Iniciada pela crise dos empréstimos subprime, ela vai, no entanto, mais fundo do que isso; as perdas para as pessoas comuns, em termos de empregos, casa, consumo e qualidade de vida serão sérias. Se estou correcta, se os problemas econômicos neste país e no resto do mundo vão se complicar, se os EUA estão se movendo rapidamente para a recessão, então algumas novas ferramentas econômicas terão de ser usadas. As velhas, simplesmente já estão esgotadas e têm muito pouco ou mais nada para oferecer.
Um grande estímulo à reconversão da economia e à energia limpa, financiado por impostos internacionais
Por exemplo, o dólar é extremamente fraco. Isso tornou as exportações dos EUA mais baratas, mas novas desvalorizações implicarão enorme risco. Os déficits orçamentários já são inacreditáveis e o país está altamente endividado, assim como as famílias. A bolha imobiliária começou a estourar. A Banco Central promoveu novas reduções das taxas de juros, mas ai há limites.
Se estas ferramentas tradicionais não funcionarem, então a única que consigo imaginar para tirar os EUA da depressão econômica é um novo keynesianismo — dessa vez não militar, mas ambiental; um empurrão de investimento maciço em conversões e indústrias ambientalmente corretas; em fontes de energia alternativas; na manufatura de materiais leves para o uso em novos veículos e aviões; em um transporte público eficiente e limpo; na construção verde de indústrias e sua reconstrução etc.
Como poderia ser financiado um esforço assim, que envolveria gastos governamentais planejados, no sentido keynesiano tradicional? Criando impostos sobre emissão de carbono, sobre a compra de ações, sobre os lucros das corporações transnacionais e — para encorajar o consumo local — impostos sobre os quilômetros percorridos no transporte da comida que comemos e da roupa que vestimos. Nos países do Sul, a melhor medida seria o total cancelamento da dívida pública, com a condição de que uma parcela importante da economia alcançada seria destinada a conservação ambiental e conversões da produção. Também precisamos de salvaguardas para evitar uma deslocalização — agora, a das indústrias ecológicas — para a China e outros países países de salários baixos. Em outras palavras, precisamos de alguma forma de protecionismo — mas deixem os indianos investirem em Indiana, e os chineses em Chicago, se eles querem pagar os padrões norte-americanos de salário e respeitar leis e normas. Também devem ter a permissão para “estabelecer-se e vender aqui”.
As novas indústrias e produtos, ambientalmente corretos, teriam um enorme valor de exportação, e poderiam rapidamente tornar-se o padrão mundial. Estou tentando descrever um cenário que possa ser vendido às elites, porque não imagino que elas vão abraçar valores ambientais e conversões se não houver nada em troca para elas. Mas esta visão não é meramente um esforço cínico para conseguir que ajam de acordo com nossos interesses. Também há muitas vantagens para os trabalhadores, em uma economia assim. Uma grande conversão ecológica é trabalho para uma sociedade de tecnologia, habilidades, produtividade e empregos avançados. Ela seria apoiada, imagino, por toda a população, porque significaria ter não apenas um ambiente melhor, mais limpo e com um clima mais ameno, mas também empregos, melhores salários, assim como uma proposta humanitária e justificativa ética – assim como a luta contra o nazismo e o fascismo.
Em outras palavras, é o sonho de um profissional de Relações Públicas… Qualquer partido político entende que pode ganhar eleições, com tal programa. Deveríamos iniciar uma nova economia ecológica na Europa; mas temo que não o façamos, por isso estou oferecendo a vocês a idéia, porque os Estados Unidos contribuem ainda mais para a crise atual e porque também aqui não se deve pensar que é preciso acabar inteiramente com as relações capitalistas antes de salvar o planeta.
Cancelar a dívida do Sul, propondo em contrapartida que parte da economia se destine à preservação do planeta
Antes que vocês me digam que nada disso vai funcionar, que minha solução é pior do que um sonho inalcançável, que vocês não querem mesmo salvar o capitalismo e que perderam seu tempo comigo, por favor, deixem-me sustentar mais uma idéia. A solução econômica pode vir de um grande compromisso do tipo keynesiano, que articule governo, empresas e cidadãos. Mas tal esforço teria também um papel vital ao criar coesão social renovada.
Quero dizer com isso que muitas sensibilidades deveriam se unir numa causa comum. Politicamente falando, hoje nenhum grupo social único está em condições de resolver os problemas que afetam a maioria. Ou seja, os ecologistas não podem, sozinhos, salvar o meio ambiente; os agricultores não podem, sós, salvar a agricultura familiar; os sindicatos não podem, isolados, salvar os bons empregos na industria etc. Grandes alianças são o único caminho, a única estratégia que funciona. Começamos a ter sucesso agindo democraticamente e construindo alianças entre pessoas que vêm de grupos sociais distintos, mas estão basicamente na mesma sintonia. Os Fórum Sociais estão contribuindo enormemente para esse processo. Agora nós devemos ir além deste estágio: tentar forçar alianças também com grupos com quem não necessariamente concordamos nas questões principais — por exemplo, com as empresas. Isso só pode ser obtido ao reconhecermos que a divergência, ou mesmo o conflito, podem ser positivos, desde que as áreas em que é possível atuar em conjunto sejam procuradas, identificadas e construídas. Devemos encontrar o lugar onde os círculos de nossos interesses se encontram. Pelo menos um desses pontos deve ser salvar o planeta. Eu não vejo outro jeito de gerar entusiasmo cidadão, envolvimento e o salto qualitativo e quantitatido na escala do que necessitamos agora.
Eu poderia também debater a necessidade de estender estas alianças para o Sul, ou uma completa revisão das atuais instituições financeiras e de comércio, que são por natureza anti-meio ambiente. Não há tempo para fazer isso agora, nem eu conseguiria elaborar aqui o sentido e o financiamento dos investimentos ambientais necessários. O que posso dizer a vocês é que a conversão para uma economia ecológica é tecnicamente praticável. Os esquemas para novos tributos foram cuidadosamente pensados; os protótipos industriais já existem; a maquinaria está pronta para entrar em ação, no momento em que as pessoas obrigarem os políticos a aceitar o desafio.
O capitalismo não é são no sentido que a maioria das pessoas entende sanidade. Nós, humanos, normalmente pensamos no futuro: o dos nossos filhos e o do nosso país. O mercado, ao contrário, opera no eterno presente — que, por definição, não pode nem mesmo conceber a noção de futuro e conseqüentemente exclui proteções contra a destruição futura, a não ser que sejam impostas por lei.
Precisamos das leis, é claro, e de forças políticas com a coluna vertebral para propôr e votar leis. Mas também precisamos pensar sobre motivação humana. Lembrem-se do prestígio dos Homens de Um Dólar por Ano dos anos 40 e imaginem o que deveria acontecer se pudéssemos transpô-los para o mundo do século 21. Um número importante de executivos contemporâneos, todos eles com salários inimagináveis, poderiam vir a acreditar que o dinheiro é muito bom — mas não haverá nada além dele? Por que não fundar uma extremamente exclusiva Ordem dos Defensores da Terra, ou os Cavaleiros do Ambiente, ou os Guerreadores do Carbono que, em reconhecimento de suas contribuições especias para o esforço na defesa do ambiente, teriam o direito de exibir um emblema visível. Em uma bandeira na frente de suas casas, em seus carros, em um broche na lapela, como a Legião de Honra francesa; como uma Medalha do Congresso por Honra Ecológica. O sinal de pertencimento ao pequeno grupo dos ungidos; aqueles que decidiram salvar a terra. Isso certamente despertaria seu espírito competitivo…
Por fim, os mitos foram sempre a força motora de todas as grandes conquistas humanas, da democracia grega à Renascença, ao Iluminismo ou às revoluções americana e francesa. Pode estar chegando a era do Cuidado Ecológico. Para salvar o planeta, devemos mudar, rápida e profundamente, o modo de pensar, sentir e agir da maioria. É preciso omeçar pelas forças sociais com que contamos nesse exato momento, não com outras. De nada serve desejar que fossem diferentes. Precisamos jogar o jogo que a história nos propõe. Para tal mudança, precisamos de seis “Ms”. A lista começa com Dinheiro [Money, em inglês], Gestão [Management] e Mídia. Ainda mais deciso que estes três primeiros “Ms” é criar um novo senso de Missão, Motivação e Mito, no sentido nobre do termo. “Mito” num sentido que nada tem a ver com fábulas ou mentiras. São as grandes nar