Um país de órfãos
Apesar do cenário pandêmico, destacamos que a violência nas favelas permanece como experiência cotidiana na vida dos moradores. Além da angústia com a possibilidade de adoecer de Covid-19, tem-se a preocupação de não morrer de fome e nem de bala perdida
Iniciamos 2021 com a expectativa de que tudo poderia mudar e melhorar. Nos enganamos. Temos experimentado um aprofundamento na proliferação, contaminação e morte por Covid-19, uma enorme lentidão na disponibilização e aplicação da vacina, sem falar da alta na ocupação de leitos e ausência de insumos para atender os doentes. Chegamos ao mês de abril batendo recordes de mortes e já estamos com a expectativa de alcançarmos, em breve, 5 mil mortes diárias.
Acredito que todos nós podemos contar de alguma forma como a pandemia vem marcando a nossa história. No meu caso, 2021 já deixou seu rastro de dor. Foi no 13º dia do ano que minha mãe partiu. Não foi de Covid-19, mas acredito que alguns suportes do cuidado em saúde poderiam ter sido acionados se estivéssemos fora do contexto pandêmico. Tive a possibilidade, junto com minha família, de realizar o velório e ainda me despedir em sua partida. Porém, essa não é a realidade daqueles que têm seus entes levados pela Covid-19.
Com a partida de minha mãe venho experimentando o sentimento de orfandade, o que tem gerado uma outra maneira de estar e perceber o mundo e as relações sociais. No dicionário de português é possível verificar que a noção de orfandade está relacionada àqueles que perderam os pais ou um deles. Além disso, também pode ser compreendida como uma condição de abandono ou desamparo. No meu caso, a orfandade está relacionada a uma condição processual da existência, tendo vivenciado 37 anos ao lado de minha saudosa mãe.
Contudo, a experiência da orfandade, no contexto de pandemia, está sendo imposta enquanto condição para muitas vidas, trazendo implicações significativas nos arranjos familiares e nas necessidades de sobrevivência. Precisamos analisar os efeitos e impactos das mortes de Covid-19 para as futuras gerações e, também, para aquelas e aqueles que perdem filhos/as, esposas/os, irmãos. A devastação da pandemia traz consigo as marcas da morte, dor, tristeza, angústia e desesperança.
Em artigo publicado na página Agência Pública intitulado “Filhos sem mães: como se viram as famílias com órfãos da Covid-19”, podemos identificar diferentes relatos que retratam a devastação ocasionada pela doença. Nos casos narrados, é possível verificar a negligência do Estado, por meio da falta de oxigênio, que já estava prevista para ocorrer no sistema de saúde de Manaus. O Fantástico dedicou uma matéria, no dia 14 de março, sobre a geração que vai crescer sob o impacto emocional e financeiro da doença, deixando as seguintes indagações: “quem vai cuidar dos órfãos da Covid-19? Quais são os planos para essas vítimas?”
Na publicação da Revista Radis, da Fiocruz, a edição mostrou o quanto a pandemia vem devastando vidas, em especial, a de mulheres. De acordo com a matéria, algumas pesquisas internacionais e nacionais apontam que a tragédia está ceifando a vida de mulheres gestantes e puérperas. Segundo dados do Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (Sivep-Gripe), compilados pelo Estado de S. Paulo, identificou-se que temos o maior número absoluto de mortes de grávidas pela Covid-19 da América Latina.
Mas não paramos por aí. Não podemos esquecer que a população negra é a que mais morre no Brasil em consequência da pandemia, e aquela que menos recebe vacina, conforme explicitamos em matéria publicada anteriormente. No caso das mulheres gestantes e puérperas, o racismo também marca profundamente a experiência de tornar-se mãe. De acordo com a pesquisa “Nascer no Brasil”[1], realizada pela Fiocruz, as mulheres negras representam 65,9% daquelas que sofrem violência obstétrica. No atual contexto, a experiência não é muito diferente, uma vez que as negras são as que mais morrem na gravidez, o que demonstra a importância desse dado para problematizar as expressões do racismo estrutural.
Sinalizamos que a orfandade não está manifesta apenas com a perda das mães. O inverso também ocorre e não é de hoje. As mulheres negras experimentam cotidianamente a ameaça e/ou a morte dos filhos. Considero que essa seja uma das atualizações das heranças deixadas pelo colonialismo às mulheres negras.[2] Historicamente, essas mulheres sempre tiveram seus filhos retirados, institucionalizados ou mortos, e pouco se debate e problematiza o sofrimento que isso ocasiona. Para Grada Kilomba, em seu livro “Memórias da Plantação: episódios do racismo cotidiano”,[3] essa herança faz parte do que a autora denomina de trauma colonial.
Mônica Cunha, fundadora do Movimento Moleque, é uma dessas mulheres negras que denuncia a violência e o racismo estrutural constantemente, buscando desnaturalizar o extermínio da juventude de seu povo. Em diferentes entrevistas, Mônica Cunha chama a atenção para as violações que atingem as famílias negras e para a responsabilização destinadas às mulheres ao tornarem-se mães[11]. Mas como ficam as mulheres negras quando seus filhos são mortos pelo Estado? Quem responde sobre isso? Para a maioria delas, a impunidade e o Rivotril têm sido as respostas do poder público.
Apesar do cenário pandêmico, destacamos que a violência nas favelas permanece como experiência cotidiana na vida dos moradores. Além da angústia com a possibilidade de adoecer de Covid-19, tem-se a preocupação de não morrer de fome e nem de bala perdida. De acordo com o relatório “A cor da violência policial: a bala não erra o alvo”, publicado pela Rede de Observatórios da Segurança, a maioria da população morta é negra. Cabe sinalizar que, mesmo no contexto pandêmico, a violência policial permanece constante. Recordamos o caso do adolescente João Pedro, que brincava com os primos e foi morto por uma bala de fuzil após a polícia disparar mais de 70 tiros dentro de casa.
Enfim, seria possível exemplificar outros casos que aconteceram ao longo do último ano e que marcaram as vidas de diferentes famílias, em especial, da população negra. Mas como podemos continuar seguindo com nossas vidas sem problematizarmos a naturalização da morte? Como não nos inquietamos com tanta violência e dor que acomete, principalmente, os mais pobres, negros e mulheres? Encerro questionando: Afinal, somos ou não um país de órfãos?
Rachel Gouveia Passos é Assistente Social. Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense, autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe.
[1] LANSKY, S. Pesquisa nascer no Brasil: perfil da mortalidade neonatal e avaliação da assistência à gestante e ao recém-nascido. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2014.
[2] PASSOS, R.G. Mulheres negras, sofrimento e cuidado colonial. Revista Em Pauta, nº 45, v. 18, 2020.
[3] KILOMBA, G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.