Mês de março e a cor da morte
A ferramenta da interseccionalidade nos possibilita desvelar a marca que sela os corpos e subjetividades considerados transgressores na realidade brasileira e que permeia Marielle Franco e tantas outras vidas
Estamos nos últimos dias do mês de março de 2021 e ainda nos perguntamos: “Quem mandou matar Marielle e Anderson”? Após três anos do assassinato da vereadora carioca não há notícias sobre os mandantes e motivos do crime. Nesse período, suas pautas e lutas ganharam dimensão internacional. Apesar de seu extermínio ter motivações políticas, é necessário sinalizar que essa foi uma morte interseccional, ou seja, era uma figura que representava a voz das minorias por ser mulher, negra, cria de favela, bissexual e defensora de direitos humanos.
Para compreendermos o que estamos chamando de morte ou crime interseccional é preciso resgatar as bases teóricas e analíticas do feminismo negro. No livro recém-publicado de Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge, traduzido e editado pela editora Boitempo, intitulado Interseccionalidade, as autoras apontam que “a interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas”¹, o que significa que por meio dessa ferramenta analítica torna-se possível compreender o imbricamento das relações de gênero, raça, classe e sexualidade. Ao mesmo tempo que se identifica os problemas sociais, torna-se possível a construção de respostas interseccionais às injustiças sociais. Cabe destacar que para a teórica feminista Zillah Eisenstein classe e capitalismo são interseccionais, já que, o capital “sempre intersecciona os corpos que produzem o trabalho. Logo, o acúmulo de riqueza está incorporado nas estruturas racializadas e engendradas que o aumentam”².
A ferramenta da interseccionalidade nos possibilita desvelar a marca que sela os corpos e subjetividades considerados transgressores na realidade brasileira e que permeia Marielle e tantas outras vidas. A insubordinação tem sido um ato de luta pelo direito à vida, o que significa que não é fácil (re)existir em um país que só oferta terra seca, silenciamento e morte. Vejamos.
No Atlas da Violência de 2020, analisou-se que dos mais de 628 mil homicídios, ocorridos entre 2008 e 2018, 91,8% são de homens. Identificou-se que existe uma maior probabilidade de ocorrência de homicídios entre os homens mais jovens, sendo o pico aos 21 anos de idade. Logo, 55,3% dos homicídios de homens acontecem no período da juventude, entre 15 e 29 anos. Em relação ao quesito raça/cor os dados revelam que homens e mulheres negros morrem mais em relação aos não negros, o que representa 74,0% superior para homens negros e 64,4% para as mulheres negras.
No que diz respeito a violência contra as mulheres, o Atlas da Violência mostra que a cada 2 horas uma mulher foi assassinada em 2018. Entretanto, o número de homicídios reduziu de 8,4% apenas para as mulheres não brancas, entre 2017 e 2018, e vem crescendo em relação as negras. Não podemos deixar de lembrar que em março de 2014, na cidade do Rio de Janeiro, a senhora Claudia da Silva, mulher negra, favelada e pobre que tinha ido comprar pão, foi assassinada pela polícia e teve o corpo arrastado por mais de trezentos metros.
Em relação a população LBTQI+, o Dossiê Assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras de 2020, publicado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), identificou que o Brasil continua assegurando o primeiro lugar no ranking dos assassinatos da população trans no mundo. Segundo o documento, localizou-se 175 assassinatos, sendo que todos os casos são contra mulheres, sendo que 75% delas são negras.
Não paramos por aí. Desde o início da pandemia, em março de 2020, temos experienciado o afastamento e isolamento social, o descaso com as vidas e o crescente número de óbitos. Chegamos a quase 3.000 mil mortes diárias e, já aguardamos alcançar 4.000 até o final de abril. Ao mesmo tempo ocorre a proliferação de um discurso negacionista, assentado na banalização da morte e na defesa de uma perspectiva econômica que apenas segue destruindo tudo e todos ao redor.
Apesar do falso dilema acerca da democratização da contaminação pelo vírus, os diferentes dados e estudos realizados revelam que a população que mais morre é a população negra. Inicialmente vale recordar que a primeira morte registrada no Rio de Janeiro foi de uma mulher, negra, idosa e periférica que era trabalhadora doméstica, no bairro do Leblon, e a sua empregadora havia testado positivo para a doença, após retornar das férias na Europa. Não podemos esquecer que as ocupações de trabalhadora doméstica e de cuidadora são executadas majoritariamente por mulheres negras e fazem parte da herança colonial.
Com relação aos óbitos por Covid-19, no primeiro boletim epidemiológico, publicado pelo Ministério da Saúde, que apresentou o quesito raça/cor, identificou-se maior letalidade entre a população negra. De acordo com artigo da pesquisadora Roberta Gondim de Oliveira da Fundação Oswaldo Cruz³, o “número de óbitos de negros supera o de brancos, ainda que a hospitalização não acompanhe esta tendência”, o que demonstra a “dificuldade de acesso dessa população aos serviços de saúde, principalmente os de maior complexidade, como os leitos de cuidados intensivos, cujo recurso tem sido crítico no atual contexto”.
Além do não acesso aos cuidados intensivos, os negros são os menos vacinados até agora. De acordo com artigo publicado na Agência Publica elaborado a partir dos dados de brasileiros que receberam a primeira dose, identificou-se que 3,2 de brancos e 1,7 milhões de negros foram vacinados. A discrepância é chocante. Salientamos que 54% da população brasileira e 80% dos usuários que acessam o Sistema Único de Saúde se autodeclaram negros.
Por fim, mas não menos importante, as mulheres negras estão como as profissionais de saúde mais afetadas por estarem na linha de frente no combate a Covid-19. São elas as protagonistas para a manutenção dos serviços essenciais, conforme aponta o estudo publicado pela Fiocruz e a Rede Humanidades.
Temos inúmeros desafios para superar no cenário de pandemia, mas há urgência em rompermos com o racismo e suas expressões que exterminam aqueles que estão na “zona do não-ser”, como bem explica Fanon (2008)₄. A desumanização e morte da população negra precisa ser combatida rapidamente e não há mais tempo para adiarmos. Até quando a morte será a única alternativa para a população negra na realidade brasileira? Será que realmente vidas negras importam?
Rachel Gouveia Passos é assistente social. Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense, autora e organizadora de algumas obras sobre saúde mental e as relações de gênero, raça e classe
¹COLLINS, P.H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 16)
²(COLLINS; BILGE, 2021, p. 35)
³OLIVEIRA, R.G. et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n°9, p. 1-14, 2020.
₄FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Editora UBU, 2020.