Um partido quer mudar o Quebec
Formado há um ano, e originário de uma articulação entre a esquerda radical e alguns movimentos sociais, o Quebec Solidário assume certas reivindicações do altermundialismo — e já não subordina a questão social à conquista da soberania em relação ao CanadáGilles Bourque
Em fevereiro de 2006, nascia no Quebec um novo partido de esquerda: Quebec Solidário. Ele pretende apresentar candidatos em todas as circunscrições das próximas eleições provinciais, na primavera [nórdica] de 2007. Sua tarefa parece imensa. Desde os anos 1960, todas as tentativas de se criar, na província, um partido de massa à esquerda do tabuleiro político terminaram mal.
Nas eleições federais, o Novo Partido Democrático (NPD) vem, há muito tempo, apresentando candidatos em todos os condados. Porém, nunca conseguiu impor-se como uma verdadeira alternativa política. Nas últimas eleições para Câmara dos Comuns de Ottawa, em janeiro de 2006, o NPD obteve somente 7,5 % dos votos em todo o Quebec. E, ao longo de mais de 40 anos, conseguiu eleger um único deputado, por apenas um mandato. Nas eleições provinciais, nenhuma formação política de esquerda conseguiu implantar-se de forma durável.
O novo partido precisará resolver o principal problema com o qual a esquerda de Quebec sempre se defrontou, desde os anos 1960: a questão nacional. O avanço do movimento nacionalista, procedente, principalmente, das novas classes médias francófonas, favoreceu a hegemonia do Partido Quebequense (PQ). Esse conseguiu impor-se como única expressão confiável da luta pela soberania e, principalmente, atrair uma grande facção dos militantes reformistas e progressistas. Além disso, as direções das grandes centrais sindicais se recusaram, constantemente, a apoiar a criação de um partido de esquerda. Preferiram manifestar seu apoio implícito ou explícito ao PQ. O ex-líder da Confederação dos Sindicatos Nacionais (CSN) Gérald Larose, atualmente presidente do Conselho da Soberania [1], reagiu assim ao nascimento do Quebec solidário: “A criação de tal partido exige a normalidade do país: só poderia haver um partido desse tipo dentro de um Quebec soberano, não dentro de um Quebéc provincial . O primeiro problema a resolver continua sendo a questão nacional [2]”. Fazendo da questão social o primeiro artigo de seu programa, os organizadores do Quebec Solidário querem romper com tal perspectiva, que, segundo eles, vem minando os esforços da esquerda há muito tempo.
Uma nova conjuntura, mais favorável às alternativas
O nascimento da nova agremiação é favorecido pela evolução da conjuntura externa e interna, desde meados dos anos 1990. No plano internacional, a província foi palco de duas grandes mobilizações. Em abril de 2001, 80 mil pessoas manifestaram-se contra uma reunião da Cúpula das Américas, que visava colocar em prática, o projeto de Washington de uma Área de Livre Comércio das Américas, a ALCA. Em 15 de fevereiro de 2003, 200 mil pessoas foram às ruas para protestar contra a iminente agressão norte-americana no Iraque.
No plano interno, ampliaram-se, nos doze últimos anos, as lutas sociais contra as políticas neoliberais dos governos, quer sejam do PQ ou do Partido Liberal do Quebec (PLQ). Em 1995, houve a Marcha contra a Pobreza, chamada ” Pão e Rosas “, organizada pelo feminismo; em 1999, a greve ilegal das enfermeiras; em 2006, a dos estudantes. A política do “déficit zero” conduzida pelo governo de Lucien Bouchard (PQ), após o fracasso do referendo sobre a soberania, em 1995, provocou “uma ruptura do que restava da ligação entre o PQ e uma boa parte da base sindical e do movimento popular [3]”.
A formação do Québec Solidário resulta do reagrupamento progressivo de movimentos e formações de esquerda, iniciado em 2002. A União das Forças Progressistas (UFP) nasceu então, da fusão do Partido da Democracia Socialista [4], da Reunião por uma Alternativa Progressista [5], do Partido Comunista de Quebec e da seção quebequense do movimento trotskista Socialismo Internacional. A UFP era formada, principalmente por intelectuais e por militantes sindicais críticos da viragem neoliberal do PQ e da estratégia da aliança informal das direções das centrais trabalhadoras com ele.
Além da esquerda tradicional, feministas e comunitários
Em 2004, uma das militantes feministas mais conhecidas da província, Françoise David, antiga presidente da Federação das Mulheres do Quebec, criou o movimento político Opção Cidadã, formado principalmente por militantes de ambos os sexos dos meios feminista e comunitário. Rapidamente, tiveram início negociações visando à fusão entre a UFP e a Opção Cidadã — e tiveram como resultado o Quebec Solidário. A origem dessa formação reside na convergência de militantes de ambos os sexos de diversos meios: sindical, feminista, comunitário e ecologista.
Em sua Declaração de Princípios, o novo partido oferece “uma alternativa progressista aos partidos existentes”. Visa “opor-se ao neoliberalismo, versão moderna do capitalismo”. Pretende consagrar-se “inteiramente à defesa e à promoção do bem comum (?), à procura da igualdade e da justiça social, ao respeito dos direitos individuais e coletivos”. Também quer inspirar-se “nos valores da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade: a igualdade, a liberdade, a solidariedade, a justiça e a paz”.
Com este horizonte ético, o novo partido apóia-se no ecologismo, feminismo e no altermundialismo. Afirma ser de esquerda, valorizar o papel do Estado e visar a eliminação da pobreza. Pretende encorajar o desenvolvimento da democracia participativa e fazer “uma grande limpeza” nas instâncias da democracia representativa, especialmente pela reforma do sistema de representação e introdução das eleições proporcionais [6]. Quebec solidário declara-se se, enfim, soberano e pluralista.
Programa articula direitos sociais e princípios keynesianos
Esta Declaração de Princípios inspirou a elaboração de um programa político de natureza essencialmente social-democrata, dominado pelo projeto de relançamento e de reinvenção da intervenção do Estado. Dentre os 25 pontos desse programa, a grande imprensa escolheu dois, para atacar duramente o partido. Primeiro a nacionalização do setor de energia eólica, atualmente em pleno crescimento. A Eole-Quebec, empresa pública, estaria “no coração do desenvolvimento desta indústria, em co-responsabilidade com as instâncias da democracia participativa locais, regionais e autóctones”. Outro objetivo contestado pela mídia é a criação da Pharma-Québec, “pólo público de aquisição, pesquisa e fabricação de produtos farmacêuticos”. Em concorrência com o setor privado, essa empresa permitiria “frear o crescimento dos gastos com saúde, enriquecer as capacidades científicas do Quebec e inovar”.
Entre outras medidas do programa estão uma reforma do sistema fiscal, compreendendo um aumento do imposto sobre a renda do capital e uma tributação mais progressiva para as pessoas físicas; a intensificação da luta contra a pobreza, incluindo um aumento gradual do salário mínimo (atualmente 7,75 dólares por hora), com objetivo de atingir 10 dólares [R$ 18], com indexação ao custo de vida, e o aumento nos valores da ajuda social, para cobrir o conjunto das necessidades para uma vida digna.
O Quebec Solidários propõe, ainda, a formulação de uma “política familiar global, transversal e feminista”. Isso implicaria, entre outras medidas, dedução de impostos para o parente que se ocupasse de uma criança em tempo integral, em casa (até os 12 anos), assim como a implantação de serviços de ajuda familiar e doméstica, com tarifas moduladas em função das rendas. Em matéria educativa, o partido propõe a eliminação progressiva das tarifas de ensino e dos subsídios à escola privada. A respeito de ecologia, pede que sejam atingidos os objetivos do protocolo de Kyoto (que o Canadá jamais ratificou), um apoio mais eficiente aos produtores de alimentos biológicos e de região, assim como um sistema de crédito que favoreça a utilização de tecnologias verdes.
Tema decisivo: como enfrentar a questão nacional
No capítulo sobre a questão nacional, a posição do Quebec Solidário parece mais cheia de nuances do que seria possível imaginar a partir de sua profissão de fé soberana: “Quebec Solidário visa alcançar a soberania, por meio da eleição, por sufrágio universal, de uma Assembléia Constituinte que reflita a pluralidade” política e social de Quebec. Por suas deliberações, essa assembléia deverá inspirar-se nos resultados de um processo de consulta popular inspirado na democracia participativa. A Constituinte submeterá ao povo quebequense, por meio de referendo, duas questões diferentes: “uma a respeito do futuro político e institucional; outra, sobre uma Constituição quebequense “. Embora comprometa-se a defender a soberania, no âmbito de tal processo, o partido parece concordar que essa ampla consulta poderia conduzir a uma proposição distinta da plena e completa independência política do Quebec.
O Quebec Solidário, que no momento de sua fundação já contava com 4 mil membros, compôs um Comitê de Coordenação composto por nove mulheres e sete homens. Ao invés de eleger um chefe, preferiu nomear dois porta-vozes: Amir Khadir, antigo líder do UFP, e Françoise David, fundadora da Opção Cidadã. O partido implantou-se progressivamente em todas as regiões do Quebec. Numa eleição parcial realizada, em abril de 2006, no condado de Montreal de Sainte-Marie/Saint-Jacques, sua candidata obteve 22 % dos votos. As pesquisas atribuem-lhe atualmente entre 4% e 7% das intenções de voto, no conjunto da província.
Já envolvido em um enorme trabalho de implantação e organização, o novo partido confronta-se com adversários políticos que não pretendem facilitar sua vida. O Partido Verde do Quebec (8% das intenções de voto) recusou-se a se juntar a ele, porque, segundo seu chefe, Scott McKay, “seu discurso hostil ao mundo dos negócios leva a um mau caminho” [7]. As direções das centrais sindicais não parecem inclinadas (como não o eram desde os anos 1960) a contribuir para a emergência e o desenvolvimento de um partido de esquerda. Presidente da Federação dos Trabalhadores do Quebec (FTQ), Henri Massé afirmaou que “esse partido está um pouco demais à esquerda e suas idéias são utópicas. Entre nossos membros, existem, claro, insatisfeitos dos antigos partidos, mas eles esperam propostas mais pragmáticas” [8].
Pela primeira vez, ambição de diálogo com toda a sociedade
É junto à esquerda soberanista que o Quebec Solidário deverá conduzir sua luta mais árdua, e talvez mais decisiva. Segundo o antigo primeiro- ministro do PQ Jacques Parizeau, “fracassamos quando permitimos que apareçam novos partidos ou movimentos soberanistas” [9]. A esquerda do PQ compartilha esse ponto de vista. A antiga presidente da Central dos Sindicatos de Quebec, Monique Richard, atual presidente do Conselho Executivo Nacional do PQ, acolhe desta forma a criação do novo partido, no início de 2006: “A partir do momento em que temos os mesmos objetivos, libertar-se do governo Charest e promover a soberania, eu me pergunto porque eles fizeram esta escolha [10]”. Monique foi, junto com Marc Laviolette, antigo líder da Confederação dos Sindicatos Nacionais, uma das principais advogadas do reconhecimento de uma tendência de esquerda no interior do PQ, os Sindicalistas e Progressistas para um Quebec Livre (SPQL). Esse reconhecimento, bastante recente, tinha o claro objetivo de reagir ao aparecimento do Quebec Solidário, ou, pelo menos de frear seu avanço.
Se acrescentarmos a esses problemas o escrutínio eleitoral uninominal de turno único, favorece os dois grandes partidos e prejudica os demais, é pouco provável que o Quebec Solidário faça uma estréia espetacular nas próximas eleições. Poderá, é claro, aproveitar o descontentamento que cresce, no seio do PQ, em relação ao seu novo chefe, André Boisclair. Os setores de esquerda reprovam-no por querer acentuar a virada neoliberal já empreendida pelo partido. Pois ele não declarou, recentemente que “pretendia passar a borracha sobre a época em que o governo do PQ era companheiro das centrais (sindicais) e em que as negociações terminavam ao redor de uma ceia bem regada”? [11]
Sejam quais forem as previsões sobre a conjuntura, existe, pela primeira vez, uma formação de esquerda que não se limita a um pequeno grupo e que ambiciona constituir uma verdadeira alternativa política. Em curto prazo, o desempe