Um passo à frente e você já não está mais no mesmo lugar
Escola Pernambucana de Circo organiza, em festa, seu centro de arte-educação. Ao invés de adotar postura “profissionalizante”, iniciativa busca emancipar. Por isso, aposta na qualidade artística, técnica e cultural de seu trabalho, e foge do conceito de “arte para pobre”Eleilson Leite
A Escola Pernambucana de Circo — EPC acaba de concretizar um sonho. Um sonho que, por ter sido sonhado junto, tornou-se realidade. Na noite de 7 de junho, foi inaugurada oficialmente a sede do Centro Circo da Juventude — CCJ, que fica na Vila Buriti, Bairro Macaxeira, em Casa Amarela, Recife. Ali, na Zona Norte da capital pernambucana, concentra-se a maior parte da periferia local. E é dali que os atabaques do afoxé Onô Onilê Ogujá se fizeram ouvir por toda a cidade quando iniciou a cerimônia de inauguração do espaço. Roger de Renor, conhecido agitador cultural recifense e apresentador de TV, foi o mestre de cerimônia do evento. Na platéia, autoridades municipais e estaduais, lideranças, artistas, moradores, representantes de diversas organizações, além deste que escreve essas mal traçadas linhas.
Cortada a fita, lá dentro do CCJ, o padre Reginaldo Veloso entoou um canto chamado Canção do Mundo Novo: Boca do Povo. É uma adaptação musical do texto bíblico do livro de Isaias (65, 17-25).”Eu vou tornar esta cidade uma alegria;Todo o povo a sorrir (…)” anunciava a canção, cantada com entusiasmo por todos ali presentes. Cerca de 250 pessoas participaram do ato. Testemunhas de um fato histórico e que se tornaram parte da história. Quem esteve ali renovou a esperança de que é possível buscar um sonho, mas é “preciso estar atento e forte”, como lembrou Fátima Pontes coordenadora da EPC em seu brilhante discurso, lido com a emoção de quem acompanhou, junto com Everton Lima, o Blau, coordenador pedagógico da EPC, cada passo dado para chegar até aquele momento.
Os dois sabem muito bem o que Chico Science quis dizer com a expressão: “um passo à frente e você já não está mais no mesmo lugar”. E foram muitos passos até chegar à inauguração da sede. Uma verdadeira maratona, e com obstáculos. Mas viver no circo é estar exposto permanentemente ao desafio.
A sede do CCJ demonstra que a estética da periferia não é a apologia do precário. Um monumento se ergue para celebrar a cor, alegria e a beleza que o povo quer ver nas suas ruas e casas
A EPC contou com o apoio de muita gente, para erguer sua sede. Em uma das paredes do local, escreveram o nome de cada um dos que ajudaram. Estão lá os que criaram a Escola, em 1996: Zezo de Oliveira e Boris Trindade, que atuavam na Torre Malakoff, no Recife Antigo. Colaboradores que passaram pela instituição ao longo dos 12 anos e diretores também têm seu nome no painel. A comunidade do Buriti, que ofereceu em 2001 a sede da associação de moradores para a EPC, também figura na galeria. Escrito em verde, diferente dos demais nomes (todos em vermelho), está o da Oxfam. Esta organização internacional de cooperação, cuja representação britânica mantém há mais de 30 anos escritório em Recife, foi decisiva para a realização do sonho alentado pela Trupe Circus.
A Oxfam está presente na vida da escola desde 1998, quando mobilizou recursos junto a sei escritório de Quebec, através do Programa Cirque du Monde, voltado para organizações que promovem o Circo Social. Por meio desta parceria, a EPC começou a integrar a Rede Circo do Mundo, que é apoiada pelo Cirque du Soleil. Essa rede promoveu um encontro em Belo Horizonte, em 2000, do qual a EPC participou. No ano seguinte, o escritório da Oxfam britânica em Recife acolheu a Escola em seu recém criado Programa de Mobilização de Recursos — PMR, uma ação voltada ao desenvolvimento institucional e sustentabilidade das ONGs.
A partir daí começou uma virada na EPC, que resultou na reformulação de seu estatuto, entre várias iniciativas de gestão e organização interna. Muitas outras parcerias se deram desde então, entre elas com o ministério da Cultura, que reconheceu a EPC como Ponto de Cultura. Mas o apoio da Oxfam não era suficiente para conquistar a sede própria. Foi aí que o papel de Janaina Jatobá, então coordenadora do PMR, foi decisivo. Ela se empenhou para que a EPC fosse a destinatária de uma doação feita à Oxfam, em Londres, por uma pessoa de nome Úrsula. Deu certo. Claude Sant Pierre, coordenador da Oxfam no Brasil contou essa história e revelou ao público o nome da doadora, até então mantido sob anonimato. Janaina que hoje trabalha no Instituto C&A, em Recife, tem seu nome imortalizado na sede do CCJ, ao lado da Oxfam. Emocionada, com seu filho Otto lhe rodeando as pernas, ela fez um lindo discurso naquela histórica noite de 7 de junho.
Um lindo espetáculo, montado pela Trupe Circus, está em cartaz no CCJ: Ilusão – um ensaio melodramático circense. É encantador. Vi um trecho e me tornei uma pessoa mais feliz depois disso
O CCJ será ao mesmo tempo o espaço cênico da Trupe Circus, sede administrativa da EPC e local das atividades de arte-educação, das quais participam centenas de adolescentes e jovens da região. Será também um espaço aberto à comunidade e acolherá outras atividades artísticas e de mobilização. A construção foi muito bem projetada e se adapta a todas essas atividades. E o lugar é bonito. Muito bonito. É um galpão, amplo, alto, colorido, agradável, acolhedor — enfim, com todas as qualidades que a sede de um empreendimento artístico na periferia merece e deve ter. A sede do CCJ demonstra que a estética da periferia não é a apologia do precário. Num cenário de colorido escasso, um monumento se ergue para celebrar a cor, alegria e a beleza que o povo da periferia gosta e quer ver nas suas ruas e casas.
Fatima Pontes, a “Fatinha”, coordenadora da EPC, ressaltou em seu discurso que a EPC não é escola profissionalizante. “Somos uma instituição que proporciona oportunidades sócio-educativa através da arte-educação”, afirmou. Mas para Fatinha, arte-educação não tem um sentido instrumental. Ao contrário, tem uma forte dimensão emancipadora: “arte-educação possibilita acreditar em si mesmo, num mundo melhor, possibilita compartilhar valores”. O CCJ é um espaço artístico, onde a arte pode e terá seu desenvolvimento pleno, estando ou não vinculada a uma ação social. A EPC acredita numa arte feita na periferia com qualidade, além da responsabilidade e dignidade, que são elementos sempre presentes no trabalho artístico de quem está nas bordas das cidades. Mais do que isso, a EPC vem dando e ampliará ainda mais sua contribuição para provar aos incautos que a “arte feita por ONG pode ser — e é — arte com qualidade artística, técnica e cultural, e não arte para pobre”, como disse Fatinha em seu discurso. E eu completo: é arte de pobre, mas não arte pobre.
O que mais tem na periferia, e em todo o Recife, é riqueza cultural. Uma cultura que faz do povo pernambucano e desse lugar um dos recantos mais lindos do Brasil. Já havia ido à periferia quando fui visitar a antiga sede da EPC um tempo atrás, lá mesmo na Vila Buriti, em Casa Amarela. Ali ficam todos os morros, os famosos altos: Alto José do Pinho, Alto José Bonifácio, Alto Santa Terezinha e muitas outras quebradas. Fiquei imaginando uma Agenda Cultural da Periferia da capital pernambucana, semelhante à que temos em São Paulo. Precisaria de muitas páginas para cobrir toda a cena cultural existente na região. Nesses tempos de São João, tem um monte de quadrilhas, que mobilizam milhares de jovens na periferia. O governo local, pelo que pude apurar, tem uma postura de apoio ao movimento cultural periférico, mas ainda carece de uma visão estratégica. Canalizam, por exemplo, muitos recursos para as quadrilhas nessa época do ano, mas faltam ações mais permanentes.
Tá na hora de a prefeitura, governo do Estado e demais autoridades ficarem atentos à grande produção cultural periférica do Recife e ampliarem as políticas públicas voltadas a este segmento. ONGs e movimentos como a EPC estão fazendo sua parte há muito tempo. E como estão. Quando você for a Recife, curta tudo que essa maravilhosa cidade oferece. Mas não se limite aos guias turísticos. Todos que vi não mostram a gloriosa periferia. Não se guie pelo Guia. Siga o rufo dos tambores do Onô Onilê Ogujá e chegarás à Vila Buriti. Você poderá assistir a um lindo espetáculo em cartaz no CCJ montado pela Trupe Circus: Ilusão – um ensaio melodramático circense. Na inauguração da sede, um trecho desta encenação foi apresentado. É encantador. Eu vi e posso dizer que me tornei uma pessoa mais feliz depois disso. Tornei-me ainda mais convicto de que não há nada mais transformador do que a arte.
MAIS
A Escola Pernambucana de Circo pode ser encontrada, na internet, em www.escolapecirco.org.br
Vários vídeos sobre o trabalho da escola podem ser vistos no Youtube: 1 2 3 4 5
Eleilson Leite é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edições anteriores da coluna:
Plano Nacional de Cultura: realidade ou ficção?
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Semeando asas na quebrada paulistana
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Manos e Minas no horário nobre
Estréia na TV Cultura programa que aborda cena cultural da periferia com criatividade, sem espetacularização e a partir do olhar dos artistas do subúrbio. Iniciativa lembra o histórico Fábrica do Som, mas revela que universo social da juventunde já não é dominado pelos brancos, nem pela classe média
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Em São Paulo, a arte vibrante das quebradas dribla o preconceito e aparece com força num dos maiores eventos culturais do país. Roteiro para o hip-hop, rap, DJs, bambas, rodas de samba, rock, punk e festivais independentes. Idéias para que uma iniciativa inovadora perdure e supere limites
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Em torno de 1.500 guaranis, reunidos em quatro aldeias, habitam a maior cidade do país. A grande maioria dos que defendem os povos indígenas, na metrópole, jamais teve contato com eles. Estão na perferia, que vêem como lugar sagrado
Cultura, consciência e transformação
A cada dia fica mais claro que a produção simbólica articula comunidades, produz movimento, desperta rebeldias e inventa futuros. Mas a relação entre cultura e transformação social é muito mais profunda que a vã filosofia dos que se apressam a “politizar as rodas de samba”…
É tudo nosso!
Quase ausente em É tudo Verdade, audiovisual produzido nas periferias brasileiras reúne obras densas, criativas e inovadoras. Festival alternativo exibe, em São Paulo, parte destes filmes e vídeos, que já começam a ser recolhidos num acervo específico
Arte de rua, democracia e protesto
São Paulo saúda, a partir de 27/3, o grafite. Surgido nos anos 70, e adotado pela periferia no rastro do movimento hip-hop, ele tornou-se parte da paisagem e da vida cultural da cidade. As celebrações terão colorido, humor e barulho: contra a prefeitura, que resolveu reprimir os grafiteiros
As festas deles e as nossas
Num texto preconceituoso, jornal de São Paulo “denuncia” agito na periferia e revela: para parte da elite, papel dos pobres é trabalhar pesado. Duas festas são, no feriado, opção para quem quer celebrar direito de todos ao ócio, à cultura, à criação e aos prazeres da mente e do corpo
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Às margens da represa de Guarapiranga, Varal Cultural é grande mostra de arte da metrópole. Organizado todos os meses, revela rapaziada que é crítica, autogestionária, cooperativista e solidária ? mas acredita em seu trabalho e não aceita receber migalhas por ele
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Um bairro da Zona Sul de São Paulo vive a 1ª Mostra Cultural Arte dos Hippies. Na periferia, a pregação do amor e liberdade faz sentido. É lá que Raul Seixas continua bombando em shows imaginários, animando coros regados a vinho barato nas portas do metrô, evocando memórias e tramando futuros
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Estamos dispostos a discutir a cultura dos subúrbios; indagar se ela, além de afirmação política, está produzindo inovações estéticas. Mas não aceitamos fazê-lo a partir de uma visão hierarquizada de cultura: popular-erudita, alta-baixa. Alguns espetáculos em cartaz ajudam a abrir o bom debate
Do tambor ao toca-discos
No momento de maior prestígio dos DJs, evento hip-hop comandado por Erry-G resgata o elo entre as pick-ups, a batida Dub da Jamaica e a percussão africana. Apresentação ressalta importância dos discos de vinil e a luta para manter única fábrica brasileira que os produz
Pirapora, onde pulsa o samba paulista
Aqui, romeiros e sambistas, devotos e profanos lançaram sementes para o carnaval de rua, num fenômeno que entusiasmou Mário de Andrade. Aqui, o samba dos mestres (como Osvaldinho da Cuíca) vibra, e animará quatro dias de folia. Aqui, a 45 minutos do centro da metrópole
São Paulo, 454: a periferia toma conta
Em vez de voltar ao Mercadão, conheça este ano, na festa da cidade, Espaço Maloca, Biblioteca Suburbano Convicto, Buteco do Timaia. Delicie-se no Panelafro, Saboeiro, Bar do Binho. Ignorada pela mídia, a parte de Sampa onde estão 63% dos habitantes é um mundo cultural rico, diverso e vibrante
2007: a profecia se fez como previsto
Há uma década, os Racionais lançavam Sobrevivendo no Inferno, seu CD-Manifesto. O rap vale mais que uma metralhadora. Os quatro pretos periféricos demarcaram um território, mostrando que as quebradas são capazes de inverter o jogo, e o ácido da poesia pode corroer o sistema
No meio de uma gente tão modesta
Milhares de pessoas reúnem-se todas as semanas nas quebradas, em torno das rodas de samba. Filho da dor, mas pai do prazer, o ritmo é o manto simbólico que anima as comunidades a valorizar o que são, multiplica pertencimentos e sugere ser livre como uma pipa nos céus da perifa
A dor e a delícia de ser negro
Dia da Consciência Negra desencadeia, em São Paulo, semana completa de manifestações artísticas. Nosso roteiro destaca parte da programação, que se repete em muitas outras cidades e volta a realçar emergência, diversidade e brilho da cultura periférica
Onde mora a poesia
Invariavelmente realizados em botecos, os saraus da periferia são despojados de requintes. Mas são muito rigorosos quanto aos rituais de pertencimento e ao acolhimento. Enganam-se aqueles que vêem esses encontros como algo furtivo e desprovido de rigores
O biscoito fino das quebradas
Semana de Arte Moderna da Periferia começa dia 4/11, em São Paulo. Programa desmente estereótipos que reduzem favela a violência, e revela produção cultural refinada, não-panfletária, capaz questionar a injust
Eleilson Leite é historiador, programador cultural e coordenador do Espaço de Cultura e Mobilização Social da ONG Ação Educativa e coordenador editorial da Agenda Cultural da Periferia.