Um portal de papel
Solaris é uma revista-portal que não pode ser encontrada em livrarias ou nas bancas – porque ela é mais uma ação viral que uma publicaçãoFábio Fernandes
Todo mundo já viu portais da Web se autoproclamarem “revistas” (muito embora seu formato não lembre em quase nada a revista de papel tradicional com a qual estamos acostumados).
Mas uma revista de papel se autoproclamar um portal?
Recebi há algum tempo uma revista que fez justamente isso: Portal Solaris. A revista é um projeto de Nelson de Oliveira, que decidiu, como ele próprio diz na apresentação da revista, criar “um organismo cibernético multidimensional, sem forma ou conteúdo definidos, acionado pela fantasia e pelos desejos de quem o utiliza.”
Seguindo os preceitos da modernidade líquida de Zygmunt Bauman, Portal Solaris não é um nome definitivo, mas transitório. A idéia de Nelson é que cada um dos seis portais (que serão publicados semestralmente) tenha um nome diferente, todos homenageando clássicos do cinema ou da literatura de ficção científica. Os próximos serão Neuromancer, Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit. O tema, claro, é ficção científica. O objetivo desses portais é dar voz e visibilidade a escritores que percorrem esse ideaspace, ou espaço de idéias, como diziam Platão e Alan Moore.
O diferencial desse portal é que você não vai encontrá-lo nas livrarias. Nem nas bancas. Aliás, em lugar nenhum – porque ele é mais uma ação viral que uma publicação. Foram editados apenas 200 exemplares, que foram divididos entre os autores e enviados para parentes, amigos, editores e formadores de opinião (como este que vos digita).
De certa forma, isso já foi feito antes. Pelos fanzines. Porque, em termos formais, é isso o que o Portal Solaris é – um zine. Mas, em termos de conteúdo, não exatamente. Porque ele está bem acima da média dos zines de ficção científica que dominaram o eixo Rio-São Paulo nos anos 1980.
Basicamente por dois motivos: primeiro, pela forte ação viral que acompanha a distribuição desse portal. Hoje vivemos em tempos de Web, e vocês estão lendo esse artigo em seus computadores ou PDAs, algo que há trinta anos era pura ficção científica. Segundo, pela escolha dos escritores: a seleção do Portal Solaris (e Nelson pretende que ela continue assim nos próximos portais) é um saudável mix de escritores que praticamente só habitam esse gênero e de escritores que nunca ou quase nunca se aventuraram por ele. Portanto, é uma experiência realmente nova para todos os envolvidos.
Diferentes autores, diversos estilos
Ainda que nem todos os contos constituam realmente uma novidade para o gênero, nem mesmo no Brasil. Tirando os autores já conhecidos dentro do pequeno grupo que milita na FC brasileira, Roberto Causo (cujo conto “Rosas brancas” relata uma situação de perseguição paranóica que homenageia um dos grandes mestres do gênero, Philip K. Dick), e Ataíde Tartari, cujo conto “Valentim” é uma homenagem explícita, com direito a nota no final, ao livro Um estranho numa terra estranha, de outro mestre, Robert A. Heinlein), os demais autores são iniciantes no gênero. E isso faz toda a diferença.
Como, por exemplo, no conto “A nova ordem das coisas”, de Mayrant Gallo, enxuto e elegante, que descreve as férias de verão de uma família isolada numa praia. Os nomes de alguns personagens (o pai de família tem o sobrenome Clarke e o caseiro se chama Capek) deixam claro que a história se encaminha, apesar de sua simplicidade cotidiana, para algo ligado à ficção científica, e isso é que deixa o leitor intrigado e interessado. As situações que se armam, envolvendo sempre o caseiro e as mulheres da família, lembram Teorema, de Pasolini, o que é uma excelente contribuição para o gênero. O final, entretanto, desequilibra mortalmente a história, por utilizar um clichê irremediavelmente desgastado (aqui, a leitura da FC mais recente ajudaria Gallo, tanto quanto sua cultura cinematográfica ajudou o conto até o momento que antecede o final).
Carlos Emílio Corrêa Lima é um caso à parte na literatura brasileira. Seu romance A cachoeira das eras (1979), injustamente esquecido, é uma viagem alucinógena e fantástica digna de um Carlos Castañeda tolkieniano, de alguém que conhece os caminhos, mas a quem não foram abertos os portais do reconhecimento. Abrem-se, portanto, agora, com os contos “Os Gims” – que, apesar de usar um clichê, o faz de modo sutil e na medida certa, utilizando uma narrativa mais formalmente convencional – e “O Iluminador” – uma prosa convoluta que lembra suas primeiras histórias e as reatualiza com alegria e tesão.
“Dobras”, de Geraldo Lima, é mais uma metáfora que um conto. Uma boa metáfora, ainda que já bastante usada. Lembra Richard Matheson em alguns instantes, embora a linguagem seja empolada. Parece, pelo menos nesse conto, faltar um pouco de intimidade com a bola. Mas é interessante o suficiente para garantir a leitura até o fim, o que não é pouco. O mesmo ocorre com seu outro conto no portal, “Lux”, que, como o anterior, deixa entrever uma preocupação metafísica abstrata demais – e, portanto, pouco profunda.
“O fugitivo dos sonhos”, de Carlos Ribeiro, é um dos mais fracos da coletânea, porque é quase uma cópia do filme Dreamscape (aqui batizado de Morte nos sonhos), com Dennis Quaid. Pode um conto partir da mesma premissa de um filme? Claro que pode, não há nada de errado nisso. Só parece errado quando o desenvolvimento da história não leva a nenhuma outra conclusão ou plot twist que não seja o da história cuja premissa foi usada.
“Memórias”, de Luiz Bras, é um conto mais sintonizado (ou chipado, como diz Fausto Fawcett) com o que está se escrevendo lá fora. A história de uma mãe que não reconhece mais sua filha, e que deixa o leitor a todo instante na dúvida sobre se ela tem Alzheimer ou se está sendo controlada por alguém que tomou seu corpo, parece recolher influências que vão de Michael Crichton a Nancy Kress, passando por Philip K. Dick, o que é animador. Mas, assim como o conto de Gallo citado anteriormente, ele decepciona (embora nem tanto) justo no final, mais especificamente no último parágrafo, quando o que podia ter sido deixado em aberto é esclarecido, e uma espécie de “justiça” é estabelecida. Fora isso, teria sido perfeito.
“O livro azul-turquesa”, de Homero Gomes, também caminha pela seara da metafísica e do clichê, mas a linguagem rebuscada e às vezes pseudobíblica volta e meia abre caminho para uma linguagem crua e sacana, quase pornográfica, o que dá ao leitor a sensação brechtiana da quebra da quarta parede, o que é necessário num gênero que no Brasil ainda é tão “quadrado”, tão convencional na forma. Lembra Samuel Delany e John Brunner. Muito, muito interessante.
“A última revolta de Jesus Cristo (baseado numa história que tudo indica ser real)”, de Rogers Silva, é para enfurecer qualquer católico carismático e fã de carteirinha de Mel Gibson. Satirizar Cristo também é algo que já foi muito feito, de Michael Moorcock a José Saramago, mas o bom da história de Rogers é que ela é curta, grossa e vai direto ao ponto. É uma piada, e é engraçada. Jesus é torturado na cruz e simplesmente decide que morrer pelos humanos é um absurdo. E suas últimas palavras não são exatamente aquelas que conhecemos pela Bíblia. É um dos melhores contos do portal.
Em “O mundo desencantando de Desseres”, Rogers escreve uma narrativa igualmente curta e grossa, embora mais poética (no bom sentido), com um pouco de García Márquez e de Murilo Rubião, mas não supera o conto crítico.
Os contos que fecham o portal são de Ivan Hegenberg. Recém-chegado ao universo da ficção científica com seu romance Será (que na verdade mais se parece com um conte philosophique na antiga e venerável tradição iluminista francesa), Ivan descreve em “Dia qualquer” uma história sobre a diferença (ou a falta dela) entre os mundos real e virtual e, o mais importante, a maneira com isso altera irremediavelmente a vida de uma pessoa. Bom conto, mas a parte virtual é muito óbvia, e Ivan se beneficiaria muito da leitura de clássicos da FC de realidade virtual como Neuromancer, Snow Crash e Simulacron-3, entre outros.
O último conto, “Mastsch”, é bem mais interessante, até porque é uma narrativa mais literária no sentido genérico, de “obra aberta”, sem classificação com este ou aquele gênero. A história do confronto do que parece ser apenas um jovem possuído pelo demônio (ou não) numa igreja lotada é de uma pungência que dói, e cujo final nos deixa ao mesmo tempo tristes e satisfeitos.
Abrir caminhos
Resumo da space-opera? Nelson de Oliveira é um descarado de marca maior. Sim, porque é preciso ter coragem para se arriscar num empreendimento desses nos dias de hoje. Mesmo com os custos de gráfica mais baixos que há vinte anos atrás, quem garante que essa revista será lida?
Eis o mistério do fã.
Porque o objetivo não é lucrar. É justamente o contrário: dentro do espírito do copyleft, Nelson reuniu pessoas do chamado mainstream literário e autores do gênero ficção científica – e criou uma ponte entre as duas categorias.
Essa iniciativa, segundo o próprio Nelson, acontece em grande parte devido ao desinteresse das grandes editoras em publicar ficção científica contemporânea. Como eu já disse em outro artigo para este Palavra, a matemática é simples: a ficção científica publicada aqui tem pelo menos vinte anos de atraso em relação ao que se publica lá fora. Portanto, não é de se estranhar que os autores que se propõem a fazer FC agora se baseiem em modelos já ultrapassados, como Asimov, Clarke, Bradbury. Mesmo Dick, que é tão fascinante, já esgotou (por ora, pois essas coisas são sempre cíclicas) suas possibilidades narrativas pela via da emulação.
Não existem respostas prontas. Muito já se discutiu dentro do gênero no Brasil em 25 anos de atividade de um grupo mais consolidado (ainda que não unido, mas esta é uma outra história). A iniciativa de Nelson abre mais um espaço necessário de publicação, e que pode levar a discussões saudáveis. Afinal, é um primeiro número. Pelo projeto original, faltam mais cinco edições. Tudo pode acontecer.
A tiragem limitada, apenas para distribuição, é para o benefício dos amigos e de qualquer pessoa que se interesse pelo gênero. Para que as pess