Um relato/desabafo sobre os protestos pelo passe livre
Na Consolação, na altura da praça Roosevelt, a marcha parou. Um pouco mais à frente, na esquina da Maria Antonia, um cordão da PM. Ninguém passaria dali. O direito à manifestação cerceado. Cercado.Igor Ojeda
(Manifestantes reunidos em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, no 4° grande ato contra o aumento das passagens. Foto: Francele Cocco)
O quarto grande ato contra o aumento foi nosso primeiro deste ano. E, conforme o prometido, foi o maior. Estava gigante. Estava lindo. Emocionante. Acho que só tinha visto algo parecido na passeata contra o Bush em 2007, que coincidiu com o 8 de Março. Mas um ato de repúdio não tem a mesma força que um de luta por um direito negado. Pelo direito de ir e vir. Pelo direito a um transporte público digno. 15, 20, 25 mil pessoas? Não importa. Éramos um só, uma só voz. Clichê, mas verdadeiro.
Do Theatro Municipal para a praça da República, avenida Ipiranga, Consolação. “Vem pra rua vem, contra o aumento!” “Ôôô, o povo acordooou!”, “Ô motorista, ô cobrador, me diz aí se o seu salário aumentou!” Um protesto “pacífico”, essa palavrinha que tanto agrada aos tarados pelo “Estado Democrático de Direito”, conquista fundamental do povo brasileiro após anos de luta contra a ditadura que é usada e abusada pela elite – econômica e dirigente – para a manutenção do status quo.
A massa gritava, em uníssono: “Sem-viii-o-lên-ciaaa!” Vaiava e constrangia os poucos (os muito poucos) que socavam as portas de ferro dos comércios fechados ou chutavam alguma lixeira: a minúscula minoria de “vândalos” (infiltrados ou não) tomados como o todo pela mídia, pela PM, por Alckmin e, sim, também por Haddad, Nádia Campeão e José Eduardo Cardozo.
Na Consolação, na altura da praça Roosevelt, a marcha parou. Um pouco mais à frente, na esquina da Maria Antonia, um cordão da PM. Ninguém passaria dali. O direito à manifestação cerceado. Cercado. Alguns minutos depois, as bombas, as balas de borracha, apontadas diretamente contra a multidão. Simples assim. Olhos e gargantas ardendo, marcas roxas no corpo, revolta, ódio. A partir daí, foi o caos. A multidão se dispersou. Corremos para baixo do Minhocão, para a Amaral Gurgel. Algumas centenas de manifestantes fizeram o mesmo. Aí, sim, veio a depredação descontrolada – ainda assim, praticada por uma minúscula minoria. Ainda sim, com o principal objetivo de montar barricadas (e quem se escandaliza com imagens de barricadas pegando fogo como forma de defesa contra a repressão estatal nunca leu um livro de história e/ou nunca sofreu repressão estatal).
Uma viatura solitária da PM passa no sentido contrário. Alguns manifestantes a cercam, jogam pedras, quebram um dos vidros, pulam sobre ela, obrigando-a a fugir pela rua transversal. Cena realmente impressionante. Mas querem saber? Entendo a revolta. Querem saber? Gostei de ver policiais fugindo da população em fúria. Lavou um pouco a alma.
Porque segundo a ordem (ah, a ordem) “natural” das coisas, é a população que foge dos policiais em fúria. E foi isso que aconteceu no restante de todo o ato. Grupos dispersos, de algumas centenas de pessoas cada um, sendo perseguidos pela PM. A Tropa de Choque não jogava bombas de gás lacrimogêneo e atirava balas de borracha apenas nos que tentavam furar seu cerco. O faziam também contra os que iam em sentido contrário, e corriam para alcançá-los.
Que momento é esse em que estamos vivendo no país, com tantos retrocessos morais e políticos (muitos deles, patrocinados pelo governo federal)? Que nome dar a uma ação policialesca que prende dezenas de pessoas antes mesmo de o ato começar, por portarem garrafas de vinagre, senão “ditadura”? Que qualificação dar à condição desses detidos senão a de “presos políticos”?
É engraçado. Nas favelas, o estado de exceção é permanente. Mas é velado, porque a mídia não cobre. Vida de preto e pobre executado pela PM vale muito menos até que a do playboy que tem o celular roubado no restaurante do Jardins e sai ileso. O estado de exceção é permanente também para os indígenas que são “entraves para o progresso”. Mas é igualmente velado. E os exemplos se acumulam. Foi preciso uma repressão brutal contra um ato cuja maioria dos participantes é de classe média – o que não tira um milímetro de sua legitimidade – para que esse estado de exceção ficasse escancarado.
Situação chancelada, vejam só, pelo excelentíssimo ministro da Justica (!) José Eduardo Cardozo, que ofereceu ajuda ao governo tucano na próxima repressão. Juro que não entendo qual é o cálculo político perverso do ministro ao agir dessa maneira. Porque só posso crer que seja um cálculo político. Do contrário, é canalhice pura. E o que dizer das lamentáveis declaraçõs do Haddad, em quem votei para derrotar José Serra, pois não, não os achava “a mesma coisa”? É duro. Apesar de tudo, ainda é duro ver um governante do PT vomitar cínicas justificativas técnicas para explicar a não tomada de uma decisão essencialmente política. “Uma redução das tarifas custaria x milhões.” Meu deus, quão preso está o rabo do prefeito com as empresas de ônibus? Com a indústria automotiva? Com as empreiteiras que constroem pontes e abrem avenidas? Não sou nenhum ingênuo que não sabe que no atual sistema político brasileiro um prefeito só se elege se seguir o script dessas empresas. Mas o quão dentro de esquema está Haddad que não lhe permite esboçar a mínima sensibilidade diante de um movimento social dessa magnitude?
“Precisamos desobstruir as vias públicas”, nos disse um PM quando perguntamos por que haviam reprimido a manifestação. É isso. Ponto. A missão, para a PM e para o poder “público”, é desobstruir as vias públicas, para que a conservadora classe média paulistana, em seus carros, possa chegar em casa a tempo do Jornal Nacional e da novela das 9. A qualquer custo, ao custo até da violação do direito à manifestação.
“Ah, mas você só fala no Haddad! E do Alckmin??”. Sinto muito. Já metemos muito o pau no Alckmin, no Serra, no PSDB, o tempo todo e, especialmente, a cada eleição, pois “é preciso derrotar a direita”. Agora é hora de cobrar aqueles de quem a gente espera alguma coisa, mesmo que o mínimo do mínimo. Essa paranoia delirante de ver nas mobilizações uma ação orquestrada pela “extrema esquerda” para atingir o PT é desonesta, é mesquinha. E quem o faz corre o risco de acabar na lata de lixo da história. Paulo Henrique Amorim à frente.
PS: Segunda-feira vai ser maior.
Igor Ojeda é jornalista.