Um rosto, obra da mão
Uma primeira cirurgia é uma experimentação. Isso não reduz seu caráter terapêutico. A questão que se poderia colocar é saber se a operação é inocente, nociva ou benéficaFrançois Delaporte
O transplante parcial do rosto de uma mulher que sofreu uma lesão mutilante, em 27 de novembro de 2005 – o primeiro no mundo – suscitou previsíveis ataques violentos em nome da moral. De acordo com alguns comentaristas, o comportamento dos cirurgiões Bernard Devauchelle e Jean-Michel Dubernard não é ético e os dois médicos teriam como objetivo um sucesso na mídia. Na verdade, do ponto de vista dos que se apresentam como guardiões do conhecimento médico e da moral, essa intervenção é perturbadora.
Os “éticos” acreditam que o transplante é uma técnica de finalidade única: salvar a vida de um doente. Crêem também que é sempre possível aceitar uma deficiência. Nos casos em que outros realizam imprudentemente um transplante parcial da face, eles avaliam que próteses tradicionais seriam suficientes. Em vez de um ativismo médico em busca de exploração, seria conveniente preferir uma atitude responsável.
As coisas não são tão simples. Para compreendê-las, é preciso uma breve retomada histórica. A lei francesa de 23 de dezembro de 1976, chamada “lei Caillavet”, sobre a retirada de órgãos enuncia: “Pode-se efetuar retiradas com fins terapêuticos ou científicos no cadáver”. Fica aberta a questão dos fins terapêuticos, porque a lei não limitou a lista dos órgãos suscetíveis de serem retirados. Em 1988, o Comitê consultivo nacional de ética formulou uma especificidade da qual surgiu o mal-entendido: “Não se pode ignorar que existe uma diferença entre um transplante de órgãos capaz de salvar uma vida humana imediatamente e uma experiência cujo resultado é imprevisível [1]”. Muito rapidamente, uma interpretação restritiva dessa disposição se impôs: somente devem ser feitos transplantes de órgãos que garantam a salvaguarda de uma vida humana. São conseqüência as distinções que separam, de um lado, o vital, o escondido, o profundo; e de outro, o supérfluo, o secundário, o acessório. Ou as barreiras entre a cirurgia cardíaca, profunda e nobre e a cirurgia da superfície, considerada superficial.
Não é de espantar, portanto, que o conservadorismo médico tenha manifestado, em relação ao transplante do rosto, um excesso de confiança nos procedimentos mais convencionais, como as próteses. No entanto, a vontade de se ater às soluções clássicas impede que se perceba a gravidade de uma mutilação e pressupõe a identificação da deficiência com uma lesão benigna. Em contrapartida, para o cirurgião colocado diante dessa desfiguração, não tentar uma operação significaria colocar-se em posição de não-assistência à pessoa em perigo. Certamente, não deveria haver intervenção sem presumir um resultado feliz. O cirurgião não deve ignorar que tudo pode se transformar em drama. Devido ao excesso de prudência, é possível chegar à negação das próprias condições de conhecimento, fonte de inovações terapêuticas. Queira ou não, para conquistar alguma segurança, é sempre preciso passar por um primeiro risco.
Supostos “éticos” versus cirurgiões
A oposição é completa entre “éticos” e cirurgiões, tanto a respeito da natureza da deficiência quanto da própria operação. Para os primeiros, inaceitável é à lesão de um órgão vital, que é preciso mudar a qualquer preço. Um problema que simplesmente obscurece a aparência seria aceitável. Não é necessário dizer que um transplante do coração salva uma vida. Mas o valor está no ser vivo. Em sua totalidade. Seria absurdo separar as funções de ligação, que nos põem em contato com o mundo, da vida orgânica ou vegetativa. E reservar os transplantes para os órgãos que interrompem a segunda.
Sem dúvida, vivemos por meio do coração, mas vivemos também pelo corpo metafórico. Restituído como um dedo de luva, o interior se expõe na superfície. Será necessário que o grito de Edvard Munch, o grito do coração, seja tão insuportável para que seja escondido? É preciso não esquecer que o jogo das emoções é produto da evolução. E que o rosto permite o retorno da expressão.
Devemos colocar esse transplante na categoria dos testes clínicos? Seguramente, não. Um teste ligado à avaliação de um tratamento, com o acordo dos pacientes, é sobretudo tranqüilizador. Mas, na presente situação, trata-se de dar uma solução a um problema médico ou, caso se prefira, tratar um caso patológico. Um caso grave. Não é porque alguns não conhecem o valor de um gesto terapêutico que este deve sair do conjunto de verdadeiras operações com finalidade curativa.
Querer insinuar, nas práticas da medicina, a firmeza de caráter como critério do direito a ser operado, seria basear o acesso aos cuidados em uma forma de hierarquia social baseada no mérito individual
Uma primeira cirurgia é uma experimentação. Isso não tira em nada seu caráter terapêutico. E quando Emmanuel Hirsch, professor de ética, salienta que estamos aqui “na pura experimentação”, na verdade, ele nos lembra essa evidência: sonhar é experimentar. A única questão que se poderia colocar é a de saber se essa operação é inocente, nociva ou benéfica. No momento, há uma única certeza da qual Claude Bernard nos convida a compartilhar: “Todos os homens que se limitam a falar de experimentação no canto da lareira nada fazem pela ciência; antes de mais nada, eles a prejudicam [2]”.
Para os partidários de uma lógica de segurança, a lesão do rosto não merece uma operação. É fundamentalmente o tratamento imunossupressor, devido aos riscos que ele implica para a paciente, que eles confundem com um estado patológico. Não é bom trocar um problema menor por um estado de doença crônica. Conseqüentemente, a afirmação segundo a qual não seria ético oferece essa saída como remédio. O tratamento se impõe no quadro da atenção global que deve ser dada à paciente. É preciso, então, retomar o argumento: não seria ético renunciar à operação inicial, sob o pretexto de que o tratamento se revela penoso a longo prazo.
Todo transplante que evita a morte é ético?
A reserva dos “éticos” tem como correspondente uma adesão total aos transplantes de órgãos que salvam a vida imediatamente. Ou que reduzem os limites da morte. Essa percepção tende a fazer a medicina dos transplantes entrar em um quadro que já está projetado no ar. Entre salvar a vida e venerá-la só há um passo. Um passo que carrega uma idéia da vida mais abstrata do que autêntica. Veja, por exemplo, a obstinação terapêutica. Gesto de desnaturação por excelência. Ele também salva uma vida imediatamente. Ele também reduz os limites da morte. Mas que vida? E que morte? Seguramente, os “éticos” subordinam as técnicas a uma metafísica da vida. Em compensação, os cirurgiões colocam as técnicas a serviço de uma física da vida. A operação de transplante do rosto visa a um processo de renaturação. A arte sabiamente equipada do cirurgião ou do médico que faz o transplante utiliza, orienta e sustenta a natureza. Com o objetivo de estabelecer a volta das formas e das funções.
Último problema levantado pelos “éticos”: como se pôde fazer uma operação tão pesada em uma paciente tão frágil? Ainda mais frágil porque sabemos que vários jornais evocaram o suicídio da doadora e a tentativa de suicídio da receptora. Mesmo se essas informações fossem verdadeiras, isso não constituiria uma objeção. Muito pelo contrário. O suicídio bem-sucedido da primeira e a tentativa de suicídio da outra desencadearam imprevistos. Por um lado, aos olhos de sua família, o suicídio da doadora torna-se uma morte extremamente útil, graças às doações de órgãos. Por outro, a receptora vive sua mutilação como um obstáculo a ultrapassar. Ao deixar de ser indiferente à sua imagem, ele reencontra a preocupação consigo. Querer aparecer é ter uma razão para viver.
Perigoso argumento, o de que seria preciso estar equilibrada para suportar a operação. O controle de si poderia muito bem ser traduzido pelo fato de que se é indiferente à sua aparência. Se a própria pessoa mutilada pode normalizar sua vida correspondente à sua coragem, ela não tem necessidade de transplante. Mas há mais. Querer insinuar, no coração das práticas da medicina, a firmeza de caráter como um dos critérios do direito de ser operado, seria basear o acesso aos cuidados em uma forma de hierarquia social baseada no mérito individual.
Devido ao fato de se colarem à legislação e às problemáticas atuais em matéria de biotécnica e de biotecnologias, os “éticos” acabaram espalhando estranhos rumores. Os médicos manipularam seus pobres doentes, ignoraram onde passa a linha divisória entre uma experiência útil, segura, e todas as outras. Até que se prove o contrário, um Centro hospitalar universitário reúne algumas pessoas competentes suscetíveis de se unirem para chegarem a um projeto terapêutico. É excepcional que esse lugar abrigue o laboratório secreto de algum estudioso que tenha tomado o “partido de S