Uma alternativa para a crise pandêmica?
Expertise acadêmica orientada para as desigualdades pandêmicas e os saberes e capacidades acumulados nos movimentos sociais podem, se incentivados por desenhos institucionais abertos e responsivos, oferecer alternativas à gravidade da pandemia hoje
Os movimentos sociais foram uma das molas propulsoras da nossa redemocratização. Nas favelas, nas associações de amigos de bairro, nas organizações de base ou no campo, eles demandavam a prefeitos e governadores melhorias nas condições de vida, na habitação, na saúde, nas creches, nas escolas. Em um contexto como o atual, no qual o negacionismo governamental impede qualquer tentativa racional de combate à Covid-19, movimentos populares e organizações da sociedade civil brasileira podem fazer toda a diferença. É essa a força trazida pela Coalizão pela Vida para “sensibilizar a sociedade e o poder público sobre a necessidade urgente de priorizarmos a prevenção no enfrentamento da doença”. Deslocando o eixo de atenção e combate atualmente voltados majoritariamente para dinâmicas pós-contaminação, a Coalizão reúne movimentos populares, ONGs, bem como pesquisadoras e pesquisadores das universidades paulistas visando reorientar a hierarquia das práticas e estratégias de combate à pandemia na cidade de São Paulo.
Boa parte das políticas públicas criadas no Brasil desde finais da ditadura teve algum movimento popular envolvido. Foram inúmeras as histórias e formas pelas quais representantes do Estado e da sociedade civil se aproximaram, via de regra, perpassados doses de tensão. Essas formas de aproximação ultrapassaram os protestos e foram, no pós-1988, institucionalizadas em desenhos participativos como conselhos, orçamentos e audiências. Hoje a cidade de São Paulo e a sua prefeitura precisam se abrir para um arranjo institucional no qual as perspectivas e capacidades técnicas acumuladas nos movimentos e organizações da sociedade civil possam, de fato, contribuir para uma inflexão mais efetiva no rastreamento da doença e seu combate. E essa abertura para um desenho institucional de articulação com a sociedade civil certamente não precisa nem deve ficar restrita ao cenário paulistano.
Esse desenho encontra eco na proposta da Coalizão de uma “mesa permanente” composta por membros da sociedade civil e autoridades municipais. Nela ambos podem ter uma visão mais integral e transparente das ações contra a pandemia. Quantas equipes de saúde da família estão em ação? Quais seus dilemas, limites e alcances semanais? As organizações e movimentos populares podem qualificar a atuação dessas equipes? Como? Respostas a questões como essas levam ao aumento da responsividade municipal, cujos efeitos, por sua vez, podem ser positivos no enfrentamento pandêmico. Uma futura e necessária “mesa” socioestatal de diálogo pode, se fomentada, situar a capilaridade dos movimentos e suas formas de controle societal como opções que enriquecem o leque das alternativas hoje disponíveis.
Outra proposta da Coalizão consiste na “Força-Tarefa para Ações Integradas”. Aqui é central a interlocução com grupos e redes cientificas de pesquisa que já estão em andamento como, por exemplo, a Rede Pesquisa Solidária. Nessa proposta, trata-se de desmontar o diagnóstico de que a pandemia seria “democrática”, como se ela atingisse igualmente a toda a sociedade. Ao contrário, seguindo resultados de pesquisa, determinados grupos sociais e territórios são tendencialmente mais afetados que outros, de modo que as estratégias de priorização, tanto em testagem como em vacinação, devem levar em conta tais desigualdades.
Por fim, é proposto um lockdown de, pelo menos, três semanas. Aqui, mais uma vez, a interlocução com acadêmicos é central na medida em que a Coalizão se inspira expressamente na proposição do grupo Abril pela Vida. Certamente, essa medida não é simples. Por isso, no projeto do Abril pela Vida, a proposta de lockdown vem conjuntamente com outras medidas como o “auxílio emergencial único”. Medidas como essa visam amparar partes expressivas da população que não teriam como parar o trabalho ou fazer trabalho remoto.
Como todos sabem, não há soluções fáceis para a catástrofe em curso. No entanto, tanto a expertise acadêmica especificamente orientada para as desigualdades pandêmicas, como os saberes e capacidades acumulados nos movimentos sociais e nas organizações da sociedade civil podem, se incentivados por desenhos institucionais abertos e responsivos, oferecer alternativas à gravidade da pandemia hoje. Não é a salvação da lavoura, mas é muita coisa.
José Szwako é sociólogo, professor do IESP-UERJ, pesquisador do Cebrap e membro da Rede Democracia & Participação.