Uma Chernobyl midiática
Desde a eleição de Donald Trump, a elite jornalística mundial propaga uma teoria da conspiração segundo a qual o Kremlin controlaria a Casa Branca. Uma investigação pulverizou essa elucubração. O círculo da razão tornou-se paranoico?
Vinte e quatro de março de 2019: um dia que deveria ficar na história como o domingo negro da grande mídia. Em quatro páginas lapidares, o ministro da Justiça dos Estados Unidos resume as principais conclusões do promotor especial Robert Mueller, que por mais de dois anos investigou com meios consideráveis o suposto acordo – coordenação, conluio ou conspiração – entre Donald Trump e seu colega russo Vladimir Putin para falsear a eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016. Veredito: “Definitivamente, as investigações não estabeleceram que a equipe de campanha [de Trump] se coordenou ou conspirou com o governo russo no quadro de atividades destinadas a interferir nas eleições” (ler mais na pág. 30).
Acima de qualquer suspeita de complacência em relação ao bilionário nova-iorquino, a tal ponto que os democratas lhe devotavam um culto (um site até comercializa “velas de oração a São Robert Mueller”, por 12,85 euros), Mueller acabava de negar, no tempo de um clique no botão “enviar”, as mais formidáveis fake news da década, segundo as quais o presidente dos Estados Unidos estaria sujeito à chantagem do Kremlin, ou até mesmo teria se tornado o “fantoche de Putin” graças a gravações comprometedoras de suas escapadas sexuais em um hotel de luxo em Moscou em 2013 – jornais ilustres repetiam um após o outro, encantados, o termo russo kompromat. Desde o início de 2017, o chamado Russiagate fez borbulhar as caldeiras editoriais das publicações mais prestigiosas do planeta.1
“Não se poderia excluir a possibilidade de o presidente dos Estados Unidos ser o agente, consciente ou não, de uma potência estrangeira hostil”, explicou, por exemplo, o especialista Michael Fuchs em US News and World Report (28 dez. 2017). Seis meses depois, a New York Magazine (9 jul. 2018) descreveu a reunião de cúpula de Putin e Trump em Helsinque como o “encontro entre um recruta dos serviços secretos russos e seu cliente”. No canal “de esquerda” MSNBC, a popular apresentadora Rachel Maddow interpretou cada uma das decisões de Trump – o anúncio de uma retirada das tropas do Afeganistão ou da Síria, as negociações com a Coreia do Norte etc. – como mais uma prova de sua submissão às ordens do Kremlin. Pouco depois da Cúpula de Helsinque, ela convidava a considerar “a possibilidade de alguém ter chegado à presidência dos Estados Unidos para servir aos interesses de outro país que não o nosso” (16 jul. 2018).
Com uma imaginação impressionante, a revista Time dedicou uma capa a um conjunto de bonecas russas que, por encaixes sucessivos, levava do presidente norte-americano a seu homólogo do Kremlin. “Todos os homens do czar: como os oligarcas de Putin se infiltraram na equipe de Trump” (1º out. 2018). E, na rede ABC (12 abr. 2018), James Comey, ex-diretor do FBI demitido por Trump, adiantou uma hipótese que fez a intelectualidade norte-americana dar pulos de alegria: “Não sei se o atual presidente dos Estados Unidos esteve em 2013 em Moscou com prostitutas que urinavam umas nas outras; é possível, mas eu não sei”. Numa virada rocambolesca, os representantes de uma instituição policial que assassinou dezenas de ativistas antirracistas nas décadas de 1960 e 1970 desfilavam então – e ainda desfilam – em redes progressistas para fornecer lições de manutenção da democracia.
“Se Trump não é o lacaio de Putin, está mais que na hora de ele provar isso”, bradou um editorial do New York Times em 21 de março de 2018, esquecendo que cabe sobretudo a um jornal provar suas alegações de traição. Seis meses depois, o mesmo jornal publicou um artigo imenso enfeitado com uma iconografia em claro-escuro apresentando mãos presas por fios para sugerir, sem excessiva leviandade, a manipulação. Sua retórica evoca a dos conspiracionistas convencidos de que a Terra é dominada por reptilianos ou Illuminati: “Há razões para acreditar que Putin conseguiu oferecer a presidência a seu admirador Trump, mesmo que não se possa provar ou negar isso” (20 set. 2018). Tal arte de investigação mereceria um Prêmio Pulitzer. E o jornal o recebeu naquele ano…
Com o Russiagate, uma teoria da conspiração que um roteirista de James Bond teria julgado muito extravagante não tem como fonte trolls macedônios ou militantes do “alt-right”, mas o coração pulsante da imprensa liberal, ali onde palpita uma deontologia ao mesmo tempo austera e admoestadora: New York Times, The Economist e Washington Post; as redes CNN, MSNBC, mas também Arte e BBC; sem mencionar Libération, Le Monde e Guardian. Em suma, os jornalistas que têm por clientes as camadas sociais mais educadas, refinadas e poderosas. E a mídia que, desde 2016, do Brexit e da eleição de Trump, coloca a denúncia das fake news no centro de seu projeto editorial. Ao isentar Trump da suspeita de conluio com os russos, o relatório Mueller detonou a narrativa principal que lhes permitira não apenas reconstruir para eles uma legitimidade diante das novas mídias, mas também – particularmente nos Estados Unidos – ganhar muito dinheiro.
Aqui está, portanto, o o rabo abanado e encarregado de encenar seu desapontamento. Em qualquer outra circunstância, o escândalo teria sido global – afinal, a luta contra as notícias falsas está entre as prioridades oficiais das democracias liberais.
Então, como a mídia informou sobre as conclusões do promotor Mueller? Ela reconheceu que uma onda de paranoia havia contaminado suas prestigiosas redações? Além de um punhado de franco-atiradores de esquerda, como Glenn Greenwald e Matt Taibbi, que denunciam desde 2016 as fake news (oficiais) do Russiagate,2 alguns jornalistas norte-americanos conservadores se deram conta de que sua profissão acabava de sucumbir a uma “alucinação coletiva que destruiu o que restava de crédito para a imprensa americana” (Lee Smith, Tablet, 27 mar. 2019). Ou, mais sobriamente, que “tudo isso não valia a pena” (The Wall Street Journal, 18 abr. 2019).
A maioria dos outros, porém, preferiu negar seu fracasso. “Sabemos que a carta [do ministro da Justiça resumindo o relatório Mueller] não tem nenhum significado. É absolutamente… Isso não significa nada”, apregoou o apresentador da MSNBC Joe Scarborough (29 mar. 2019). Uma vez publicado o relatório Mueller, os perpetradores de um complô imaginário preferiram lembrar que Trump às vezes fora tentado a abusar de sua autoridade para impedir uma investigação que o horrorizava e que ele nem sempre se mostrara sincero nem necessariamente delicado. Um tanto de conclusões que não exigiam dois anos de investigação e todo esse alarido.
Na França, duas palavras caracterizaram a cobertura do relatório Mueller: discrição e desvio. Na France Inter, rádio pública destacada na luta contra as fake news, a especialista em mídia Sonia Devillers não dedicou à debandada de seus colegas nem um de seus editoriais diários nem um episódio de seu programa L’instant M [Momento M]. Por outro lado, ela tratou de assuntos certamente mais importantes, como a história do “Club Dorothée” (4 abr.) e, mais de acordo com as inclinações editoriais da emissora, “O ódio dos jornalistas” (19 abr.), “A mídia para o mal na Hungria” (12 abr.) ou “A fábrica da mentira” (5 abr.), uma série de documentários “superbem elaborados” realizados pela France 5 sobre fake news – aqueles produzidos pelos partidários de Trump e pelas direitas nacionalistas…
Ainda na France Inter, Pierre Haski, responsável pela coluna “Geopolítica” desde que seu antecessor, Bernard Guetta, se tornou candidato do poder nas eleições europeias, também não pareceu inspirado pelo fiasco do Russiagate: três semanas após a deflagração do 24 de março, o evento ainda não tinha merecido que ele o mencionasse para seus ouvintes. Haski, no entanto, preside a associação Repórteres Sem Fronteiras.
Por seu lado, o Le Monde (26 mar. 2019) reservou sua manchete de primeira página para o evento: “Trump triunfa após as primeiras conclusões da ‘investigação russa’”. No entanto, o editorial publicado no dia seguinte fez um balanço singular de três anos de uma vida pública norte-americana gangrenada por uma gigantesca paranoia: “As instituições do país funcionam”. Nos Estados Unidos, um dos únicos editorialistas que ainda merecem ser lidos do New York Times tira desse episódio uma conclusão oposta. Ross Douthat observou que todo o pessoal – político, da mídia, judicial, da segurança – que participa do equilíbrio dos poderes “devotou sua energia a esse tipo de realidade alternativa conspiratória contra a qual imaginava resistir” (26 mar. 2019). Enquanto os conspiracionistas nas profundezas da internet são o assunto de todas as zombarias, o “centro paranoico” age com as armas do poder, sua legitimidade, seus intelectuais, sua autoridade. Ele ameaça, portanto, a vida pública das democracias com o mesmo intuito da direita nacionalista que alega combater: “Na medida em que o centro acredita na bondade inata das instituições norte-americanas e ocidentais, na sabedoria fundamental e no patriotismo daqueles que as representam, sua percepção da ameaça é sempre sensível aos grandes inimigos do estrangeiro e aos radicais de dentro. E ele teme acima de tudo que esses dois grupos estejam trabalhando de comum acordo”.
Quando o vício é muito forte, a sabedoria é impotente… Nos dois lados do Atlântico, as direções editoriais foram rápidas em confirmar a pertinência do diagnóstico de Douthat. Oito dias depois desse Chernobyl midiático, o Le Monde publicou “uma série sobre a influência e as redes da Rússia no exterior”, cujo artigo principal tratava das ligações de Moscou com a extrema direita. Para não ficar para trás, o La Croix (15 abr. 2019) lançou um cerco às “falsas informações susceptíveis de influenciar a eleição” europeia de 26 de maio. Primeiros suspeitos, de acordo com o jornal: “os russos”.
E assim, como se nada tivesse acontecido, as mil declinações do tema “Moscou, capital do império do mal” foram retomadas. No dia 2 de abril, o título da edição internacional do New York Times era: “Por que a Rússia teria ordenado o assassinato de um eletricista ucraniano?”. No dia seguinte, sempre na primeira página, foi na Venezuela que Moscou espalhou sua teia e multiplicou as fraudes. Outras 24 horas e mudamos de continente: “A ascensão da Rússia na África alerta o Ocidente”. Moscou vende armas ali, provavelmente menos suaves que as nossas e, horror inimaginável sob nossos céus clementes, dá seu apoio a… “autocratas” de lá!
Coube, no entanto, à célebre revista Time (15 abr. 2019) resumir em um título (acompanhado de um longo texto) o próximo Graal editorial da imprensa liberal. Já que a obsessão de um mau acordo entre Trump e Putin se esvaziou, damos lugar a… “O outro complô russo”.
*Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é da direção do Le Monde Diplomatique.
1 Ler Serge Halimi, “Marionnettes russes” [Fantoches russos], e Aaron Maté, “Ingérence russe, de l’obsession à la paranoïa” [Interferência russa, da obsessão à paranoia], Le Monde Diplomatique, respectivamente jan. 2017 e dez. 2017.
2 Glenn Greenwald, “Robert Mueller did not merely reject the Trump-Russia conspiracy theories. He obliterated them” [Robert Mueller realmente não rejeitou as teorias da conspiração Trump-Rússia. Ele as destruiu], The Intercept, 18 abr. 2019. Disponível em: <https://theintercept.com>; Matt Taibbi, “It’s official: Russiagate is this generation’s WMD” [É oficial: Russiagate são as armas de destruição em massa desta geração”], Hate Inc., 23 mar. 2019. Disponível em: <https://taibbi.substack.com>.