Uma cilada em moto-contínuo: o “quase silêncio” do STF e do TSE
O silêncio também manda recado. Este parece ser o aprendizado do Judiciário brasileiro em 2022. Faltando menos de 100 dias para o primeiro turno das eleições, tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) adotaram a estratégia de não responder diretamente às provocações do presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). O comportamento se estende também à opinião dos militares, que, com uma frequência que merece nota, também se pronunciam sobre a lisura das urnas, os procedimentos de checagem de votos e outros quitais como se fossem experts no assunto ou como se essa fosse a sua atribuição constitucional.
É claro que o próprio Judiciário tem culpa nessa cobrança porque usou como tática do tipo “vacina” chamar os militares tanto para dentro dos Tribunais como também para acompanhar o processo eleitoral. O leitor pode, inclusive, tentar achar o início dessa cilada como num quiz. Em ordem cronológica há algumas opções.
Letra A: o entrevero começou quando o Supremo não respondeu ao tuíte do então comandante do Exército, general Villas Bôas, na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula (PT) em abril de 2018 (com a exceção do voto do então ministro, o decano Celso de Mello, que foi enfático na defesa da democracia). Letra B: quando Dias Toffoli, ministro do Supremo, chamou Fernando Azevedo e Silva, general da reserva do Exército, para o cargo de assessor especial do Tribunal; convite feito antes mesmo da posse de Toffoli como presidente do STF, em setembro de 2018. Letra C: quando, em setembro de 2021, o então presidente do TSE, ministro Roberto Barroso, divulgou a primeira composição da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), e na portaria nº 578/2021, está lá a representação das Forças Armadas.
Nosso estimado leitor pode fazer a escolha dessa espécie de “big bang” da crise institucional brasileira, ou pelo menos parte dela. E, como indica este prólogo, sobram possibilidades de análise dessa arapuca. Contudo, há um ponto que nos parece central: a estratégia de levar as relações em banho-maria até as eleições de 2022 ou, em outras palavras, o jogo de “quase silêncio” do TSE e do STF tem riscos iminentes que se apresentam tanto no plano institucional como na sua narrativa. Até porque, na sequência originária do nosso quiz, as tentativas de respostas que em algumas ocasiões calam, noutras respondem e em outras ainda moderam o tom colocam o Judiciário em uma perigosa penumbra vacilante entre moderar e sucumbir.
Embates públicos e conversas privadas
O TSE está em campanha pública para convencer parte da população da lisura do processo eleitoral e, mais do que isso, de que a garantia do respeito ao resultado das urnas é condição inegociável na democracia. Por outro lado, precisa lidar com a tensão entre as instituições e também com vozes dissidentes dentro do seu próprio quadro que possam, através de decisões monocráticas, tumultuar o processo. A tarefa lembra a de um acrobata de circo cuidando para que nenhum prato suspenso no ar caia e se estilhace no chão. Em uma pergunta imaginária: seria possível convidar a Anitta para uma campanha de adesão dos jovens à eleição e ao mesmo tempo ter que lidar com as críticas públicas da artista em relação à decisão do TSE sobre manifestações no Lollapalooza?
Ai que está: vai-se levando em banho-maria. Mas essa acrobacia é perigosa e me lembra de uma conversa que tive com um político da velha guarda sobre como se dariam as posições de um possível governo de centro-esquerda comandando o Brasil em 2023. A resposta foi: depende da correlação de forças. Nesse jogo de bastidores, de fato, o Judiciário parece ocupar o tentador papel de Poder Moderador, como bem fala o professor de Ciência Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Christian Lynch. É como se a cúpula do Judiciário também esperasse para ver como se dará a nova correlação de forças. Ocorre que, neste caso, o Judiciário não pode dissolver gabinetes e convocar novas eleições. Na verdade, para o seu próprio bem (e, nesse caso, o de todos nós), a Justiça tenta garantir que as eleições de 2022 ocorram sem tumulto ou mitigando os riscos.
Neste aspecto, há quem avalie que essa tentativa de baixar a temperatura é um caminho acertado. Na verdade, o ponto é que a comunicação de ambos os tribunais, em especial do TSE, tem mirado uma postura institucional, ampliando os canais para difundir sua pauta. Unbox de urna eletrônica, uso do TikTok, Kwai etc. Este é a tática dos canais oficiais. Contudo, fora deles, convém ressaltar a resposta do ministro Edson Fachin, presidente do TSE, ao ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, que disse que as Forças Armadas estavam sendo “desprestigiadas”. A resposta de Fachin parece sintetizar essa tática mais ampla: fala em diálogo, tentar não dar muito crédito e evita bater de frente. Eis o acrobata com pratos e o “banho maria”.
Em meio a esse quadro de incertezas, vale destacar que, há poucos dias, em 22 de junho, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), fez um jantar em homenagem aos 20 anos de Gilmar Mendes como ministro do STF. Lá estavam Bolsonaro e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes. Para ser elegante, não é segredo para ninguém o antagonismo entre os dois. O folhetim brasileiro já teve direito a ameaças contra o ministro, ataques públicos e carta de “reconciliação”.
Eis o problema, não se trata de uma ironia de bastidor palaciano, como em uma crônica de Machado de Assis. A estratégia não fecha. As conversas em jantares não são estanques em si mesmas. A ideia de equilíbrio dos pratos, moderação e outras questões internas parece se descolar de um “mundo” lá fora com ataques orquestrados, tentativas de golpe etc. É fato que o TSE tem tentado atuar na desinformação, com interlocução com big techs e tudo mais. Porém, como combinar ações tão díspares?
Mesmo moderando o tom, essa combinação entre embates públicos e conversas particulares é estranha. As estratégias palacianas como as descritas por Machado de Assis, ouso dizer, não dariam conta da verve Pulp Fiction dos dias atuais. Resumo da cilada: o Poder Moderador funciona na “corte” e não no mundo do zapzap.
Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política. Seu trabalho se volta para a relação entre política, justiça e mídia.