Uma “democradura” surgida das urnas
Alberto Fujimori foi reeleito presidente do Peru em eleições mais que suspeitas. Mas a fraude não explica tudo. Prisioneiros de um regime que exige fidelidade plena em troca de migalhas, e reconhecendo ainda no “Chino” o vencedor da hiperinflação e do terrorismo, inúmeros peruanos, sobretudo os pobres, emprestaram-lhe a vozKarim Bourtel
Na noite de 17 de maio de 1980, na véspera das primeiras eleições livres após 12 anos de ditadura militar, o Sendero Luminoso fazia sua aparição em uma comunidade do departamento de Ayacucho, em Cuzco. “Cinco pessoas encapuçadas entraram nos escritórios do centro eleitoral e queimaram registros e urnas. A ação começou às duas da manhã e, meia-hora mais tarde, tudo estava terminado”. [1] Foi o primeiro ato de uma guerrilha que iria mergulhar o Peru nas duas décadas mais negras de sua história : 25 mil mortos, 15 mil desaparecidos e mais de 600 mil desterrados que foram engrossar as favelas de Lima, ironicamente chamadas de pueblos jovenes (cidades novas). Quase 3 bilhões de francos de danos materiais.
Oito anos após a prisão do emblemático chefe do movimento, Abimael Guzmán, ocorrida em 12 de setembro de 1992 em Lima, o Sendero Luminoso não desapareceu de verdade nem do terreno nem do espírito dos peruanos, [2] diz o Presidente Gonzalo. E se o terrorismo foi declarado oficialmente morto, o presidente Alberto Fujimori tornou-se mestre na manipulação do trauma e da memória de guerra da população: “No dia 28 de maio, o povo peruano vai dizer não ao Sendero Luminoso, não ao Movimento Revolucionário Tupac Amaru, não ao terrorismo”, bradava ainda ele, por ocasião do encontro em Ayacucho, em 17 de maio passado. A pacificação do país tornou-se o instrumento retórico, e a oposição o alvo de todas as acusações. Três dias antes do segundo turno de 28 de maio, circularam panfletos no norte de Ayacucho, nas províncias de Huanta e de La Mar, nos quais Alejandro Toledo, o candidato do partido de oposição Peru Possível, aparece coberto com uma máscara e um boné portando a sigla do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA). [3] Trata-se de zonas produtoras de coca onde a guerrilha foi particularmente intensa: “violências, matanças, guerras, mortos. Votar em Toledo é votar no terrorismo.”
Jornais sensacionalistas
Este tipo de propaganda é encontrado até nos escritórios do Serviço Nacional de Salubridade Agrícola de Ayacucho (Senasa), um programa do ministério da Agricultura. Os periódicos chicha, jornais sensacionalistas e de preço baixo financiados pelo poder, veiculam os mesmo tipo de informação: “Abimael Guzmán apostava na violência, o perdedor Toledo, também. Abimael era um filho da mãe, Choledo (contração de duas palavras: cholo, designação pejorativa dos ameríndios da Sierra, e Toledo) idem. Os dois são iguais.” [4] Por ocasião do encontro de Ayacucho, Fujimori não hesitou em vaticinar o retorno do terrorismo, caso ele viesse a perder a eleição. Um professor que trabalha à noite por um salário de 170 francos, e de dia como chofer de táxi para poder sobreviver, explode: “É ele o terrorista! As Forças armadas produziram mais mortos que o Sendero Luminoso ou o MRTA. Neste país, a democracia está reservada a dez pessoas. Se alguém se manifesta em público, é imediatamente preso, acusado de ação subversiva.”
Em 1992, após a derrota do Sendero Luminoso e a captura de seu líder, uma parte da população desterrada articulou seu retorno. A amplitude das migrações e da presssão das Organizações Não-Governamentais (ONG) conduziram à criação, em outubro de 1993, do Programa de Ajuda ao Repovoamento e ao Desenvolvimento das Zonas em Estado de Urgência (PAR). Ao longo dos cinco últimos anos, o equivalente a 280 milhões de dólares foram investidos nos departamentos mais atingidos (Apurimac, Ayacucho, Huancavelica, Junin), [5] o que permitiu o repatriamento de 6.500 famílias, a construção e reconstrução de casas, o investimento na infra-estrutura escolar e sanitária, e a identificação de 670 mil pessoas sem documentos. Ainda assim, Betty Olano Cieza, responsável técnica da PAR, não hesita em afirmar que seus recursos são insuficientes. Para Jose Manuel Ramirez, responsável pela comunicação da Associação Pró-direitos Humanos (Aprodeh), “nessas regiões devastadas, a PAR não tem programas de reconstrução econômica nem tampouco de restituição de direitos àqueles que perderam tudo. Este país precisa muito mais que de políticos de volta”.
Revolução rural
Diante do vazio, as populações que retornaram à Sierra com novas exigências de vida e de desenvolvimento tiveram de criar elas mesmas os recursos e as instituições necessárias à organização das comunidades. “Os refugiados são as últimas crianças do mito do progresso no país”, constata Jaime Antesana, sociólogo e consultor do Congresso. “De maneira autônoma, eles fizeram uma verdadeira revolução rural nos Andes”. Pouco a pouco, a noção de cidadania foi se construindo em torno das municipalidades, as quais se tornaram fator de desenvolvimento e de reconhecimento, fazendo com que os campesinos (camponeses) reivindiquem sua integração ao Estado nacional. Após ter levado tantos anos para perceber este anseio, o governo Fujimori esforçou-se para recuperá-lo politicamente.
A saída de Ayacucho marca o fim das estradas asfaltadas. As pistas empoeiradas retomam seus direitos. É preciso três horas de estrada e 120 km para chegar ao distrito de Tambo. Lá, a presença física do Estado é simbólica. Mas os “esforços” do governo Fujimori para melhorar a infra-estrutura — um posto de saúde, uma base militar e a reconstrução de algumas estradas —, coisa que ninguém jamais fizera, conferiu-lhe uma notoriedade incontestável. Nessas zonas esquecidas, três vezes nada já é muito. “Aqui, as pessoas votaram em Chino. [6] Ele nos conhece e nos apóia. Tudo o que ele diz, ele faz. Ele nos ajudou? E depois quem nos garante que com um outro a violência não iria retornar?”.
Situação de pobreza
No segundo turno, Fujimori levou 71% dos votos em Tambo. Contudo, em relação à situação de pobreza, o departamento de Ayacucho ocupa o segundo lugar, atrás de seu vizinho Huancavelica, onde a renda mensal por habitante é de 25 dólares, contra 80 para o conjunto do país; e a esperança de vida de 56 anos, contra 68. De resto, o fenômeno é geral: 64% dos habitantes das zonas rurais vivem na pobreza contra 25% nas zonas urbanas. [7]
A despeito deste quadro, e pelo fato de as fraudes não explicarem tudo, Fujimori, tido como o homem providencial, ganhou o meio rural e as favelas de Lima. “O governo utilizou o tema da violência de maneira publicitária”, analisa Grimaldo Rios Barrientos, diretor do Centro de Promoção e de Desenvolvimento das Populações (Ceprodep). “O debate eleitoral, completamente focalizado na fraude, ocultou todo um outro debate sobre as expectativas reais das populações, sobre o desenvolvimento das comunidades ou das economias locais”.
Apoio militar
E se Fujimori “violentou” as cidades e as classes médias, arriscando-se a enfrentar uma forte agitação, isso pouco lhe importa: ele conta com o apoio da hierarquia militar. A desmilitarização das zonas em estado de urgência (9% do território), lançada um mês antes do primeiro turno, não levou ao recuo das forças armadas no país em que “a instituição militar é a única que funciona”. Nos pueblos de Sierra, o exército é com freqüência a única representação física do Estado e, após o trauma da guerra, poucos são os que desejam sua retirada. Uma lógica local que pode surpreender, uma vez que os 25 mil peruanos mortos nesses vinte últimos anos não o foram apenas devido ao “terrorismo”. A luta anti-subversiva levou a inúmeras detenções arbitrárias, maus tratamentos, torturas, assassinatos e mesmo massacres. O problema é que “os campesinos precisam muito do Estado para se virarem contra ele, exclama Pedro Huaman, um economista aposentado. “E depois, como é possível acusar os militares? Eles são a autoridade. Eles têm tudo, compram tudo. Se alguém se queixa, desaparece.”
Tanto Fujimori quanto o alto comando militar se atribuem todos os méritos na erradicação do Sendero Luminoso. Ora, sem os campesinos, não é certeza que isso poderia ter acontecido. Desde o final de 1982, espontaneamente ou freqüentemente organizados pelo exército, os camponeses, incluindo os recrutados à força, desenvolveram sua própria defesa no seio das rondas camponesas ou Comitês de Auto-Defesa (CAD). Muitos aí perderam a vida. Nada foi feito depois para retribuir, material ou moralmente, esses “heróis anônimos” do conflito.
Indenizações seletivas
Mas, em novembro de 1991, o governo promulgou o decreto legislativo 741, reconhecendo os CAD como uma “organização cidadã surgida espontanea e livremente para realizar ações de defesa de suas comunidades ameaçadas pelo terrorismo”. [8] Um ano mais tarde, o decreto supremo 077/DE92 estabeleceu no artigo 10, que “morte, lesões ou invalidez terão a atenção preferencial do Estado, possibilitando indenização ou pensão”. No entanto, foi preciso esperar 1998 para que o decreto supremo 068-DE/SG fixasse o montante das indenizações. Uma retribuição tardia válida apenas para as vítimas tombadas ou feridas antes da promulgação do decreto 077, isto é, após outubro de 1992. Ora, a resistência camponesa remonta a 1984. De quebra, a indenização só se aplica às vítimas masculinas, mortos ou feridos durante afrontamentos com os subversivos, isto é, “quando os CAD tomam a iniciativa de atacar os terroristas”, e não “quando os subversivos entram nas comunidades”.
Por ocasião de suas incursões à Tambo, entre 1982 et 1994, o Sendero Luminoso deixou para trás um saldo de 264 mortos e 36 inválidos; e mais 85 mortos e 29 inválidos durante os enfrentamentos. [9] Apenas as famílias de quatro mortos, tombados após a promulgação do decreto (ou seja 1,15% das vítimas), podem se beneficiar da indenização do Estado. E ainda à condição de que possam fornecer os documentos exigidos — como atestados de óbito, por exemplo —, os quais a maioria não pode obter, devido à sua inexistência e ao abandono das zonas rurais pelo Estado durante os anos de violência.
Vale o reconhecimento
Em abril de 1999, 80 ronderos cobertos com seus ponchos desceram à Lima com o objetivo de sensibilizar a opinião pública: “Mesmo trezentos dólares, mas que seja para todos… O dinheiro não é importante, o que vale para nós é o reconhecimento.” A revisão dos decretos 077 e 068 que permitiria uma indenização de 60 mil dólares para os habitantes de Tambo foi enterrada tão logo deu entrada no Congresso. “Neste país, só os militares são condecorados “, diz, com tristeza, Antesana. Apesar dessa cruel ingratidão, a lembrança dos anos terríveis ainda prevalece sobre o ressentimento. Para Alberto Zigarbe Torres, antigo membro do Comitê de Auto-Defesa de Tambo, os militares mataram “por confusão”: “Sem eles, quem teria nos ajudado? Eles tentam nos defender. Não, ninguém quer mal a eles.” Pão benzido por Fujimori. Mesmo que…
Segundo Francisco Diez-Canseco Tavara, presidente do Conselho para a paz, “a captura de Guzmán foi uma vitória estratégica mas não significa, de jeito nenhum, a erradicação do Sendero Luminoso”. Na província de La Mar, a permanência dos subversivos continua assombrando os espíritos: “Desaparecidos! Só rindo. Nas montanhas, eles são centenas”, afirma Huaman. As testemunhas concordam quanto à presença ativa de grupos guerrilheiros nas proximidades do rio Apurimac, nas zonas montanhosas e na vertente amazonense de Ayacucho, no alto de Huallaga e nas montanhas do departamento de Libertad. Zonas onde a produção e o tráfico de coca são mais intensos. Os “senderistas” tiram daí os recursos financeiros necessários à sua sobrevivência.
Jogo perverso
No dia 9 de abril, em Tocache, uma coluna da guerrilha bloqueou o acesso aos centros eleitorais. Os eleitores tiveram de desviar o caminho. Para Jeffrey Gamarra Carillo, diretor da ONG Ipaz, o governo Fujimori pratica um jogo perverso: “É possível que ele não esteja interessado em que a guerrilha desapareça: pode-se extrair muito do fator insegurança. Ele pode ser utilizado para conservar a ajuda de Washington e justificar as despesas e a permanência dos militares? Pode-se imaginar muitas coisas. De qualquer forma, o Sendero Luminoso tornou-se um instrumento funcional do poder.”
Da pacificação à construção da paz, há uma distância que o presidente nunca transpôs. Implicaria um retorno aos momentos mais duros desses últimos vinte anos, a evocação da responsabilidade das forças armadas no massacre de milhares de camponeses e por em movimento todos os recursos necessários para lutar contra a marginalização de Sierra e desses milhões de homens e mulheres desempregados que se espremem nos pueblos jovenes de Lima (ver matéria nesta edição). Além dos problemas que poderiam advir, como conseqüência das últimas eleições, e pelo fato de a polí